"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Verdades perigosas
Verdades perigosas
texto - Luiz Percival Leme Britto; ilustração - Criss de Paulo
01 de dezembro de 2011
A UMA SÓ VOZ
Na prática escolar do ensino de língua é inevitável que se construam certos consensos pedagógicos que se transformam em novos adágios. Eles, muitas vezes, são bastante úteis, servindo de baliza para definição de objetivos, para seleção de estratégias de ação e para avaliação dos processos e resultados da atividade educativa. Mas também são perigosos, principalmente se, de esteio, passam a ser percebidos e realizados como absolutos imperativos.
A finalidade deste pequeno artigo é, de forma muito singela e sem nenhuma pretensão de palavra final, retomar algumas das “provocações” elaboradas pela coordenação da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro para que fossem tema de reflexão durante o seminário “A escrita sob foco: uma reflexão em várias vozes” e instigar-nos a desconfiar das nossas caras verdades. A intenção, contudo, não é destruir imagens e modelos, e romper paradigmas, mas apenas abrir o leque de possibilidades da ação educativa.
O aluno que lê bastante escreve bem
Aí está um antigo bordão pedagógico que segue repercutindo intensamente em programas de incentivo à leitura e nos corredores e salas escolares. E ele não é propriamente falso: é comum o leitor assíduo ser também alguém que apresenta desenvoltura na escrita. E mais: é raro encontrar pessoas que escrevam bem e não leiam com frequência.
O problema está na relação de causa e efeito implicada na afirmação e na sugestão de que a capacidade de escrever com desenvoltura resulte simplesmente da prática constante da leitura. Lemos coisas diferentes do que escrevemos e, mais, posso ler muitos textos de determinado gênero sem minimamente tornar-me escritor do mesmo gênero; posso ser um devorador de contos e nunca escrever unzinho sequer.
Escrever supõe estratégias distintas de ler, estratégias cuja aprendizagem se faz pormeio da experiência direta e reflexiva com o próprio escrever. E mais: em função das próprias demandas sociais e das especializações da vida social, não lemos as mesmas coisas que escrevemos.
A leitura pode ser (é) um elemento auxiliar importantíssimo, porque oferece modelo, porque amplia referenciais, porque contribui para a atividade reflexiva, mas é apenas escrevendo – e muito – e reescrevendo o escrito que a pessoa desenvolverá o conhecimento do escrever.
Se o aluno sabe sobre o que escrever, ele produz um bom texto
O texto se faz com e sobre ideias e conhecimento de causa: alguém, se quisesse, por exemplo, dissertar sobre as formas de identidade na sociedade contemporânea deveria necessariamente ter um razoável conhecimento sobre como se organiza a sociedade e quais são os processos identitários.
Isso quer dizer que o adágio tem um fundamento muito claro: é difícil – ainda que não impossível – alguém conseguir escrever um bom texto se não tem conhecimento do assunto sobre o qual escreverá. Mas, então, por que será que muitas vezes sentimos tanta segurança sobre o que dizer e quando vamos escrever o texto não aparece?
Se é certo que é preciso conhecer o assunto para escrever algo interessante sobre ele, também é certo que escrever supõe conhecimentos e procedimentos próprios, alguns específicos do gênero – conhecimentos e procedimentos que vão além das simples convenções da escrita formal, que passam pelo domínio do gênero e pelo controle dos processos de escrita, como o planejamento e revisão.
Sem tais competências, dificilmente conseguiremos escrever um texto bem articulado.
Sabendo que seus textos serão publicados, os alunos escrevem levando em conta o leitor
É bom que aquilo que escrevemos tenha sentido e razão. Se escrevo uma carta, é porque quero que aquele a quem a endereço a leia; se escrevo um artigo de opinião, quero que o público em quem pensei possa lê-lo, no mínimo refletir sobre o que pondero no texto. Não tem muita graça escrever sem quê ou por quê.
Então, se vou publicar um texto é porque imagino que alguém vá ler o que escrevi. Mas não é bem certo que basta saber que vou publicar para ter noção exata de quem vai ler; pelo contrário, textos que não se publicam (como um diário, que escrevo para um leitor muito especial, ou uma carta, que escrevo para uma pessoa determinada) podem ter interlocutores muito mais bem definidos. Terei uma noção mais ou menos do leitor se tiver um razoável conhecimento do tipo de publicação ou do gênero do texto, e isso independe de o texto vir a ser efetivamente publicado. Se escrevo poemas tenho uma imagem vaga de leitor – talvez a projeção de mim mesmo – e uma vaga ideia de que o texto possa vir a ser publicado.
E há muito texto importante que escrevo para não ser publicado: resumos, anotações, reflexões... textos que formam e conformam minha aprendizagem e minha personalidade e que são escritos sem nenhuma intenção de publicação.
Talvez devêssemos pensar que, na prática escolar, diferentemente do jornalismo, por exemplo, a publicação é resultado de um trabalho interessante, e não seu objetivo. É muito bom investir na produção escolar que busca avançar para além dos muros da escola, que quer o diálogo com a comunidade, que quer fazer sentido na vida da gente. Mas não se pode perder a dimensão formativa da atividade e tornar o produto mais importante que o processo.
