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Entrevista: Roberta Estrela D'Alva

Entrevista: Roberta Estrela D'Alva

A poesia sempre vence

A poesia sempre vence

texto - Esdras Soares e Alana Queiroz; ilustração: Criss de Paulo

06 de maio de 2020

Edição 32, dezembro de 2018

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Família, magistério, universidade, teatro, hip-hop, Movimento Negro, TV... Você pode nos contar um pouco sobre sua trajetória? Como tudo isso confluiu e formou quem você é hoje?

Sou Roberta Estrela D’Alva, nascida Roberta Marques do Nascimento, em Diadema, São Paulo. Acho que sempre quis ser professora. Fiz magistério junto com o colegial e nesse percurso que a vida tem, acabei prestando o exame da Fuvest com minhas amigas, aos 17 anos; passei em artes cênicas, queria ser atriz, também. Na escola em que cursava o magistério e o colegial havia aulas de teatro, música. Tive sorte de estudar numa escola que você podia desenvolver várias potencialidades. Estava sempre em tudo, ficava o dia inteiro na escola. Eu me sentia muito chamada pelo teatro, mas queria terminar o magistério para dar aula.

Fui fazer artes cênicas e quando saia de lá, olhava os grupos de teatro e falava: “Nossa, mas para que eu fiz artes cênicas? O que vou fazer da vida? Não tem nada que tenha minha cara”. Foi quando uma amiga disse: “Roberta, estou num grupo com Cláudia Schapira, Eugênio Lima e Júlio Dojcsar, é teatro com hip-hop, tem grafiteiro, DJ”. Na hora eu desejei profundamente fazer parte desse grupo. Saiu uma atriz e acabei entrando no grupo, que depois tornou-se o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos1, que é a companhia da qual faço parte há dezoito anos. No meio desse caminho teve um coletivo importante, a Frente 3 de Fevereiro, que discute as questões do racismo dentro da sociedade brasileira, entre outras coisas.

Sempre fui uma pessoa da palavra, da poesia falada, da voz, sobretudo, que é o que estudo hoje. Tanto a vivência na Frente 3 de Fevereiro como no Núcleo Bartolomeu me levaram a esse universo do spoken word, dos slams, que vi pela primeira vez na Frente 3 de Fevereiro, em um vídeo, e aí fiquei muito tocada, quis saber o que era. Viajei para os Estados Unidos para pesquisar sobre hip-hop, lá, fiquei numa imersão por quase dois meses e fui num slam. Quando voltei para o Brasil queria ir num slam e não tinha, pensei: “Bom, estou com a faca e o queijo na mão”. Então, começamos o ZAP! – Zona Autônoma da Palavra, que este ano completa dez anos.

O que é o slam?

Os slams de poesia, ou poetry slam, são batalhas de poesia falada, em forma de competição, campeonato, mas também é meio um programa de auditório, uma diversão, uma roda, um acontecimento, um encontro, sobretudo. Resumindo, é uma competição de poesia falada que tem três regras básicas: poemas próprios, de no máximo três minutos, sem acompanhamento musical. É a pessoa ali no microfone, cinco jurados são escolhidos no público aleatoriamente, considerando brancos e negros, mulheres e homens, mais velhos e mais novos, o mais diverso possível, e dão nota de zero a dez. De fato, a nota é o que menos importa. Quem inventou isso foi um cara chamado Marc Smith, em Chicago, e ele começou a perceber que a competição fazia com que as pessoas prestassem atenção, porque elas queriam saber quem ia ganhar, e acabavam prestando atenção na poesia. Então o jogo faz que as pessoas parem e prestem atenção no que mais importa que é a poesia. E, de fato, pouca gente lembra quem foi o campeão, a campeã, mas você nunca esquece aquela poesia que te tocou. Tem um chavão “a poesia sempre vence”. Se você considerar que hoje o Slam Resistência ou Slam da Guilhermina batem 600 pessoas na rua, 800 para ouvir poesia, é um grande avanço. O slam está no mundo inteiro, tem mais de 600 comunidades, onde você imaginar tem slam: na Índia, em Madagascar, nos países da Europa, no Canadá, no Japão, na China. Em todo lugar do mundo que você vai hoje tem slam, na Guatemala, no Chile, na Argentina, até no Polo Norte já teve slam. Aqui no Brasil tem poucos slams que são em lugares fechados, com microfone, como existem em outros países; aqui ele tomou uma proporção de rua, de tomada de espaço público. Então dos 100 slams que temos hoje, em dezoito Estados, acho que 98% são feitos na rua. E isso é muito legal porque é tomada de espaço público. E você diz: “Mas isso aí não é nada. Isso é uma besteira, o slam não mudou nada”. Segunda-feira à noite, 800 pessoas vão a uma praça para ouvir poesia. Estão ali para ouvir e o governo não deu ticket para ir, ninguém está falando que é bom, não tem propaganda. Espontaneamente saem pessoas das Zonas Sul, Leste, Oeste, Norte de São Paulo e de fora de São Paulo, gastam o dinheiro da passagem, que poderia se gastar com qualquer outra coisa, para ir ouvir poesia. Se isso não é revolucionário, então, não sei o que é revolucionário. Como 800 pessoas param para ouvir outra pessoa falando num mundo que não se ouve mais, num mundo em que poesia é chata para o jovem, num mundo em que a poesia não importa? O que essas pessoas vão buscar? Vão buscar o espaço do encontro, do aprendizado livre, porque as pessoas estão ali aprendendo, é literatura viva, que os espaços convencionais não estão trazendo. Estão ali trocando conhecimento, é um lugar de educação. Por que a escola não pode ser assim? O que o slam está criando também é uma comunidade de escritores e de editoras independentes, o que significa editores, prefacistas, desenhistas, arte-finalistas, revisores, todos independentes. Cria toda uma comunidade literária ao redor, o que é muito importante.

