"Centenas de povos indígenas e suas línguas habitam, cultivam e preservam o território multicultural do nosso país."
É Educação quando morre o coração?
É Educação quando morre o coração?
texto - Lara Rocha; ilustração - João Pinheiro
04 de setembro de 2024
Na Ponta do Lápis
Imagine o quão desafiador deve ser reviver casos e causos, dores e amores, e, a partir disso, construir literatura? Geni Guimarães, no livro Leite do Peito, publicado em 19881, parte de fatos para criar ficção, numa narrativa com 11 contos, que por se articularem linearmente, podem ser lidos como capítulos de uma mesma trama.
O olhar de criança da autora, reconstituído na obra na vivência das personagens, traz a dor, a ternura e a inconformação que permeiam diariamente as salas de aula. Suas palavras fazem que nossas angústias também se derramem sobre o texto e caminhem com a trajetória da protagonista, que se torna professora.
Aqui, refletiremos sobre o conto “Metamorfose”, publicado na Página Literária desta edição da revista Na Ponta do Lápis. Entre a casa e a escola, acompanhamos diferentes narrativas em torno da história da população negra, e como cada uma afeta a personagem principal, também chamada Geni, mostrando que, frequentemente, os processos educativos não só desconsideram as conquistas da negritude, mas insistem em reafirmar o olhar depreciativo. A protagonista, que até então havia tido contato com as histórias orais de Vó Rosária sobre as lutas contra a escravidão, conhecerá na escola a “versão oficial” e a narrativa da professora terá forte impacto sobre seu comportamento e, principalmente, sobre seu olhar para si mesma.
Ao buscar compreender um pouco mais sobre as dinâmicas escolares envolvendo estudantes negras/os, deparei-me com uma pesquisa intrigante: em 2020, o professor Sherick Hughes e sua equipe da Universidade da Carolina do Norte realizaram um estudo sobre a interação de docentes com crianças negras, intitulado Precisão do reconhecimento de emoções racializadas e viés de raiva nos rostos das crianças2 (tradução livre). Eles analisaram como 178 professores/as, principalmente mulheres brancas, interpretavam expressões faciais que indicavam diferentes emoções. Eles descobriram que as expressões de alunas/os negras/os eram frequentemente mal interpretadas — 36% a mais do que as de estudantes brancas/os. Surpreendentemente, esse índice aumenta para 74% quando se trata de meninas negras. Além disso, as/os professoras/es que tendiam a tratar melhor as/os alunas/os brancas/os foram os que mais erraram na interpretação das emoções das crianças negras.
A lei 10.639/03 estabelece o ensino obrigatório de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, não apenas para proporcionar o acesso a diferentes culturas e contribuições intelectuais, mas também para reconhecer a humanidade historicamente negada a esses grupos. Mais do que um conteúdo curricular – ou o que se ensina – refletir sobre a abordagem desses temas – ou seja, como se ensina – é crucial.
Em certa passagem do conto, acompanhamos o 13 de maio e o encaminhamento dado pela professora à data. Geni, a partir das histórias contadas por Vó Rosária, uma amiga da família, havia escrito um poema para Princesa Isabel e mostrado para a professora, que lhe prometera que seria lido diante de todos na festinha em homenagem à princesa. Chegado o grande dia, a professora fala sobre o período da escravidão e da abolição a partir de uma perspectiva salvacionista, em que a Princesa Isabel seria a única responsável e a população negra era ignorante e pouco envolvida com o processo. Diferente das histórias que ouvira em casa, sua ancestralidade já não inspirava orgulho.
Podemos imaginar que a professora do conto acredite que está contemplando o currículo ao apresentar uma história da população negra às/aos alunas/os. Contudo, como educadoras/es, a nossa abordagem e o nosso olhar para as crianças, assim como a escolha das fontes e exemplos, deve refletir um compromisso ético em promover relações raciais positivas e assertivas.
A história da personagem Vó Rosária, embora não esteja presente nos livros didáticos, traz muito da realidade e nos permite conhecer desafios, estratégias de luta e resistência, assim como a sensibilidade, a inteligência e a beleza da população negra. Vó Rosária é uma figura ancestral que exerce papel central na comunidade. Com sua sabedoria, ela se revela uma guardiã das tradições e da cultura local. Sua presença afetuosa, assim como seu conhecimento profundo das ervas medicinais e da história de seu povo, proporcionam suporte emocional e espiritual. A partir de suas narrativas, ainda que envolvendo duros episódios históricos, reconhecemos não só as mazelas, mas a humanidade dos sujeitos negros.
“Quis sumir, evaporar, não pude” ou acolher para educar
Ao trabalhar em sala de aula com textos sensíveis como este, é crucial provocar relações com a narrativa que permitam uma compreensão ampla da obra, evitando uma leitura que enxerga apenas a violência como tema.
