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As quizambas1 da Educação Integral: uma perspectiva a partir do amor e da descolonização

As quizambas1 da Educação Integral: uma perspectiva a partir do amor e da descolonização

texto - Lara Rocha; ilustração - João Pinheiro

04 de setembro de 2024

Na Ponta do Lápis

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Inicio a escrita desse texto poucas horas depois de voltar de um passeio de barco pelas praias de Boipeba. Dei a sorte de fazer o passeio com Renato, um guia nascido na ilha, que resolveu fugir da rota vendida pela agência para, além das paradas nas piscinas naturais, nos levar por uma trilha pelo manguezal. Cresci em Salvador. Já havia ido diversas vezes ao mangue. Mas, mais do que um passeio para observar esse ecossistema tão rico, o que me marcou desta vez foi o encantamento e orgulho presentes na fala de Renato. Como disse, conhecer o Mangue não é parte do roteiro oficial, mas Renato cresceu ali, acompanhando seu pai e avô, pescadores, com quem aprendeu muito do que sabe sobre a região. Por saber da riqueza do local, assim como dos preconceitos existentes sobre o mesmo, decidiu incluí-lo em sua rota. Assim, por quase uma hora, caminhamos entre as quizambas enquanto escutávamos atentamente suas palavras empolgadas e observávamos o movimento de seres até então invisíveis para nós, mas rapidamente avistados por Renato.

Quando penso em Educação Integral, penso justamente nesses saberes que são construídos de modo holístico e orgânico a ponto de, 30 anos depois, ainda gerarem encanto. Renato conta dos cursos que fez junto a ONG’s e a órgãos como o IBAMA2, e sabe da relevância dessas aprendizagens. Entretanto, é reconhecido por ele que a base do que sabe sobre seu território, além dos truques para lidar com a vida e que hoje são importantes para seu trabalho, não surgiram dos materiais didáticos. A diferença entre um guaiamum, um aratu e um caranguejo; do mangue-branco, vermelho e preto; a importância da andada do caranguejo para a comunidade, ainda que não se possa catá-lo e comercializá-lo durante o acasalamento e a desova. Nada disso, do jeitinho que nos foi contado, cabe apenas nos livros.

Volto para a escrita pensando em como construir uma Educação que transcenda a transmissão de conteúdos acadêmicos, abraçando os conhecimentos que emergem da relação íntima com o território e com a comunidade e enxergando estudantes como sujeitos integrais, que já sabem um tanto e que devem ter vontade de aprender um tanto mais.

A Educação Integral, para mim, é sinônimo da prática da liberdade (hooks, 2013; Freire, 1967), em que todas as pessoas são convidadas a exercerem sua autonomia com responsabilidade e a expressarem suas identidades sem medo de discriminação ou exclusão. Vale dizer que não trato, aqui, da Educação em tempo integral, nem de uma modalidade específica, mas do conceito que, inclusive, vai além da educação formal escolar.3

A aprendizagem significativa, aquela que alcança e permanece no íntimo, parte de um processo de ensinar que respeita e protege as almas de nossas/os estudantes (hooks, 2013). Sendo assim, a Educação Integral, que visa garantir essa aprendizagem, abraça a complexidade do ser humano em todas as suas dimensões: física, cognitiva, intelectual, afetiva, social e ética, reconhecendo-o como parte de um contexto relacional. O desenvolvimento pleno dessas dimensões é essencial para a formação cidadã, inserido numa construção democrática de sociedade.

Nesse sentido, o olhar comprometido para as questões raciais e de gênero não pode ser um recorte ou um tema transversal da Educação Integral. Elas são fundamento para a construção de uma educação de qualidade e que de fato encarem educadoras/es e educandas/os como sujeitos.

