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Educação Integral e ensino de Língua Portuguesa: diálogos necessários

Educação Integral e ensino de Língua Portuguesa: diálogos necessários

texto - Gina Vieira Ponte; ilustração - João Pinheiro

04 de setembro de 2024

Na Ponta do Lápis

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Um dos maiores desafios que a educação tem enfrentado nos últimos anos está relacionado ao fato de que ela é um campo estratégico para as mudanças sociais e comportamentais e, por isso mesmo, é um campo de intensa e permanente disputa. Levamos décadas para elaborar, sistematizar e documentar na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases e em tantas outras normativas a concepção de educação que desejamos defender, a educação como direito e como elemento decisivo na promoção de uma formação humana integral. “Educação Integral” é um termo cunhado para abarcar este sentido, um termo que anuncia um campo de estudos e um conjunto de práticas preocupadas em garantir que nos processos formais e informais de educação se consiga ir além da educação transmissiva, bancária e instrucionista e se chegue a uma educação que olhe para a/o estudante em suas várias dimensões: intelectual, física, afetiva, social, histórica e cultural (Freire, 2018, Moll, 2021, Costa, 2024).

A função social da escola é garantir a todas(os) as(os) que passam pelos seus portões o acesso ao conhecimento científico poderoso que nos conecta com o que a humanidade foi construindo como saber, como experiência, como conhecimento, como marco civilizatório ao longo do seu processo evolutivo. Falar de uma educação que se comprometa em olhar para todas as dimensões que constituem as/os estudantes, falar de uma educação que se ocupe de educá-las/los para que construam o pensamento crítico e incidam na sociedade buscando transformá-la é, portanto, falar de uma educação que as/os olhe por inteiro, as/os perceba em sua inteireza, como sujeitos sócio-históricos que são.

Entendendo que a concepção de Educação Integral deve orientar a organização do trabalho pedagógico em todas as etapas e modalidades e no ensino de todos os componentes curriculares, como incorporar às aulas de Língua Portuguesa os princípios, os pressupostos teóricos e as concepções da Educação Integral? Antes de tudo, é necessário destacar que a base histórica do ensino de Língua Portuguesa no Brasil apoia-se na ideia de transformar as diferenças em deficiências. Por muitos anos, o país construiu uma proposta pedagógica de ensino de Língua Portuguesa muito mais sustentada na ideia de confirmar às/aos estudantes das camadas populares a sua suposta incompetência em relação a falar e utilizar a própria língua de forma escrita do que para fortalecer, de fato, os seus saberes e conhecimentos sobre ela (Soares, 2002).

A concepção de sociedade a partir da qual este ensino de língua foi proposto anunciava a condição de subordinação das classes populares às classes dominantes. Parte desta proposta pedagógica envolvia estigmatizar as/os estudantes das camadas mais populares, desqualificando os seus dialetos, os seus registros linguísticos e apresentando o Português como uma língua dominada apenas por um grupo seleto. Também é importante relacionar esta concepção de ensino de língua com a nossa herança colonial. Sendo o Brasil um país de base histórica escravocrata e racista, muitas das teorias produzidas para pensar a educação brasileira, bem como o ensino de línguas, eram reproduções de ideias europeias que partiam da compreensão de que os grupos sociais miscigenados eram considerados incapazes (Patto, 2015).

A nossa riqueza cultural, a nossa diversidade como país está em grande medida materializada na diversidade linguística que nos constitui. Uma vez que a linguagem é o principal produto da cultura, e o principal elemento para a sua transmissão, ignorar a diversidade linguística que nos constituiu é restringir e aligeirar o trabalho realizado no ensino de línguas. Cientes do fato de que, ao longo da nossa história, esta perspectiva do ensino de língua colaborou para tornar a/o estudante a/o única/o responsável pelos resultados pífios que muitas vezes se registra em relação às competências de leitura e escrita, se queremos abraçar a concepção de Educação Integral aqui discutida, é fundamental que haja um trabalho para a mudança de paradigma no ensino de Língua Portuguesa que não comece na escola e, portanto, envolva mudanças estruturais.

Uma categoria teórica e pedagógica central na mudança deste paradigma é o currículo e a maneira como ele é concebido e modelado nos projetos político- pedagógicos das unidades de ensino e pelas/os docentes na escola. No imaginário coletivo, a ideia de currículo evoca uma lista de conteúdos/conhecimentos a serem ensinados, em uma perspectiva prescritiva e a partir da crença de que estes conhecimentos são estáticos e neutros, que não estão posicionados do ponto de vista histórico, social e político. Arroyo (2013) nos lembra de que o currículo, assim como a educação, é um constante campo de disputa. Como afirma Silva (1999, p.147), “o conhecimento corporificado no currículo carrega as marcas indeléveis das relações de poder”. Abraçar a concepção de educação integral que celebramos implica, portanto, ampliar a compreensão do que é currículo, entendendo que, para além de uma lista de conteúdos a serem ensinados, o currículo é uma construção social, “currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso, o currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja a nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade” (Silva,1999, p.150).