Trabalhar com vários gêneros ao mesmo tempo permite ao aluno compreender as características e funções de cada um
Não, dirá o manual. Há que se eleger um gênero de texto privilegiado, investindo na observação cuidadosa de sua característica, função e funcionamento. Se misturo muitos gêneros, torno mais difícil a aprendizagem.
Mas há aí um equívoco epistemológico e um exagero metodológico: os gêneros não aparecem em estado puro, não circulam sozinhos pelo mundo; pelo contrário, não só estão sempre acompanhados de outros, mais ou menos afins, como com frequência se misturam, se confundem, se refazem.
Tomo a crônica de exemplo: gênero de escrita que tem na origem do nome a ideia de uma narrativa, normalmente vinculado a um fato da ordem do dia – coisas do tempo – e de fato ocorrido, logo vem o fato verossímil (o que a aproxima do conto). E logo se permite que se insira na crônica o comentário e, em alguns casos, que seja só o comentário (e um pouco mais de rigor que se ponha no estilo já a aproxima do artigo de opinião). E, de gênero que se escreve, passa a ser gênero oral, na rádio e na TV. E, como trata das coisas do cotidiano, ela supõe outros gêneros narrativos e dissertativos a acompanhá-la: a notícia, o relato, o causo, a entrevista, a sentença etc. E assim vai.
Proponho-me a ensinar crônica a meus alunos: selecionarei crônicas de circulação impressa de vários autores e buscarei traços comuns: o tamanho, o estilo, a subjetividade, a desobrigação da demonstração do argumento, a proximidade com a ficção etc. E digo-lhes que a crônica é um gênero ligeiro, leve, e que quer ser “democrático”, tendo em vista que, próxima da vida comum, está em certa medida ao alcance de todos (pensando bem, muito do que fazemos em nossas conversas cotidianas são pequenas crônicas), e que, estilizada, vira objeto de jornalistas e escritores...
Ao trabalhar a crônica, mesmo elegendo-a como objeto privilegiado de estudo, passarei inevitavelmente pela leitura de textos de muitos gêneros e criarei possibilidades de produção de textos de muitos outros gêneros. E, se relacionar com a crônica certos fatos relevantes do momento para o público com que trabalho – criando uma unidade temática –, estarei diante de mais e mais textos e gêneros. Assim, há que cuidar para que o princípio pedagógico de eleição de um gênero para estudo não signifique a prisão metodológica e a falta de crítica e diversidade. Principalmente quando o gênero que queremos estudar não é aquele que precisamos aprender a escrever.
Reescrever um texto é passá-lo a limpo, corrigindo pontuação, gramática e ortografia
Essa é uma ideia antiga que, felizmente, já não tem muito apelo; apenas aqui e ali ouve-se alguém, demasiadamente preso ao referenciais normatizantes, sustentá-la. Contudo, é comum ainda dizer que tais ações fazem parte da reescritura. E aí é que está o problema, porque a ideia da aparência se impõe sorrateiramente e acaba- se por novamente pô-la em evidência.
Será preciso, então, dizer que não, que reescrever um texto é parte do processo de produção mesma do texto e o que deve estar em evidência é a pertinência e densidade dos argumentos, a qualidade da sequência da exposição, a ordem e a complexidade da apresentação dos acontecimentos, a caracterização dos personagens e do cenário, a escolha lexical, os efeitos de sentido percebidos e desejados etc.
Um texto, quando se propõe como um projeto, implica o ato reflexivo e avaliativo. E, assim, ele se faz e se refaz até que, na avaliação do autor, alcance a forma, o conteúdo e os efeitos desejados.
O que se afirma na frase provocativa é próprio da ação de revisão de texto, algo completamente diferente: a revisão, idealmente, se faz sobre o texto pronto, e com estrita finalidade de garantir que os padrões convencionais de publicação de texto escrito estejam garantidos (e por isso muitas vezes é tensa e difícil a revisão: rupturas significativas, estilos equivocadamente confundidos com norma).
A revisão é uma etapa da produção do texto, mas não se confunde com sua reescrita.
Como ensina João Wanderley Geraldi em A aula como acontecimento (São Carlos: Pedro e João Editores, 2010): “Aprender a escrever traz dificuldades específicas. Escrever nunca é só um processo simples de transcrever a fala para a escrita ou traduzir as palavras faladas em signos escritos. [...] O principal problema da escrita é tornar-se consciente de seus próprios atos. Escrever significa conscientizar-se da sua ‘fala’, prestar atenção aos recursos linguísticos mobilizados ou mobilizáveis segundo o projeto de dizer definido para o texto em elaboração. [...] Nos textos aparecem todos os problemas que podem ser enfrentados no campo da linguagem: os sentidos e as formas comuns e inusitadas de expressá-los. A atenção ao acontecimento pode chegar ao detalhe do linguístico no seu sentido estrito”.
Todos os que nos envolvemos na tarefa de ensinar a leitura e a escrita temos a consciência da importância de referenciais consistentes e coerentes para sustentar a prática pedagógica. Mas, acima de tudo, sabemos que a submissão a qualquer determinação e sua aplicação automática e irrefletida não podem promover a educação livre e criativa.
* Luiz Percival Leme Britto, doutor em linguística e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa); e-mail: luizpercival@hotmail.com.
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