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Leituras de mundo: aprender a ouvir se escutando

Leituras de mundo: aprender a ouvir se escutando

texto - Renata Santos Rente; ilustração - João Pinheiro

04 de setembro de 2024

Na Ponta do Lápis

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O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

Manuel de Barros, 1998

E se nos aventurássemos a tecer com as/os estudantes um percurso no qual aprender a fazer perguntas é mais importante do que oferecer respostas?

Na construção de uma educação integral, que acolha as diferentes epistemologias e reconheça as desigualdades históricas presentes em nossa sociedade, o domínio de conteúdos e conhecimentos isolados dá lugar à importância de relacionar saberes e experiências considerando as diferenças e os conflitos que marcam a formação dos sujeitos em suas múltiplas dimensões.

Esse deslocamento nas concepções de ensino e aprendizagem dialoga com a proposta do professor Lynn Mario T. Menezes de Souza (2011), que propõe uma redefinição do conceito de “Letramento Crítico”. Com base nos ensinamentos de Paulo Freire, Lynn Mário destaca a importância de “aprender a escutar/ouvir” e de “preparar aprendizes para confrontos com diferenças de toda espécie (2011, p.1)”.

No letramento crítico, a leitura, e não apenas a escrita, é reconhecida como um processo ativo e relacional que também produz significação. Aprender a ler, nessa acepção, é um processo que inclui o que chamamos de “leitura de mundo”. E a criticidade estaria “não apenas em escutar o outro em termos de seu contexto de produção de significação, mas em também se ouvir escutando o outro (Souza, 2011, p.6)”.

Quando lemos um texto, ou nos relacionamos com a palavra do “outro”, não estamos apenas desvelando significados que têm origem na intencionalidade e no contexto do enunciador, nós estamos também produzindo significação com base nos valores que se originam na coletividade sócio-histórica a que pertencemos.

Essa compreensão nos ajuda a pensar caminhos para a construção de diálogos com base na aprendizagem da escuta e na busca de formas de interação em que as diferentes leituras de mundo não sejam silenciadas por uma forma de ler tornada dominante.

Cartografias afetivas

O poema de Manoel de Barros traz uma provocação para refletirmos sobre experiências de contato marcadas pela diferença e pelo conflito, diferença nos modos de “ler” e conceber o mundo, a paisagem. De um lado, a visão do eu lírico, para quem a volta que o rio fazia era a “imagem de um vidro mole”, e do outro, a visão do homem que “passou e disse” que essa volta se chamava enseada.

O que essa experiência de contato nos traz de familiar quando consideramos a história do Brasil? Estamos diante do gesto de nomeação de um observador externo, que passa pela paisagem e classifica os elementos que a compõem com base em uma leitura do mundo que se pretende universal: “enseada”.

A princípio, esse gesto pode parecer pedagógico, bem intencionado e inofensivo, mas a leitura do poema nos convida a perceber algumas nuances. O eu lírico estabelece a proximidade como contraponto ao distanciamento do observador externo. A imagem da cobra de vidro evoca a experiência de quem vive com, de quem convive com o rio.

O conceito de enseada, por sua vez, é inseparável do gesto do observador, que, com o seu “conhecimento”, pretende esclarecer ao “outro” de que aquela forma do rio tem um nome, gesto que pretende corrigir a visão “ignorante” de quem desconhece o conceito.

O poema faz parte d’O livro das ignorãças, no qual o autor elabora um tratado cujos ensinamentos envolvem um processo de desaprender. O título combina dois signos opostos, o “livro”, que representa a cultura letrada, e a “ignorância”, que socialmente representa a sua falta. Ao adotar a variante “ignorãça”, o desvio da escrita padrão se inscreve também como desvio da significação convencional da palavra1. Na gramática disruptiva da obra de Manoel de Barros, esse desvio da significação convencional, muito comum na linguagem poética, vai além dos recursos que conhecemos como neologismo ou figuras de linguagem.

