"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Por que leio literatura
Por que leio literatura
texto - Sírio Possenti; ilustração - Criss de Paulo
01 de maio de 2011
A escrita que mora em mim
Leio de tudo: artigos, teses, projetos, relatórios, jornais, pedaços de papel perdidos, outdoors, slogans, piadas.
Mas, por razões mais ou menos misteriosas, consideradas as condições culturais de minha infância, eu me tornei um leitor de livros assim que eles estiveram a meu alcance. Desde sempre o que mais me fascina são as narrativas (detesto manuais...), as histórias bem contadas – ainda me lembro de um tio que era uma espécie de mestre do suspense, contando histórias que tiravam meu sono, porque em geral envolviam fantasmas ou animais selvagens, mas que eu ouvia embasbacado. Até aprecio jogos de linguagem (não à toa estudo piadas...), mas, de longe, prefiro histórias com cenas de tirar o fôlego, como acontece em Os três mosqueteiros, O guarani, Os dias do demônio ou Crônica de uma morte anunciada. Li diversas vezes Grande sertão: veredas, mas não é a inventividade linguística que me atrai (embora goste muito de frases como “Diadorim era mulher como o sol não acende a águas do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero”), e sim a impressionante narrativa de eventos mais ou menos épicos (ah, o julgamento de Zé Bebelo!) e o suspense em torno das relações entre Riobaldo e Diadorim.
Acho que gosto desses romances e de biografias (e de filmes em que há personagens que enfrentam situações limite) porque tratam frequentemente de sujeitos que ultrapassam a normalidade – a mediocridade típica da espécie humana –, estejam de que lado estiverem. Talvez por isso não goste tanto das teorias que falam do sujeito assujeitado. Medo de que sejam verdadeiras? Pode ser.
Mais recentemente, descobri – ou a coisa ficou mais ou menos clara – que prefiro textos marcados fortemente pelo ritmo (sei hoje que é por isso que não gosto dos livros de Paulo Coelho, e não por qualquer outro fato, especialmente porque são populares). Seria evidentemente impossível citar as passagens que me impressionaram por essa razão – seu ritmo –, mas sempre lembro do começo de “Relatório de Carlos” (“Gostaria de ser factual e cronologicamente exato”) quando se fala disso, assim como do alucinante início, de cortes cinematográficos, que se estendem por todo o texto, de “O cobrador” (“Na porta da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta se abriu e surgiu uma mulher acompanhada de um su jeito grande, uns 40 anos, de jaleco branco”), ambos contos de Rubem Fonseca.
Lembro-me de uma entrevista com Gabriel García Márquez que ouvi num hotel, logo ao acordar, em que ele dizia exatamente isso, se a memória não me trai: pessoas às vezes acham que há um adjetivo sobrando na frase, mas, dizia ele, literatura é uma questão de ritmo, não de informação ou de redundância.
Nem todos os ritmos são iguais, claro. É por isso, eu acho, que posso gostar de D. Quixote e de Os sertões, de Vidas secas e de O tempo e o vento, de O deserto dos tártaros e de Madame Bovary. Não há só um critério para definir boas histórias, embora haja alguns, eu acho, para caracterizar as ruins. Enfim, eis meu vício secreto: em última instância, o que me interessa mesmo é uma boa história, que pode ser tanto um policial de terceira categoria quanto um livro de espionagem de quarta, desde que haja personagens interessantes e que nem tudo seja chavão, mesmo que haja muitos ou que se possa rir deles. Há livros ruins muito bons...
A variedade da literatura é claramente grande, e meu gosto abrange quase tudo do pouco que pude ler (e espero ler muitas boas histórias quando me aposentar). Como curtir narrativas e não gostar de Dostoiévski, seja pelo texto, seja pelos tipos e pelos discursos, ou ter alguma fi ssura por linguagem e não ficar meio possuído lendo Nelson Rodrigues, com suas repetições obsessivas e figuras que se parecem com os vizinhos, quando não são iguais a você? (E suas crônicas sobre futebol? Que inveja!) Como gostar de coisas bem feitas, de qualquer coisa bem feita, e não frequentar Borges pelo menos um pouco, para relembrar os problemas que seus narradores formulam a partir de tipos originalíssimos como Pierre Menard e Funes? E as histórias baseadas em livros que não existem?
Alguns livros eu li só por ter sido desafiado, como Os sertões, que não consegui deixar de lado, embora tivesse que ler escondido lá no meu Seminário, e Memórias póstumas de Brás Cubas, que me deu algum trabalho aos 15 anos, e ao qual volto de quando em quando, talvez por isso. A prosa aparentemente rasa de Machado primeiro me surpreendeu muito, e sempre me faz ler seus textos com uma espécie de lupa. Nenhum frêmito (o que outros textos provocam), mas como ele é bom, de outro jeito (os prazeres não são todos iguais, como deveria ser óbvio)! Devo confessar que se trata de um autor que (re)leio também levado pelo que se diz sobre ele. Releio os Ensaios machadianos, de Mattoso Câmara, e sempre lamento, entre outras coisas, que nenhum crítico literário cite esse livro, nem mesmo o citou por ocasião do centenário da morte do homem... Mas, como não sou mais aluno de ninguém, posso achar da crítica o que me dá na telha. Ulisses também eu só li por ter sido desafiado, para não dar o braço a torcer, e aceito numa boa que não é um livro feito para mim, ou, então, que eu não fui feito para ele.
Não sou bom leitor de poesia. Leio eventualmente antologias e textos esparsos.
Somando tudo, não é tão pouco. De vez em quando me amarro em algum poeta e leio dele o que posso, mas não por muito tempo. Foi o que ocorreu recentemente com Manoel de Barros. Mas meu poeta é outro Manuel, o Bandeira.
Porque não quero, não posso nem tento ser crítico literário, leio sem levar em conta as teses de que tudo é intertexto (nem gosto mais de ouvir de novo que textos são tecidos...), de que livros são escritos sobre outros livros, que literatura fala e não fala da realidade, que obedece a convenções que são do campo, mas que têm tudo a ver com as sociedades e as épocas e os outros discursos, que a literatura, especialmente o romance, faz uma representação da língua (da plurilíngua) e por isso se escreve em interlíngua(s), como tem dito Maingueneau. Li coisas sobre tudo isso e quase não posso esquecer disso quando leio romances, mas tento ler sem que isso me afete, exceto às vezes, quando quase esqueço da história para ver só o raso do texto, sua montagem.
Não leio como linguista, mas não posso deixar de ler como linguista. A não ser quando o texto é tão bom que não precise fazer isso, ou me distraio disso, e me esqueço do que sou e do que faço, para ser só leitor, o que me bastará um dia, espero.
Receitas escolares são frequentemente péssimas, mas como foi bom ser obrigado a ler listas de vestibulares – não como vestibulando, diga-se – e descobrir Sibila, de Agustina Bessa-Luís, e ler, finalmente, tão tarde, O mulato!
Ultimamente, ando lendo os policiais de Camilleri (que tipo, esse Salvo Montalbano!) e os duros romances de Bukowski. Tenho gostado demais. Dos dois. Por motivos completamente diversos.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp. Mestre em linguística pela Universidade Estadual de Campinas (1977) e doutorado em linguística também pela Universidade Estadual de Campinas (1986).
1. In: Beth Brait (org.). Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010, pp. 33-35.
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