"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Da infância à ciência: língua e literatura 1
Da infância à ciência: língua e literatura 1
texto - Luiz Carlos Travaglia; ilustração - Criss de Paulo
01 de março de 2011
A escrita que mora em mim
Ainda na infância, a literatura me encantou, me conquistou: as histórias com suas tramas, os poemas com sua musicalidade, seu uso especial da linguagem, todos com uma precisão e um concretizar de fatos e sentimentos que a intuição apenas adivinhava.
Acho que foi isso que me fez amar a língua e esse amor me fez querer e decidir ser professor de língua portuguesa. Já quando estava na quarta série do Ginásio (hoje nono ano do Ensino Fundamental) tinha certeza de que queria ser professor... De língua portuguesa.
Sempre achei fascinante o dizer, os modos de dizer e nisto os literatos são os mestres; por isso acredito ser a literatura a grande responsável de eu ser professor de língua
Quem, além de um poeta, poderia chamar a nossa língua de última flor do Lácio inculta e bela? Quem, além de Bandeira, poderia ir embora pra Pasárgada... é outra civilização, para andar de bicicleta, montar em burro brabo, subir em pau de sebo e tomar banho de mar? E as múltiplas e até então inexploradas veredas da língua trilhadas por Guimarães Rosa com toda sua inventividade, causando surpresas e até “sustos” nos leitores acostumados aos torneios usuais da linguagem?
Viajando por entre as palavras mágicas de poetas, contistas, romancistas, seguindo os riscos dos bordados, subindo em máquinas extraviadas, tentando decifrar os claros enigmas ou descobrir a lição das coisas, fui percorrendo os caminhos e descaminhos da linguagem.
Aos poucos cresceu no meu conhecimento a gramática e a seguir a linguística com todas as suas correntes e disciplinas. Aumentou assim o meu entusiasmo pelas possibilidades expressionais da língua, sua relação com os recursos linguísticos e seu funcionamento em textos resultantes de sujeitos, de ideologias, de atividades e esferas de ação do ser humano concretizando modos/formas e objetivos de ação em tipos, gêneros e espécies de textos. Mas o que une tudo é a língua e suas possibilidades significativas na interação entre os seres, nos efeitos de sentido que concretizam o dizer.
O que torna essa língua literatura? Difícil de dizer. Muitos tentaram e tentam até hoje. Todavia todos somos unânimes em perceber (ou é só o meu ponto de vista?) que não é o recurso linguístico que se usa ou o quanto se usa de um ou outro recurso, mas é o engenho e arte (o que é isso, Camões?), a beleza de dizer, numa espécie de magia, o que a alma sente, mas a boca ou a pena não dizem; o que a razão tenta esboçar, mas a que a ciência ainda não deu forma dizível.
Por isso a literatura é a porta de entrada e percepção de que a língua tem uma magia: a de dar forma e existência ao que sentimos e somos, ao que as relações grupais são, ao que e como o Universo é, os universos são.
Parece-me, pois, que primeiro a literatura nos faz sentir o que a língua é e pode, e só depois, a gramática e a linguística nos possibilitam saber o que e como a língua é e o que ela pode. Como ser professor de língua portuguesa, gramático, linguista sem conhecer, explorar esse universo linguístico em perene ebulição chamado literatura?
A literatura concentra, converge, encontra possibilidades expressionais presentes na língua em todas as suas variedades escritas e orais. Além disso, explora possibilidades expressionais potenciais e seus efeitos. Retira da cartola em seu espetáculo mágico usos possíveis, mas nunca utilizados. Por essa característica, foi sempre campo de colheita farta para os estudos linguísticos. Mesmo atualmente, quando esses estudos linguísticos se acostumaram a observar, descrever e explicar os recursos da língua e seus usos nas variedades orais e escritas não literárias (como na imprensa falada e escrita, nos documentos orais e em todos os gêneros de todas as esferas de ação social ou comunidades discursivas), parece que a literatura continua a Senhora que nos mostra e aponta a magia da língua.
Pode-se até ser linguista sem um olhar para a literatura, mas ela nos dá sem pre algo de novo, de criativo, de inusitado, que não teríamos sem sua presença. Tenho observado nas conferências, mesas-redondas, comunicações e outras apresentações nos eventos acadêmico-científi cos nas áreas de letras e linguística que há um interesse, uma vibração diferente quando usamos exemplos da literatura. Quero acreditar que é sempre aquele poder impressivo de sedução que despertou meu interesse pela língua e depois pelo seu estudo. É o fazer-nos sentir, perceber, entender que a língua é uma mágica que a humanidade criou talvez no curso de centenas de milhares ou de milhões de anos. Mágica que fez essa humanidade ser humanidade, diferenciando-se entre os animais, que a fez alçar-se dos pântanos e planícies às estrelas, que a fez sair das cavernas e habitar palácios, que lhe deu memória, que lhe deu espírito.
É por esse espírito que acredito que ser linguista ou gramático, ser professor de língua portuguesa tem mais brilho, mais sabor, mais verdade, mais possibilidade quando se
acredita, mais ainda, quando se sabe que língua e literatura são uma só coisa e que a segunda é a primeira transformada em arte, que a literatura é o que há de mais livre, mais forte e, por que não dizer, de mais belo de tudo o que se pode fazer com a língua.
Gostaria de terminar evocando um poema de Adélia Prado, que me transporta para minha
infância de fi lho de ferroviário, vizinho da linha do trem e dos livros de literatura, onde tudo começou:
Explicação de poesia sem ninguém pedir
Um trem de ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento.
Adélia Prado. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991, p. 48.
Luiz Carlos Travaglia é professor associado do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em letras/língua portuguesa (PUC-RJ) e doutor em linguística (Unicamp).
Referências
1. In: Beth Brait (org.). Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010, pp. 36-38.
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