A imagem da “cobra de vidro”, a ternura que o rio carrega, o delírio do verbo na fala da criança que escuta a cor dos passarinhos2 são construções que extrapolam os limites da metáfora, da personificação e da sinestesia. Sugiro pensar que, para traduzir nesses termos o uso que o poeta faz da linguagem, teríamos de pressupor que partilhamos todos de uma cosmovisão desencantada que só reconhece a voz humana, que só se exprime num idioma capaz de nomear todas as coisas e na qual as sensações só podem ser experimentadas com contornos fixos e predefinidos.

No poema que estamos examinando, podemos dizer que a visão do eu lírico evoca a ignorãça como parte de uma cosmovisão de quem tem parentesco com seres não humanos: rios, peixes, aves, insetos, árvores, rãs. É como se o poeta, ao evocar a imagem da cobra de vidro como experiência que se apresenta fora dos limites definidos pelo conceito, se irmanasse com todos esses seres que a cultura letrada observa, sistematiza, classifica e separa do humano.

O nome, como resultado de um gesto sem diálogo e sem escuta, empobrece a imagem, pois impõe uma visão desencantada como referência para a relação com aquilo que existe e, assim, delimita os contornos do conhecimento sobre o que existe.

O gesto do eu lírico inscreve sua leitura da paisagem desde a proximidade do rio em relação à sua casa. Não estamos diante da visão de alguém que observa o rio como algo separado dele, de quem está em um lugar qualquer, que tem um rio igual a outro qualquer. Esse gesto faz lembrar o trecho de um depoimento de Ailton Krenak:

Estive muito envolvido na pesquisa da arqueologia da minha tribo. Uma atitude que tenho é a de eleger como prioridade para o meu trabalho a junção do que nós poderíamos chamar de “cacos”, no sentido de fragmentos da história e da memória de uma pequena tribo que, por um tempo, foi total no sentido de autoconhecimento, de saber tudo sobre si mesma, de viver em comunidade e de compartilhar de uma mesma visão do mundo. Depois que os brancos chegaram, foi quebrada essa unidade que a nossa memória nos possibilitava. Quebraram o vínculo com o nosso passado, a conexão com os ancestrais, com o mundo mágico, com o espírito da montanha, com o espírito das águas, com o espírito do vento, o grau de parentesco que cada uma das montanhas guardava com a nossa família. Ou o jeito de chamarmos o rio, que para nós não é só um acidente geográfico, é um ser que tem humor: ele fica bravo, ele batiza nossos filhos; ele dá remédio, ele cura. Quando meu filho, ainda pequeno, estava na idade dos ritos de iniciação, fui apresentar ele para o Rio. Apresentar o menino para o Watú, pedindo saúde e luz para o caminho do menino, colocá-lo dentro d’água, cantar, dançar, conversar com o rio (Krenak, 2005, p. 52, 53).

Nesse mesmo depoimento, Ailton Krenak, ao falar do contato com o branco, além das guerras travadas na conquista do território, menciona também as expedições realizadas “naquele modelo antigo, colonial”, em que pesquisadores de várias áreas vinham “coletar material e reunir um acervo de conhecimento sobre os povos e sobre o ambiente onde viviam”, levando para a Europa “amostras de plantas, de seres e, eventualmente, de gente também” (Krenak, 2005, p. 50). Ele nos conta sobre um grupo de cientistas que viveu mais de um ano no acampamento de sua tribo se dedicando a fazer o registro fonético da fala de seu povo, “aprendendo a ouvir e grafar” uma língua que desconheciam e que nunca havia sido registrada por escrito.

Esse depoimento traz aspectos significativos para a nossa reflexão sobre experiências de contato. O gesto do observador externo no poema nos lembra a figura dos viajantes, naturalistas e cientistas que realizavam expedições para identificar, classificar e produzir conhecimento sobre o território e os povos que nele viviam.

Outro aspecto significativo é a relação com o rio, com o jeito de chamar o rio, que na cosmovisão do povo Krenak, “não é só um acidente geográfico”, é um ser vivo que tem humor e conversa.

O “momento do não-entendimento” como espaço para aprender3

Denilson Baniwa4, no programa Roda Viva5 em que Ailton Krenak esteve no centro da roda, fez uma pergunta interessante ao entrevistado: “o que os rios ou a floresta podem falar para uma sociedade onde as crianças acreditam que o leite nasce em caixinhas de supermercado?”

