"Centenas de povos indígenas e suas línguas habitam, cultivam e preservam o território multicultural do nosso país."
Catucá: de passagem por uma comunidade educadora
Catucá: de passagem por uma comunidade educadora
texto - Fernanda Mendes Soares Barreiros; ilustração - João Pinheiro
04 de setembro de 2024
Na Ponta do Lápis
A Unidade de Ensino Fundamental Catucá, localizada dentro da comunidade quilombola Catucá, em Bacabal (MA), tem 26 alunas e alunos que frequentam desde a Educação Infantil até os anos iniciais do Fundamental.
Em uma conversa com a jornalista Stephanie Kim Abe1, Vanderlucia Cutrim de Sousa, a atual gestora da escola, conta que o corpo docente é formado por três professoras responsáveis por mediar três turmas multisseriadas. Combinar estudantes de diferentes etapas exige uma metodologia de trabalho singular e intimamente conectada à compreensão dos diversos estágios de aprendizagem e formas de aprender presentes em uma mesma sala de aula. Ela relata, por exemplo, que a disposição das carteiras não segue o modelo tradicional, enfileiradas uma atrás da outra, mas são postas em semicírculos ou em dupla, de modo que uma criança que tenha mais dificuldade possa estar acompanhada de outra com maior desenvoltura para lidar com determinados conteúdos. Apesar das críticas frequentemente associadas a esse modelo de organização, essa foi a forma encontrada pela gestão da unidade escolar para melhor acolher as necessidades e demandas de suas turmas que, em contrapartida, têm alcançado resultados bastante positivos: “hoje nós conseguimos entregar os nossos alunos do quinto para o sexto ano todos alfabetizados”, afirma a gestora.
A perspectiva de educação exercida por essa unidade de ensino no território quilombola Catucá parte de um princípio aparentemente muito simples: a escola é parte de uma comunidade, e a comunidade também é educadora.
Vanderlucia conta do profundo envolvimento que o Quilombo Catucá vem tramando com a escola – “[...] é aquela escola que está lá e a pessoa está vindo da horta ou do trabalho e encosta para conversar, para tomar um café, abrir a porta da sala e dizer bom dia. É uma relação muito estreita porque as pessoas têm ciência que a escola é delas”.
Essa presença diligente das pessoas é essencial para que a escola pense a educação de suas alunas e alunos tomando como referência os saberes que são da comunidade e estão conectados às dinâmicas sociais daquele território, compondo, portanto, junto ao currículo formal, o que é matéria de ensino e aprendizagem. Neste sentido, Vanderlucia defende que a construção do conhecimento deve ser feita no coletivo e com os quilombolas: entram na escola “as tias de todo mundo” com o entendimento sobre as ervas medicinais, com as receitas dos xaropes, dos lambedores2, dos chás, do benzimento; entram ainda os jogos de tabuleiro africanos e indígenas, confeccionados com a ajuda do senhor Valdemar Rodrigues, vigia da escola e morador do quilombo, e que muito contribuem para a oferta de materiais pedagógicos em diálogo com as questões étnico-raciais.
Vanderlucia não apenas mantém as portas da escola abertas para a comunidade como também circula por ela, observando os diversos modos de viver e de ocupar o território manifestados pelas pessoas que ali habitam. Foi numa dessas andanças que veio a inspiração para criar a Catucateca dos Terreiros, uma biblioteca escolar, mas de natureza comunitária.
A ideia surgiu em 2020, ano pandêmico, quando a gestora e outras professoras organizavam materiais e atividades impressas, junto a livros paradidáticos – “um meio de dar ludicidade, de dar leveza para aquele momento” –, e distribuía entre as alunas e alunos para manter um vínculo com a escola e com as práticas de ensino. “Eu fazia aquele passeio pelo quilombo e via as crianças lendo debaixo dos pés de atracas3, no alpendre de suas casas, naquela mesinha que a mãe organizava ali debaixo do pé de árvore. Então eu disse, vamos lá de Catucateca dos Terreiros! E as meninas questionavam, mas como dos terreiros Vanderlucia? E eu disse, é porque ela vai estar em todos os terreiros, como sempre esteve”.
A leitura, as contações de história, as brincadeiras e os jogos que durante a pandemia ocuparam os alpendres das casas avistadas por Vanderlucia se tornaram presentes também no terreiro da escola. E assim se materializou a biblioteca da U.E.F Catucá: com seu acervo exposto em balaios, esteiras e cavaletes manufaturados pelas/os quilombolas, as/os frequentadoras/es do lugar possuem autonomia para retirar qualquer material e fazer o registro do empréstimo. Não há tempo definido para a devolução porque “na Catucateca dos Terreiros você tem o seu tempo de leitura”. As crianças da escola também se engajaram na organização deste espaço e exercem uma espécie de gestão do cuidado: são elas que deixam os livros expostos no início do dia, guardam tudo no fim da tarde e zelam pelo retorno dos títulos emprestados.