Isso significa que, para além das cenas de sofrimento, é importante, ao longo da leitura, estimular o olhar atento para os diferentes elementos que compõem a literatura. Não esqueçamos que, embora a literatura afro-brasileira seja perpassada por aspectos sociológicos, antropológicos, históricos, ela é, acima de tudo, arte.
Obras como Leite do Peito nos oferecem, por exemplo, inúmeras referências do cotidiano, que permitem nos reconhecermos ali, seja a partir da linguagem ou de elementos apresentados, como a comida, a exemplo da mandiúva; o espaço, como o terreiro da casa onde ficavam as galinhas; ou mesmo práticas presentes em nosso imaginário, como ajoelhar no milho. Assim, em sala de aula a turma aciona referências em comum entre si e a obra. E ainda que alunas/os negras/os tenham experiências pessoais parecidas com a da protagonista, a violência não é o único fator de ligação com a narrativa.
Interações aparentemente simples com diferentes aspectos presentes no texto possibilitam uma conexão de quem lê com o contexto da narrativa, rompendo estranhamentos tantas vezes existentes na literatura escolar. Durante a leitura, a relação da personagem Geni com a professora e as violências psicológicas são o centro da trama, contudo, uma abordagem sensível, envolvendo outros elementos, podem contornar o fato e tentar resgatar memórias coletivas em torno de práticas escolares não necessariamente vividas em primeira pessoa.
Estimular conexões para além da dor é fundamental, uma vez que é muito comum no trabalho com obras afro-brasileiras a expectativa, por parte de quem media a leitura, que haja relações a partir de vivências pessoais de quem lê com o racismo. Ainda que este vínculo exista, é possível que não seja verbalizado. E não deve ser esta a intenção do trabalho com o tema. A conexão subjetiva não precisa do relato da violência para se estabelecer.
Por isso, há de se ter uma abordagem muito cuidadosa, evitando processos de fetichização da violência, ou de cristalização do lugar de “informante nativo” (hooks, 2013), em que sujeitos que, concreta ou hipoteticamente compartilham da realidade apresentada, são convidados – ou constrangidos – a compartilhar experiências pessoais, a fim de ilustrar a aula. Frequente em espaços de mediação branca, essa postura, além de embaraçosa e discriminatória, reforça as histórias únicas3, em que se pressupõe, a partir de traços identitários, experiências vividas pelos sujeitos, desconsiderando a individualidade e diversidade de suas vivências.
A leitura do conto nos possibilita refletir também sobre como o olhar de pena e desprezo com que se enxerga a população negra escravizada ignora e apaga as estratégias de construção de subjetividades elaboradas ao longo do período escravocrata. Na trajetória de Geni, a narrativa da professora violentava o imaginário acerca de sua ancestralidade, retratando a população escravizada como “bobos, covardes, imbecis”, que “não reagiam aos castigos, não se defendiam” (Guimarães, p.62).
A noção de que não existia voz ou qualquer agência sobre suas jornadas é irreal – até pesquisas rápidas na internet podem comprovar.
Assim, é notável que os paradigmas que compõem o olhar da professora sobre a história, negando todos os movimentos de resistência, produção e orgulho da população negra, são os mesmos que a impossibilitam de acolher a menina Geni. A perspectiva que a (de)formou é embaçada pelo racismo de tal modo que a impede de enxergar a potência, a criatividade e o afeto na criança negra, conectando-se à pesquisa de Sherick Hughes, comentada anteriormente.
Situações como essa, que se disfarçam de educação, aniquilam as possibilidades de aprendizagem, de vínculo, do bem-viver de estudantes negras/os, culminando na morte do coração.
“Pó de tijolo” ou as políticas pedagógicas de branqueamento
É pressuposto da Educação Integral, e de qualquer processo que se propõe a ser efetivamente educativo, o olhar respeitoso para a outra pessoa. Muito mais do que currículo, a Educação deve ser compreendida enquanto processo de humanização coletiva e compartilhada, que se constrói a partir das trocas.
A sequência de violências sofridas por Geni na escola culmina numa cena extremamente dolorosa. Este episódio é constitutivo da identidade da personagem Geni, uma espécie de virada de chave – a tal da metamorfose? – por expô-la de maneira tão cruel ao racismo, à falta de afeto e de acolhimento, aniquilando sua auto-estima e auto-confiança. O racismo machucou tanto por dentro que a vontade foi machucar por fora com pó de tijolo para tirar a negritude à força, pensando ser ela a culpada do sofrimento.