Perguntamo-nos então: como transformar a escola num espaço de acolhimento das diferenças? Em primeiro lugar, precisamos entender que isso não significa encarar todos como iguais. bell hooks, ao refletir sobre o tema, compreende que as pessoas não estão dadas, previamente constituídas. As pessoas são únicas. A sala de aula é única. E uma boa aula só acontece quando quem ensina se dispõe a aprender também. A educação como prática da liberdade não tem como ser transformadora só para as/os estudantes. A ideia equivocada e bobamente (ou estrategicamente?) repetida por tanto tempo de que aluno é um ser sem luz, que está ali para aprender o que precisa antes de começar a viver de verdade, não condiz com a Educação Integral. Quando assumimos um olhar integral para o outro e para nós mesmos, nossos corpos e mentes devem estar presentes e dispostos a se transformar com aquele grupo. Afinal, isso é aprender.

Sendo assim, para alcançar essa visão de Educação Integral, é necessário reconhecer e valorizar os saberes construídos na resistência, como os saberes indígenas, quilombolas, ribeirinhos, que há tanto tempo são marginalizados e silenciados. É uma jornada de descolonização pedagógica, que envolve concepções e práticas, e de promoção de uma educação que seja verdadeiramente inclusiva e emancipatória.

É preciso reconhecer a existência de uma lacuna significativa em nossa formação que compromete a qualidade do ensino. E pensar uma Educação Integral perpassa por confrontar essa grande lacuna provocada pela educação eurocêntrica, racista e fundamentada no supremacismo branco, e refletir sobre suas consequências para o projeto de mundo que está posto.

Assim, evoco as palavras de Luiz Rufino no livro Vence-demanda: educação e descolonização, no momento em que reflete sobre o papel da Educação:

A educação diz acerca de práticas cotidianas; pertencimentos coletivos; fortalecimento comunitário; ética responsiva; aprendizagens; e circulação de conhecimentos que reposicionem e vitalizem os seres atravessados pela violência colonial. No caso daqueles que fazem parte do consórcio que se beneficia e lucra com esse sistema de violência secular, a educação exerce o papel de interpelá-los, convocá-los a responder com responsabilidade, situá-los nos múltiplos tempos, espaços e narrativas que são sistematicamente subtraídas para a blindagem de seu protetorado. (Rufino, 2021, p.14)

Em síntese, é parte do processo educativo o nascimento e renascimento coletivo a partir do diálogo, mas também do conflito.

Para que isso se dê de maneira pedagógica, aciono o pensamento de bell hooks, que propõe o amor como ação. Ela defende uma perspectiva do amor sem deixar de lado a importância do conflito e da tensão. Ou seja, reivindicar a raiva e o amor é um compromisso com as nossas humanidades, além de um exercício diário rumo à liberdade. Aqui, amor nada tem a ver com encarar a docência como uma atividade não profissional ou com um sentimento inocente de gostar de todas/os, mas, sim, como paradigma fundacional de nossa existência. É uma compreensão do amor enquanto ética.

Partindo do que defende hooks, a pedagogia do amor é a ferramenta de luta que temos para construir uma Educação Integral. Isso inclui até mesmo aqueles por quem não nutrimos simpatia ou afinidade, mas cuja relação é permeada por uma compreensão do amor como uma força transformadora. Essa força pode abalar e desmantelar estruturas de desvalorização e opressão, construindo, assim, horizontes de igualdade por meio da criação de comunidades.

Na busca pela criação de uma comunidade de aprendizagem4, as/os educadoras/es se aproximam de estudantes com o anseio de compreender a existência única de cada uma/um, mesmo que as circunstâncias não favoreçam completamente o desenvolvimento de uma relação baseada na reciprocidade desta compreensão. No entanto, a oportunidade para esse reconhecimento mútuo está sempre presente.