Em outra andança pelo Quilombo de Catucá, Vanderlucia se aproximou de Maria Miranda, que conta brevemente sobre esse encontro em um vídeo produzido pelo CEERT, no contexto do prêmio Educar para a Igualdade Racial e de Gênero4: “ela chegou e me viu aqui cantando, em minha casa mesmo, e ela disse ‘você tem esse segredo há um bocado de ano?’, e eu disse ‘tenho’, e ela mandou fazer o tambor”.
Maria Miranda é coreira5 do Tambor de Crioula, uma manifestação cultural típica do Maranhão, reconhecida como Patrimônio Imaterial Brasileiro6 desde 2007. Tornou-se professora de tambor e dança na unidade de ensino, formando um grupo junto às alunas. Essa é uma das ações mais concretas presente no cotidiano da escola hoje, e que melhor reflete a identidade e resistência do Quilombo Catucá. Vanderlucia diz: “a gente não tem um dia específico para dançar Tambor de Crioula. A gente dança na segunda-feira, na terça, na sexta-feira, dança no dia de São Benedito, ou não dança no dia de São Benedito. A gente dança para te receber se você for ao nosso quilombo”.
A Catucateca dos Terreiros e o Tambor de Crioula são ações desenvolvidas pelo projeto Identidade, Resistência e Educação Escolar Quilombola, que encontra terreno fértil na U.E.F Catucá desde 2013. Ao longo dos anos, a escola buscou delinear uma proposta de educação que convoca a participação ativa, tanto de estudantes quanto da comunidade onde está inserida, para uma elaboração colaborativa de saberes e práticas que integram as dimensões do que é próprio da realidade e do contexto local ao que é já convencionado como conhecimento inscrito numa tradição científica ampla, da humanidade.
É neste arranjo de múltiplos saberes, aprendizagens e possibilidades que Vanderlucia enxerga a função social de sua escola e o seu compromisso com uma “educação em que o cidadão se desenvolva de forma integralizada culturalmente, socialmente, politicamente”. Ainda segundo a gestora, é preciso “alimentar a subjetividade das crianças para que elas se construam empoderadas, com conhecimento e emancipadas para que possam se defender [do racismo] e viver em outros territórios”.
Para o Quilombo de Catucá, portanto, a educação passou a ser de interesse coletivo. Dessa forma, os processos de continuidade e permanência de suas crianças e jovens no sistema de ensino, o resgate da cultura e da identidade do território e a construção de uma escola com a cara das crianças, de uma escola quilombola, é uma aposta que toda a comunidade faz, cotidianamente e integralmente, em seu próprio futuro.
Notas de rodapé
1. Stephanie Kim Abe é jornalista do Cenpec e conversou com Vanderlucia Cutrim de Sousa, gestora da Unidade de Ensino Fundamental Catucá, sobre algumas práticas pedagógicas que dialogam com o princípio da educação integral. Essa conversa alimentou as reflexões propostas neste texto e apresentou algumas das ações desenvolvidas por essa escola maranhense.
2. Lambedores são xaropes caseiros preparados com plantas medicinais, açúcar ou mel, utilizados no combate aos sintomas de gripes e resfriados.
3. Segundo a própria Vanderlucia, atracas são “pés de árvore” bastante comuns nos alpendres das casas do Quilombo Catucá. Os pés de atracas, em algumas regiões do Brasil, também são conhecidos como plantas que se desenvolvem em palmeiras, numa relação ecológica parasitária.
4. Criado no início dos anos 2000 pelo CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), o prêmio Educar para a Igualdade Racial e de Gênero tem como objetivo identificar, apoiar e dar visibilidade às iniciativas pedagógicas desenvolvidas por docentes e gestoras/es em todos os níveis de ensino, nas cinco regiões geopolíticas do país, e que buscam a equidade e igualdade étnico-racial e de gênero na Educação Básica. As experiências da Unidade de Ensino Fundamental Catucá foram registradas neste vídeo, disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=2HVHKA7p0mk.
5. Coreiras são mulheres que realizam uma dança de movimentos circulares enquanto os cantadores e tocadores, com suas vozes e seus tambores, ditam o ritmo da roda.
6. De acordo com o IPHAN, o Tambor de Crioula é uma “forma de expressão de matriz afro-brasileira que envolve dança circular, canto e percussão de tambores”. Para saber mais, consulte o dossiê completo disponível em PDF no endereço eletrônico http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/dossie15_tambor.pdf.
Sobre a autora
Fernanda Mendes Soares Barreiros: Eu nasci na rua do Campo do Atlético Goianiense, mais conhecido como Castelo do Dragão, em Goiânia, Goiás. Eu sou graduada em Letras pela USP e mestranda no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela mesma universidade. Iniciei minha trajetória como mediadora de leitura em ocupações urbanas de luta por moradia, na cidade de São Paulo e, desde 2018, realizo rodas literárias com as leitoras da Penitenciária Feminina da Capital (PFC-SP). Atualmente, eu sou também consultora de projetos do Programa Escrevendo o Futuro.
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