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Conversando sobre poesia

Conversando sobre poesia

Marisa Lajolo

01 de dezembro de 2010

Gente é para brilhar!

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2718_npl15_gdeMarisa Lajolo é professora de literatura. Leciona atualmente na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, e é professora titular convidada da Unicamp. O livro que organizou junto com alunos e o professor João Luís Ceccantini, Monteiro Lobato – Livro a livro – obra infantil – (Imesp/Fundunesp), em 2009, ganhou o prêmio Livro do Ano de Não Ficção da Câmara Brasileira do Livro.

Poemas, às vezes, contam histórias, como este que está logo abaixo. Sua autora é Adélia Prado, poeta que por muitos e muitos anos foi professora em Minas Gerais.

 

Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Disponível em http://www.releituras.com/aprado_bio.asp .
Consultado em 15/9/2010.

 

Como ler a história de alguém que na hora do nascimento foi predestinado por um anjo a carregar bandeira? Carregar bandeira...?, pode estranhar o leitor, quando começa a leitura. Mas, já no quarto verso, esse leitor curioso tem uma primeira pista: o bebê: parece ser uma menina, uma bebeia...

Escrito em primeira pessoa, como uma espécie de autobiografia, esse é um dos poemas mais bonitos e mais conhecidos de Adélia Prado. Nele se ouve uma voz feminina, falando de si mesma, contando (ou inventando) seu nascimento presidido pela profecia de um anjo. Mas... então é história de verdade?, tem direito de perguntar-se o leitor.

Pergunta sem resposta: quando se lê um poema, nem sempre as palavras significam o que parecem querer dizer.

Poemas parecem empurrar seus leitores para um estado de meditação que se prolonga para muito além da leitura. O título deste – “Com licença poética” – parece mesmo dar esse recado, a poeta avisa que está se valendo da excepcionalidade do discurso poético. Parece aconselhar (com uma piscadela) o leitor a não tomar ao pé da letra, literalmente, tudo o que lê nos versos, pois poeta imagina, cria, inventa... Inventa anjos esbeltos que tocam trombetas e atribuem destinos... Anjos esbeltos?

O cenário no qual surge o anjo é um nascimento. Momento muito especial, o nascimento de uma criança. Momento especial para o bebê que nasce, para os pais, para toda a família, e mesmo para a humanidade: é a celebração da vida, a certeza de nossa continuidade na face da Terra.

Daí o nascimento ser tão celebrado em prosa e verso. Na história “Bela adormecida”, por exemplo, fadas bondosas e uma bruxa malvada profetizam diferentes destinos para a recém-nascida: a princesinha vai morrer, ou vai dormir cem anos?, os leitores torcem. Vence o vaticínio do Bem, e a menina fica adormecida até que o beijo do príncipe a desperta.

Também nesse poema de Adélia Prado há um destino traçado para a menina que nasce: o anjo esbelto anuncia que a menina recém-nascida vai carregar bandeira. O sentido da profecia é intrigante, cria expectativas: Como é mesmo? Que bandeira é essa?, pode estranhar o leitor. De quem será a voz que, nos versos seguintes, questiona a propriedade da tarefa confiada à bebezinha? A voz feminina parece queixar-se, rebelar-se contra o destino proclamado? Aponta que carregar bandeira é cargo muito pesado pra mulher, justificando a queixa por ser a mulher uma espécie ainda envergonhada?

No ininterrupto diálogo de quem lê um texto com o que está escrito no papel, as perguntas se multiplicam: como assim espécie envergonhada? E por que ainda? Vai deixar de ser envergonhada um dia?

A partir do sexto verso a voz que fala no poema parece alçar voo. E o leitor – sobretudo a leitora – talvez entenda (eu entendo assim...) que a base através da qual a voz feminina ganha asas é o cotidiano e um modo de ser feminino. Feminino, brasileiro, interiorano, doméstico, familiar.

* * *

Nascida numa cidadezinha de Minas Gerais, chamada Divinópolis, desde que publicou seu primeiro livro (Bagagem, 1976), Adélia Prado vem surpreendendo a crítica e encantando leitores. O encanto e a surpresa talvez venham da originalidade de sua poesia, marcada ao mesmo tempo pelo feminino e pelo misticismo, juntando num mesmo texto anjos que tocam trombetas e mulheres envergonhadas.

Em “Com licença poética” sucedem-se alusões ao mundo feminino: beleza, casamento, parto. Nascida em 1935, Adélia Prado é de uma geração de mulheres educadas para o casamento, tendo marido e filhos como único horizonte.

É a partir desse destino feminino preordenado que o 11º- verso introduz um novo ponto de interrogação. Aberto pela adversativa “mas”, sinaliza que o discurso vai enveredar por outros caminhos: mas o que sinto escrevo. Por que mas? Por que escrita é ruptura? Por que escrever sentimentos é desobediência?