A partir do reconhecimento e da escuta ativa de cada sujeito, educadoras/es, considerando seu repertório teórico e metodológico, aprendem a permitir que os conhecimentos da turma emerjam e se misturem aos saberes acadêmicos. Assim, desafiamos as hierarquias e encaramos a educação como um processo contínuo de crescimento e transformação coletiva. Vale lembrar que este processo de escuta ativa não é aleatório nem livre de mediação. Ele deve estar baseado numa intencionalidade descolonizadora, no sentido de perceber e assegurar também a fala daquelas/es que muitas vezes são caladas/os numa dinâmica de aula tradicional. Ao ativamente instigarmos suas vozes, reforçando o valor de todas as contribuições e reconhecendo saberes da resistência, praticamos o exercício proposto por Rufino de reposicionar e vitalizar os seres atravessados pela violência colonial. Isso é a construção de uma comunidade de aprendizagem.

Reconheço que este movimento pode ser desafiador e exaustivo em muitos momentos. No entanto, não devemos subestimar o impacto negativo de persistir em uma rotina de ensino baseada em métodos e conteúdos tradicionais. A rotina da linha de produção (hooks, 2013) é muito violenta,para elas/es e para nós.

A diferença crucial entre os cansaços advindos de cada movimento, seja o movimento em direção a uma educação libertadora ou aquele que insiste em práticas da educação bancária5, está em saber que ao menos o primeiro considera a potência que é acreditar em cada estudante como um ser único e empenhar-se na construção de uma comunidade escolar fundamentada em valores que respeitamos e defendemos.

O processo de construção de comunidades de aprendizagem é potente também para docentes, muitas vezes aprisionadas/os numa dinâmica de isolamento profissional que nos torna “professoras/es-ilha”. Não conseguimos trocar com nossos pares; as angústias e conquistas vão e voltam conosco para casa, sobretudo quando somos parte das/os que desafiam a estrutura em espaços onde a transformação só acontece nas brechas. Mas esse sentimento adoecedor pode ser aos poucos desconstruído a partir da ética do amor, proposta por hooks. O amor é fundamental para superar as divisões sociais, combater opressões e criar conexões genuínas entre as pessoas. Assim, encarando-o como prática pessoal e política, criaremos na escola um arquipélago político-pedagógico comprometido com uma educação para a liberdade.

Apesar de muitos aspectos estruturais e de concepção ainda refletirem o modelo clássico de ensino, pequenas revoluções já se tornaram naturais ao cotidiano: meninas e meninos (e menines) numa mesma sala de aula; a presença ativa de estudantes negras/os; as desigualdades raciais e sociais não mais como simples dado, mas influenciando diretamente as políticas públicas, como na construção do VAAR6. Além disso, o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena agora é parte integrante da LDB7, explicitando a materialização dos sonhos de muitas gerações que lutaram para que isso acontecesse, por mais utópico que parecesse.

Como afirma Nei Lopes no poema “História para ninar Cassul Buanga”, “nossos corpos tensos / nossos corpos densos / venceram quase todas as competições”. Quase todas. Ainda temos muito a vencer. Mas insisto, sempre que posso, em apontar o quanto já foi conquistado. A meu ver, é isso que nos alimenta a sonhar mais. Quando lemos bell hooks ou Luiz Rufino e pensamos na nossa sala de aula, aquela com mais de 30 estudantes, com conflitos e precariedades, não parece possível priorizar o amor e a descolonização.

Tomemos a Educação Integral como pilar da nossa prática pedagógica, sabendo que nem sempre a aula será dialogada, nem leve ou lúdica. E tudo bem. É na troca com as pessoas, reconhecendo a potência do diálogo, que nos permitimos aprender e ensinar. É um movimento de retomada das utopias, sem esquecer da realidade.