Em um processo de mediação de leitura, este texto pode ser relacionado à obra Amnésia, de Flávio Cerqueira (2015)4. Na escultura de mais de um metro em bronze, Cerqueira representa uma criança negra entornando um balde de tinta branca sobre sua cabeça, simbolizando as consequências das estratégias de branqueamento das populações negras no Brasil. Estimular a intertextualidade entre obras é uma estratégia importante a ser promovida na mediação, pois a intertextualidade, além de ser uma habilidade essencial para a compreensão e produção de textos, ajuda a descentralizar a experiência de auto-ódio da menina Geni, negando a interpretação de um possível ‘não-gostar’ individual e explicitando-a enquanto uma experiência coletiva, fruto do racismo sofrido pela população negra, retratada, inclusive, em diferentes produções artísticas.
Este debate é fundamental, uma vez que o racismo e suas consequências são recorrentemente encaradas enquanto um problema do negro que, insatisfeito com sua condição de negro, busca aproximar-se da estética e de valores brancos, na tentativa de dissolver suas características raciais. O curta-metragem Kbela (2015) surge como um interessante contraponto para o debate ao apresentar a experiência de mulheres negras que, a partir de seus cabelos crespos, reconectam-se à força e à sabedoria ancestrais, possibilitando transcender a ideologia do embranquecimento.
As obras de literatura afro-brasileiras revelam-se aliadas pedagógicas, uma vez que elas contribuem para o questionamento da narrativa hegemônica brasileira, não só ocupando as prateleiras das livrarias e bibliotecas com temas e personagens esteticamente diversos, mas também ressignificando os efeitos do tráfico transatlântico, pois negam a ideia de desumanidade negra proposta pela colonização a partir da linguagem literária.
Ao colocar em prática o direito de lembrar, contar e fruir as histórias afro-brasileiras, como fazia Vó Rosária, será possível, pouco a pouco, resgatar a humanidade. Ao adentrar nas salas de aula, narrativas como as da escritora Geni Guimarães podem ser vistas enquanto movimento de aquilombamento pedagógico e cultural, que tenta estabelecer uma amarração epistemológica e identitária a partir das negras-narrativas-coletivas, reescrevendo memórias, construindo o presente e sonhando futuros.
Notas de rodapé
1. Em 1989, Leite do Peito é adaptado para o que veio a ser a obra ‘A cor da ternura’, vencedora dos prêmios Jabuti e Adolfo Aisen.
2. A pesquisa atualmente só está disponível em inglês. Disponível em: Racialized emotion recognition accuracy and anger bias of children’s faces.
3. Para Chimamanda Ngozi Adichie, uma “história única” é uma narrativa limitada e repetida sobre um grupo ou cultura, que reduz sua complexidade e diversidade, levando a estereótipos e mal-entendidos. A autora falou sobre o tema num TEDtalk realizado em 2009. Confira o vídeo em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?subtitle=en&geo=pt-br
4. Flávio Cerqueira, artista plástico brasileiro, é natural de Salvador. Ele combina influências da cultura afro-brasileira com uma estética contemporânea, explorando temas de identidade e memória em suas obras. Você pode conferir a obra em: https://flaviocerqueira.com/trabalhos/920-2/
Referências bibliográficas
ADICHIE, C. O Perigo da História Única. Vídeo da palestra da escritora nigeriana no evento Technology, Entertainment and Design (TEDGlobal 2009). Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?subtitle=en&geo=pt-br
CERQUEIRA, F. Amnésia. 2015. Escultura látex sobre bronze. Disponível em: https://flaviocerqueira.com/trabalhos/920-2/
GUIMARÃES, G. Leite do Peito. São Paulo: Editora Mazza, 2001.
HALBERSTADT, A. G.; COOKE, A. N.; GARNER, P. W.; HUGHES, S. A.; OERTWIG, D.; NEUPERT, S. D. Racialized emotion recognition accuracy and anger bias of children’s faces. Emotion, v. 22, n. 3, p. 403–417, 2022. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/2020-45460-001
hooks, b. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo Martins Fontes, 2013.
KBELA. Direção: Yasmin Thayná. Produção Erica Candido e Monique Rocco. Rio de Janeiro: s.n., 2015. 1 vídeo (21m). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LGNIn5v-3cE&t=4s
Sobre a autora
Lara Rocha: Eu me chamo Lara, sou uma educadora baiana-paulistana que vira e mexe inventa de escrever umas reflexões sobre educação. Eu sou mestra em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, em que desenvolvi uma pesquisa sobre Literatura Afrobrasileira e Educação Antirracista. Atualmente, eu sou gestora da área de Educação do CEERT, uma organização negra que atua há mais de 30 anos em prol da equidade racial. Eu fui professora de Língua Portuguesa e coordenadora pedagógica da Rede Municipal de São Paulo, eu trabalhava com a meninada do Fundamental 2. Meu grande chamego da Educação é ser coordenadora pedagógica no Cursinho Popular Florestan Fernandes, onde estou desde 2012. No mais, transito por diversos espaços, sempre falando de literatura, relações raciais e educação.
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