Em sua resposta, Ailton Krenak comenta que esse abismo cognitivo, isto é, o que impossibilita que a voz desses seres possa ser ouvida pela sociedade da mercadoria, foi instalado com a naturalização da reprodução em série das coisas.

Krenak, retomando a fala de Davi Kopenawa Yanomami6, chama atenção para o caráter mágico do mundo da mercadoria, no qual as coisas aparecem prontas e as pessoas podem simplesmente consumir. É o pensamento mágico de uma sociedade que faz a água aparecer na torneira e o leite nas prateleiras do supermercado, um pensamento tão fantástico que faz as pessoas acreditarem que o capitalismo pode destruir esse mundo e criar outro.

A resposta de Krenak se aproxima do processo de letramento crítico proposto por Lynn Mário, pois Krenak faz uma provocação a essa sociedade que não consegue se ouvir escutando. Parece que ele nos diz que é inútil tentar traduzir a cosmovisão dos povos indígenas – que aprenderam a escutar a voz da floresta, das montanhas e dos rios – para essa sociedade que se alienou de si mesma e se acostumou a ver a natureza como um bem de consumo inesgotável. Parece que Ailton Krenak nos diz que para se aproximar da cosmovisão desses povos, para ouvir o que diz a floresta, os rios e as montanhas, é preciso aprender a se ouvir escutando.

Uma importante mensagem vem sendo passada por lideranças como Ailton Krenak e Davi Kopenawa Yanomami: não é apenas a existência dos povos indígenas que está ameaçada. A exploração predatória dos recursos da terra também ameaça a sobrevivência das populações socializadas pela mercadoria.

Como se aproximar de vozes como a de Ailton Krenak sem nomear a cosmovisão de seu povo como algo mais próximo da fábula e do folclore, ambos desacreditados pelo discurso científico?

Como exercitar a escuta para algo que não faz parte da forma como aprendemos a ler o mundo?

Como meninas e meninos que cresceram numa cidade urbanizada, com rios canalizados e poluídos podem ouvir, se aproximar e se relacionar com um depoimento como o de Krenak?

Como pessoas que nunca olharam para o rio como um ser vivo podem ouvir e conversar com o rio?

Esses questionamentos são fundamentais para um processo de formação orientado pela perspectiva da educação integral, pois para acolher diferentes epistemologias, saberes e cosmovisões tornadas outras – distantes, marginais, riscadas do mapa –, a educação das novas gerações precisa ir além da mera incorporação dessas vozes silenciadas no repertório de saber instituído pelo ensino tradicional. É preciso construir possibilidades de diálogos baseadas na aprendizagem da escuta, estimular as/os aprendizes a reconhecer o caráter relacional do conhecimento, aprendendo a se ouvir escutando.

“Outras maiores perguntas”7

Vivo numa grande cidade que se construiu a partir da invasão de territórios indígenas. Nessa cidade, existem muitos rios e a maioria se encontra hoje soterrada pelo asfalto. Cresci aprendendo a não ver esses rios ou vê-los como um esgoto a céu aberto.

Certa vez, esperando o trem nas margens do rio Pinheiros, fui surpreendida pela pergunta de uma moça que estava de passagem na cidade. Ela perguntou porque o rio era daquele jeito, com o aspecto de uma coisa morta, e eu não soube responder. A pergunta me provocou um estranhamento que não tinha experimentado antes. Carrego esse estranhamento comigo como forma de não aceitar a visão desencantada que “explica” a morte do rio e me faz aceitá-la como natural.

Tento imaginar como eram os rios antes da invasão desse território. Tento estranhar esse pensamento mágico do mundo da mercadoria que perpassa o repertório de um saber instituído, separado, hierarquizado e catalogado em tópicos de ensino da língua, da geografia, da história, da matemática, das “ciências” etc.

A construção do diálogo entre diferentes leituras de mundo nos convida a reconhecer que mais importante do que encontrar respostas é aprender a ouvir e fazer novas perguntas.