Todas as práticas adotadas na escola, todos os discursos enunciados, a forma como as relações sociais são construídas, a maneira como a escola se articula com a comunidade, os princípios que orientam a condução das questões relativas à indisciplina, as/os autoras/es que são selecionadas/os para serem lidas/os, os gêneros textuais que serão pesquisados, a maneira como a escola lida com os saberes prévios das/os estudantes e as lacunas que elas/eles trazem do seu processo de educação formal, todos estes elementos constituem o currículo.

No bojo desta compreensão de currículo reside também o intento de superar a falsa dicotomia que separa a Educação Integral, crítica e inclusiva da formação acadêmica, como se formar para a cidadania e para a diversidade e inclusão fosse algo menor do que ensinar o conhecimento científico poderoso. Se a função primeira da escola é garantir o acesso ao saber, ao conhecimento científico poderoso, como já dito neste texto, a maneira como o currículo é modelado precisa garantir que transversal a todas as práticas pedagógicas em que se busca garantir a cada estudante a construção deste conhecimento, também sejam observados o tempo para brincar, para a convivência, sejam contemplados temas como educação ambiental, educação para a equidade étnico-racial, cidadania, democracia, com destaque para o respeito à identidade linguística da/o estudante. Esta identidade e os usos que ela/ele faz da língua escrita são elementos primordiais para a construção de projetos político-pedagógicos que evidenciem um compromisso genuíno com a formação humana ética, que partam da/do aluna/o real com a/o qual estamos trabalhando e que observem o princípio da territorialização da ação pedagógica.

Olhar integralmente para a/o estudante, em todas as dimensões, respeitando a sua identidade linguística e da comunidade linguística do território a que ela/ele pertence, destaca Guedes (1997), envolve ouvir o que a/o aluna/o tem a dizer no seu dialeto, com a sensibilidade necessária para perceber a riqueza histórica, cultural e social que aquele dialeto carrega, não para mudá-lo, ou para exigir que a/o estudante o abandone, mas para que ela/ele se compreenda como parte daquela comunidade e possa orgulhar-se dela.

Esta postura de genuíno respeito ao saber linguístico da/o aluna/o deve estar intrinsecamente ligada ao compromisso ético de garantir que a/o estudante compreenda a diversidade linguística que nos constitui e tenha a oportunidade de ter um ensino de língua de qualidade teórica, pedagógica e humana. Isto significa criar as condições adequadas para que ela/ele possa pensar de forma sistematizada a gramática da própria língua, os gêneros textuais, as suas convenções e regras de funcionamento e possa conhecer, apropriar-se e fazer o uso do que alguns autores convencionaram chamar de dialeto-padrão, não como um dialeto superior ao seu, mas como o dialeto necessário ao exercício da cidadania, necessário para que esta/este estudante conquiste melhores e mais amplas condições de participação social, política e cultural. Este é um imperativo ético de uma Educação Integral que estabelece um compromisso inegociável com a garantia das aprendizagens (Guedes, 1997, Soares, 2002).

Para garantir este direito, as/os profissionais da educação precisam ainda se compreender como intelectuais orgânicos (Giroux, 1997), precisam ter a sua autoria e autonomia respeitadas, devem ter como elemento norteador do seu fazer pedagógico a premissa de que “a aula de Português não faz sentido se não for dada para leitoras(es). Só a(o) leitor(a) pode ser chamada(o) a ler melhor o que leu e a escrever melhor o que escreveu, pois a noção de melhor, de qualidade, só pode ser construída por quem dispõe de termos de comparação” (Guedes, 1997, p.7). O sentido de ler, aqui, precisa também ser reconfigurado, porque não se restringe à concepção de leitura muitas vezes cristalizada na escola, em que se espera que a/o aluna/o leia apenas para aceitar ou descobrir os sentidos já constituídos como tradicionais nos textos. O que se deve buscar nesta leitura, como nos adverte o grande mestre Paulo Freire, é “uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (Freire, 1989, p.23).