Por que o slam ganha esse público jovem, que muitas vezes costuma não se interessar pela literatura na sala de aula?

O slam tem muito sucesso na escola e com a juventude, porque você vê um discurso que está respondendo, que está indo, servindo como uma luva para anseios, respostas, dúvidas, dores dessa molecada. Isso pode até abrir lugares para quebrar um preconceito e a pessoa dizer: “Ah, mas poesia pode ser isso também. Não é aquilo que eu pensava”. Daí ela vai ouvir, ler outro livro, chegar em
outros lugares, outros livros, outras autoras, tudo por meio do slam. Tem uma coisa da representatividade, vou lá para sentar e ouvir alguém que está falando numa linguagem que eu entendo, que eu sinto. E tenho espaço também, porque qualquer pessoa pode participar de um slam. Posso escrever sobre o que for, vou ter espaço e alguém vai me ouvir. Então tem uma coisa do ser ouvido, ter sua voz ouvida e poder falar: “O slam dá a voz. O professor dá a voz. A escola dá a voz”. Ninguém dá voz para ninguém, todo mundo já tem voz. As mulheres negras têm voz, a periferia tem voz, as crianças têm voz, os idosos têm voz, os LGBTQI+ têm voz. Agora, que essa voz seja ouvida, aí é outra coisa. Falar não é a mesma coisa que ser ouvido. É isso, um lugar onde as pessoas se sentem ouvidas e representadas. O slam pode funcionar e abrir espaço na escola à medida que a escola abrir espaço para o slam. É uma metodologia muito simples, é basicamente ter pessoa para falar e pessoa para ouvir, criando, assim, uma dinâmica.

Por que o slam é tão potente? Por que esse espaço possibilita a discussão e o questionamento de temas tão densos?

O slam às vezes tem uma crítica que eu já ouvi falar: “Ah, mas é uma poesia ruim. É muito raso. A semântica, a gramática, isso e aquilo. São sempre os mesmos assuntos, só fala de racismo, de homofobia ou de machismo”. Respondo a essas críticas explicando que são pessoas que têm uma escola com baixa qualidade. Como vou cobrar semântica sem escola? Como vou falar para uma menina que está sendo estuprada pelo padrasto: “Muda de assunto”? Como vou falar para um cara que está sendo barbarizado com racismo: “Muda de assunto”?

Como vou falar para uma menina lésbica, para um gay, para um trans: “Muda de assunto”? A ágora do slam não é a do rigor escrito, ele é uma ágora da performance. A performance significa o quê e como. Não estamos ali avaliando a gramática, a semântica. O que os jovens e as jovens vão percebendo é que você vai conhecendo mais gramática, semântica, figuras de linguagem, aprende a descrever, sua poesia fica mais rica. A pessoa que usa melhor as figuras tem nota mais alta. A pessoa vai indo, vai lendo, entendendo. “Ah, eu li esse livro, melhorou minha escrita”. E naturalmente as coisas vão melhorando. Essas temáticas são as que a gente tem aí. São as temáticas que o governo não dá conta, que as famílias não dão conta, que a religião não dá conta. O slam é a válvula de escape, é o lugar onde eu vou poder falar. Eu acho muito rico quando têm vários assuntos. Isso não pode inibir alguém de ir lá e falar uma poesia de amor ou falar dos animais. Mas, como uma pessoa vai ter abstração para falar da concha do mar se em casa ela está apanhando, sofrendo violência... Olha... a concha pode ser uma metáfora para isso.