 


Notas de rodapé

1. Utilizo, aqui, a terminologia “variante” e “desvio” com base na abordagem da sociolinguística que trouxe avanços significativos para o estudo e o ensino da língua. Esses termos cumprem um papel importante no reconhecimento da heterogeneidade da língua, da diversidade de usos e da multiplicidade de modos de falar. Graças a esse reconhecimento, hoje temos base científica para dizer que uma pessoa que fala ou escreve de uma forma diferente da norma padrão não está falando ou escrevendo “errado”, mas utilizando uma variante ou desviando da norma. Entretanto, venho refletindo sobre o quanto essas noções de desvio e variante ainda operam dentro de uma perspectiva normativa do uso da língua, na qual a variante padrão se apresenta como a norma desejável e os desvios e “outras” variantes são apresentadas como exceção. Para uma aproximação com essa discussão, recomendo a leitura do texto “O Pretuguês de Carolina Maria de Jesus e o Português de Regina Dalcastagne: carta aberta à escritora Conceição Evaristo”, de Gabriel Nascimento (2023). Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/93199/54460.

2. Esses exemplos parafraseiam alguns versos de poemas d’O livro das ignorãças.

3. Trago, aqui, uma formulação de bell hooks que dialoga com esse exercício de aprender a ouvir: “[...] proponho que nós não precisemos necessariamente ouvir e saber o que é enunciado em sua totalidade, que nós não precisemos “dominar” ou conquistar a narrativa no todo, que nós possamos conhecer em fragmentos. Eu proponho que nós possamos aprender com os espaços de silêncio tanto quanto com os espaços de fala, que no ato paciente de ouvir uma outra língua nós possamos subverter esta cultura de frenesi e consumismo capitalista que exige que todo desejo deve ser satisfeito imediatamente” (hooks, 2008, p. 863).

4. CARTAS INDÍGENAS DO BRASIL. Denilson Baniwa. 202?. Disponível em: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/sobre/

5. RODA VIVA. Entrevista com Ailton Krenak dia 21 de abril de 2021. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BtpbCuPKTq4&ab_channel=RodaViva

6.  FFLCH - ENCICLOPÉDIA de antropologia. Davi Kopenawa. 2021. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/davi-kopenawa

7. Essa expressão é de um trecho do romance Grande Sertão: Veredas, do escritor João Guimarães Rosa: “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas” (Rosa, 1978, p. 312).

 


Referências bibliográficas

BARROS, Manuel de. O Livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1998.

CARTAS INDÍGENAS DO BRASIL. Denilson Baniwa. 202?. Disponível em: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/sobre/

FFLCH - ENCICLOPÉDIA de antropologia. Davi Kopenawa. 2021. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/davi-kopenawa

hooks, bell. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 3, p. 857, 2008. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2008000300007/9136.

KRENAK, Ailton. O resgate do mundo mágico. In: PEREIRA, Jesus Vazquez; WORCMAN, Karen (Org.) História Falada: Memória, Rede e Mudança Social. São Paulo: Museu da Pessoa, SESC SP 2005. Disponível em: https://museudapessoa.org/wp-content/uploads/2021/06/historia_falada2.pdf.

RODA VIVA. Entrevista com Ailton Krenak dia 21 de abril de 2021. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BtpbCuPKTq4&ab_channel=RodaViva

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Para uma redefinição de letramento crítico: conflito e produção de significação, 2011. Disponível em: https://www.academia.edu/595539/Para_um_redefini%C3%A7%C3%A3o_de_letramento_cr%C3%ADtico_conflito_e_produ%C3%A7%C3%A3o_de_significa%C3%A7%C3%A3o.

 

Sobre a autora

Renata Santos Rente: Eu nasci na zona leste de São Paulo. Eu sou filha e neta de migrantes nordestinos, descendentes de africanos e indígenas. Eu sou da primeira geração da família a concluir o ensino superior. Tenho graduação em Letras, mestrado em Geografia e doutorado em Teoria Literária. Atualmente, eu me dedico a estudar autorias negras e indígenas, tendo em vista o modo como as relações interculturais no Brasil se manifestam na literatura, na língua e nas relações com o território.

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