Quanto à leitura, merece destaque também o trabalho com a literatura, a literatura brasileira como este “esforço histórico que construiu uma cultura de resistência ao colonialismo” (Guedes, 1997, p.11), a literatura como espaço de reflexão crítica sobre a realidade, sobre nós mesmos, a literatura como alimento para a imaginação. Em uma escola que se ocupa da Educação Integral, o trabalho com a literatura tem centralidade, porque ela é um dos elementos culturais mais importantes para a formação humana, ética, artística e para o desenvolvimento da capacidade de pensar de forma inteligente e profunda a realidade.

Uma professora e um professor de Língua Portuguesa devem ter como princípio do seu trabalho “nem pressupor o leitor e nem esperar por ele: sua tarefa é construí-lo” (Guedes, 1997, p.7). Na tarefa de construir a/o leitora/leitor, nós professoras e professores precisamos estar atentas/os também ao fato de que a curadoria que fazemos dos textos que trabalharemos em nossas aulas, no nosso compromisso de que promover uma Educação Integral não pode repercutir as exclusões históricas que deixaram fora do currículo oficial as produções de mulheres, de escritoras e escritores negras/os, indígenas, quilombolas, bem como das/os escritoras/es locais, aquelas/es que escrevem sobre a realidade daquele território e daquela comunidade onde a escola está inserida.

Destacando a escrita como um dos elementos centrais nas aulas de Língua Portuguesa, é preciso lembrar que escrever se aprende escrevendo em espaços seguros, onde o erro seja permitido, seja acolhido e compreendido como parte do processo de aprendizagem. Muitas vezes a escola não permite que a autoria da/o estudante floresça porque traz um foco exagerado no desejo de que ela/ele acerte, e este foco contribui muitas vezes para que comportamentos inadequados sejam assumidos diante do erro. Dias (2023, p.13) nos lembra de que: “quando vivemos esse foco exagerado no acerto, nós reprimimos nossa criatividade, nossa palavra brincante, nossa ousadia de ideias”. Nenhuma/nenhum estudante deveria sentir medo, vergonha ou sentir-se incapaz por errar (Ruy; Souza, 2006).

Falar da interface entre ensino de Língua Portuguesa e Educação Integral é falar da promoção de uma educação genuinamente transformadora. Se a língua é o nosso instrumento mais importante de significação, representação e relação com o mundo, a forma como a escola ensina esta língua será decisiva não só quanto a garantir ou não o direito da/o estudante aprender, mas ela será decisiva na maneira como ela/ele construirá relações consigo, com a sua comunidade e com o seu país. Celebrar os princípios da Educação Integral no ensino de Língua Portuguesa é responder ao convite de Guedes (1997, p.3): “Libertemo-nos, libertemos nossos alunos e nossas alunas da pesada herança colonialista que tem feito do ensino de língua portuguesa um dos mais eficazes instrumentos de exclusão do povo brasileiro não só da escola, mas da vida cultural”.

 


Referências bibliográficas

ARROYO, Miguel. Currículo, território em disputa. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 2013.

COSTA, Natacha. Educação integral: uma reflexão sobre a concepção e suas práticas transformadoras. Disponível em: https://educacaointegral.org.br/reportagens/educacao-integral-uma-reflexao-sobre-concepcao-e-suas-praticas-transformadoras/

DIAS, Juliana. Leitura e Produção de Textos. São Paulo: Ed. Contexto, 2023.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23ª ed. São Paulo: Cortez, 1989.

___________. A Pedagogia do oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2018.

GIROUX, Henry. Os professores como intelectuais - rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: ARIMED Editora, 1997.

GUEDES, Paulo Coimbra. A Língua Portuguesa e a Cidadania. Repositório da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/173953

MOLL, Jaqueline. Caminhos da Educação Integral no Brasil: Direito a outros tempos e espaços. Editora Penso, 2021.

PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. 4ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2015.

RUY, Raquel Calil; SOUZA, Nádia Aparecida de. Avaliação Formativa no Ensino Fundamental II: possibilidades da atuação docente. Estudos em Avaliação Educacional, v. 17, n. 35, set/dez, 2006.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade - uma introdução às teorias do currículo. São Paulo: Ed. Grupo Autêntica, 1999.

SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 17ª edição. São Paulo: Ed. Ática, 2002.

 

Sobre a autora

Gina Vieira Ponte: Eu sou Gina Vieira Ponte, ceilandense, filha de Moisés e de Djanira. Quando tinha 8 anos de idade, fui abraçada pelo olhar sensível da professora Creusa e, desde então, escolhi a docência como profissão. Atuei na educação pública por mais de 30 anos, dos quais 26, exclusivamente, no chão da escola. Em 2014, criei e desenvolvi o Projeto Mulheres Inspiradoras, uma iniciativa que articula a leitura de obras literárias de autoria feminina com a escrita autoral e com o resgate de memória. Eu sou feita de coragem.

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