Nós, leitores, somos senhores da resposta. E a minha é que sim, que escrita é ruptura e desobediência. Ainda que possa também ser sina.

Nessa interpretação, a escrita aqui anunciada como ruptura e desobediência introduz um conjunto de versos nos quais a voz feminina celebra sua realização: ao proclamar inauguro linhagens, fundo reinos, o poema pode sugerir ao leitor – de novo sobretudo à leitora – um papel feminino não apenas de perpetuadora da espécie, mas de semeadora de alegria. Juntando os dois, parece que o poema celebra a alegria de perpetuar a vida, uma alegria ancestral, que data do início da humanidade sobre a Terra: minha vontade de alegria / vai ao meu mil avô.

(Ou à minha mil avó... reescreve a leitora ousada!)

Pode-se, assim, ler o poema como uma espécie de celebração do feminino. Ou, talvez, se possa ir um pouco mais além e imaginar que se trata de uma celebração, no feminino, da vocação poética. Celebração da mulher-poeta e da poesia feminina.

* * *

Retomando a leitura, o leitor fortalece a impressão de que se trata de um texto sobre poesia; a hipótese se sustenta e até se reforça já a partir do título: “Com licença poética”.

Leitores familiarizados com a poesia brasileira percebem, desde o primeiro verso desse poema de Adélia Prado, que ele dialoga com outro poema: o “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que abre seu primeiro livro, Alguma poesia, publicado em 1930:

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/drumm1.html#poemadesetefaces.
Consultado em 15/9/2010.

 

Relendo essa primeira estrofe do poema de Drummond, o leitor vê que Adélia Prado meio que parodia o poema do poeta mais velho. Em algumas passagens – por exemplo, o verso que reproduz o vaticínio do anjo –, parece mesmo inverter seu significado: o anjo dele é torto, o dela é esbelto; o dele é dos que vivem na sombra, o dela dos que tocam trombeta. O dele condena a criança que nasce a ser gauche (isto é, ser deslocado), e o dela proclama o destino de carregar bandeira...

Nesse diálogo de poemas, o penúltimo verso de Adélia Prado reescreve radicalmente o verso Vai, Carlos! ser gauche na vida do poema de Drummond: na mão da poeta, ser gauche (palavra francesa que se pronuncia gôche) transforma-se em ser coxo. Gauche e coxo são palavras que têm sons parecidos e ambas conotam uma situação negativa, embora uma seja francesa e outra brasileira.

Assim, nesse seu final, o poema de Adélia Prado sublinha a oposição entre o universo feminino e o masculino: ser coxo na vida é maldição pra homem / Mulher é desdobrável. Desdobrável como?, pode perguntar-se o leitor. Mas, se o leitor é uma leitora – não precisa de quem lhe responda a pergunta –, sabe no corpo, na cabeça e no coração o que quer dizer a poeta. Sabe o que é ser desdobrável, como também soube, nos versos 6 e 7, o que era Aceit(ar) os subterfúgios que me cabem, / sem precisar mentir.

Nessa proclamação da alegria do feminino, da plenitude do ser mulher, pode-se retomar a interpretação inicial: o anjo tinha ou não tinha razão ao vaticinar uma bandeira nas mãos de Adélia Prado?

Decida quem lê!

Cabe a cada leitor, na solidão de sua leitura, atribuir um significado ao que lê. E, no desempenho dessa tarefa (e direito) de leitor, ele costuma recorrer a outros textos. E, no caso, pode misturar, por exemplo, os anjos esbeltos de “Com licença poética” com os óvnis e galinhas de “Harry Potter”.

“Harry Potter”?, pode espantar-se o leitor... O caso é que no seu mais recente livro de poemas (A duração do dia, Record, 2010) Adélia Prado tem um poema intitulado “Harry Potter”, o que pode intrigar quem torce o nariz para leituras populares. Pois então a poeta maior lê best-sellers?

Parece que lê e gosta. E gosta a ponto de fazer sua obra dialogar com o bruxinho inglês, da mesma forma que já o fizera com o anjo torto de Drummond!

É só conferir no poema abaixo e depois anotar na agenda um lembrete para buscar mais textos de Adélia Prado. Prosa e poesia. Quem sabe, entre eles, o livro Quando eu era pequena, para ler com seus alunos?

Harry Potter
Quando era criança
escondia-me no galinheiro
hipnotizando galinhas.
Alguma força se esvaía de mim,
pois ficávamos tontas, eu e elas.
Ninguém percebia minha ausência,
o esforço de levantar-me pelas próprias orelhas,
tentanto o maravilhoso.
Até hoje fico de tocaia
para óvnis, luzes misteriosas,
orar em línguas, ter o dom da cura.
Meu treinamento é ordenar palavras:
Sejam um poema, digo-lhes,
não se comportem como, no galinheiro,
eu com as galinhas tontas.
In: A duração do dia. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 41.

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