Eduardo Galeano disse certa feita8 que a utopia serve para não deixarmos de caminhar. Penso que isso dialoga com o que refletimos, aqui, a partir do pensamento de hooks e Rufino. Porque é a utopia e a esperança que se constroem no dia a dia, a partir do que acreditamos, mas, principalmente, do que fazemos, que nos permite caminhar. Sendo assim, seguiremos sonhando (e realizando) sonhos tão bonitos para a Educação. “Porque Zâmbi mandou. E está escrito”.9

 


Notas de rodapé

1. Quizamba é como se nomeiam as raízes do mangue-vermelho, uma das principais espécies arbóreas do mangue, própria de solos lodosos, com raízes aéreas (Santiago, 2017). Elas proporcionam estabilidade ao solo costeiro e a sobrevivência das plantas em ambientes encharcados, e servem como habitat e alimento para diversos organismos. Proponho essa metáfora como alicerce da Educação Integral, considerando-as como estratégias de resistência em um ecossistema por vezes instável ou conturbado, mas extremamente poderoso. Para saber mais, acesse: Atlas dos manguezais do Brasil.

2. IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) é uma autarquia federal brasileira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. É responsável pela execução da política nacional do meio ambiente, promovendo a preservação, conservação e uso sustentável dos recursos naturais.

3. Para entender mais sobre o tema, leia: “Educação integral: um conceito em busca de novos sentidos”, publicado no Portal Saberes e Práticas, do Cenpec.

4. Para bell hooks (2013; 2021), uma comunidade de aprendizagem é um ambiente educacional em que há uma escuta ativa, profunda e respeitosa entre todas as pessoas. Nessa comunidade, o aprendizado é visto como um processo coletivo e colaborativo, onde todas/os têm voz e são valorizadas/os por suas contribuições. É um espaço onde o diálogo aberto e o respeito mútuo são cultivados, permitindo a partilha de experiências, conhecimentos e perspectivas de forma equitativa.

5. Para Paulo Freire, a educação bancária é um modelo opressor onde o conhecimento é depositado passivamente nas/os alunas/os, limitando sua capacidade crítica e transformadora.

6. O critério de Complementação-Vaar (Valor Aluno Ano Resultado) faz parte dos parâmetros para a distribuição de recursos municipais estabelecidos pelo atual Fundeb. Seu objetivo é incidir sobre as disparidades educacionais decorrentes de influências socioeconômicas e raciais.

7. A LDB é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, uma legislação brasileira instituída em 1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Ela contempla aspectos como currículo escolar, formação de professores e financiamento da educação.

8. O vídeo desta entrevista está disponível em diferentes canais no YouTube.

9. Trecho do poema ‘História para ninar Cassul Buanga’, de Nei Lopes.

 


Referências bibliográficas

hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora Martins Fontes. 2013.

__________. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante. 2021.

__________. Ensinando Comunidade: uma pedagogia da esperança. São Paulo: Elefante, 2021.

LOPES, Nei. História para ninar Cassul Buanga. In: Incursões sobre a Pele, Rio, Artium, 1996, pp 23-24.

RUFINO, Luiz. Vence-demanda: educação e descolonização. Rio de Janeiro, Mórula, 2021.

SANTIAGO, Caldo de lambreta: uma etnografia das catadoras da Lucina pectinata na vila de Garapuá, Cairu – BA. In: Revista Vivência, n. 50, 2017.

 

Sobre a autora

Lara Rocha: Eu me chamo Lara, sou uma educadora baiana-paulistana que vira e mexe inventa de escrever umas reflexões sobre educação. Eu sou mestra em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, em que desenvolvi uma pesquisa sobre Literatura Afrobrasileira e Educação Antirracista. Atualmente, eu sou gestora da área de Educação do CEERT, uma organização negra que atua há mais de 30 anos em prol da equidade racial. Eu fui professora de Língua Portuguesa e coordenadora pedagógica da Rede Municipal de São Paulo, eu trabalhava com a meninada do Fundamental 2. Meu grande chamego da Educação é ser coordenadora pedagógica no Cursinho Popular Florestan Fernandes, onde estou desde 2012. No mais, transito por diversos espaços, sempre falando de literatura, relações raciais e educação.

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