Em seus poemas, Mariana Felix, poeta, diz: “Aqui é a escola da rua. A rua ensina. Foi o hip-hop e não os decassílabos dos Lusíadas que fez muito moleque que hoje escreve parar de cheirar cocaína!”. Infelizmente tem coisas anteriores para sanar. Eu acho que o slam chegou para aplacar certas dores também. O ideal é que todo mundo possa falar do que quiser. Bertolt Brecht, uma das minhas influências, tem um poema que chama “Aos que vierem depois de nós”2 e ele diz: “Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes. Pois implica silenciar tantos horrores!”. Que tempos são esses que se eu deixo de falar disso eu estou deixando que se perpetue. Mas ele continua: “Vós, porém, quando chegar o momento em que o homem seja bom para o homem, lembrai-vos de nós com indulgência”. Esse é um poema bem interessante do Brecht, mal ele sabia como estaríamos hoje...

No slam, como é o trabalho com a oralidade e com a performance?

O trabalho com a performance vem muito porque sou atriz. No livro O processo ritual, Victor Turner fala da performance nascida do ritual. Num slam você está evocando uma roda meio ritualística porque não tem a influência do capital, você não paga para ver nem paga para fazer, é de graça. Eu costumo falar que é como uma roda dos ancestrais, só que no lugar da fogueira tem um microfone. Ali é onde os guerreiros, a tribo, a comunidade vai trocar, falar de seus problemas e quem tá ali no centro usa o corpo, a voz e a memória. Voz, como diria a minha mestra Jerusa Pires Ferreira, é memória. No slam as memórias se encontram, a memória de quem está falando a poesia encontra com a minha e a gente cria um grau de memória comum que só quem estava ali de corpo presente tem aquele arcabouço, aquela memória. Acho bonita essa definição de performance que é criação de memória comum entre quem performa e quem é público, entre emissor e receptor.

Tem várias discussões sobre a relação entre escrita e oralidade. Quando estou com um papel e estou lendo, alguém escreveu aquele texto. Mesmo que seja meu, a Roberta que escreveu aquele texto não existe mais, ela já morreu, eu já sou outra Roberta do momento que escrevi. Para quem está vendo, a autoridade de quem lê é do autor, mesmo que seja eu, mas ele já passou. Quando você fala aqui sem nada, não tem esse anteparo que é o papel, que é a letra, que é o passado, só existe o presente. O poeta oral não tem arrependimento, não tem como se arrepender e voltar, como o escrito que dá para apagar. É tudo aqui, é na hora, no instante, pulso vivo que é presente já é passado, já tem o futuro, já é presente... É tudo que no corpo pulsante vivo em presença. Essa força da oralidade vem disso, vem dos corpos que não têm nenhum anteparo entre eles. Incentivo quem quer ir no slam. Têm pessoas que vão no slam, leem, tiram notas boas e ganham. Em alguns países da Europa, como na França, na Alemanha, os poetas, todos, lendo papel porque eles têm uma tradição de ler papel. É maravilhoso. Aqui tem essa tradição oral, sempre vem o repente, os cantos de trabalho, a capoeira, o maracatu. Temos muitas tradições no Brasil da oralidade, dos cantos, da poesia.

Em 2014, você publicou o livro Teatro hip-hop: a performance poética do ator-MC. Você pode falar um pouco sobre o livro e sobre a experiência de escrevê-lo?

Fiz artes cênicas e fiquei dez anos longe da academia, da Universidade de São Paulo. Disse: “Imagina, nunca vou voltar para universidade”. Mas comecei a sentir a necessidade de contar a minha própria história, porque sou uma atriz-MC, sou do hip-hop, essa é minha escola. Você é autorrepresentação, não precisa que ninguém conte a história para você. É aquele negócio do Rappin’ Hood: “Se estou com o microfone é tudo no meu nome”. Nós temos quinze anos de pesquisa, não sei se alguém vai querer pesquisar isso, mas eu quero pesquisar, quero falar o que penso do hip-hop, como isso se misturou com o teatro e como fui para o slam. O livro é isso. Tenho muito livro de grafite, de hip-hop, tudo em inglês. Sentei, traduzi, mastiguei as partes que acho mais importantes para a molecada ter acesso; com as fontes para quem quiser procurar. Temos de estar em todos os lugares pautando, contei a minha visão do hip-hop baseada nos livros que tenho. O último capítulo desse livro fala da história do slam no mundo e como ele chegou ao Brasil, de como usei isso no teatro também, como pode ser usado de uma forma ou de outra.

Com frequência, você costuma ressaltar o encontro entre a universidade e as ruas. Como foi com você? Como você enxerga esse movimento no Brasil nos últimos anos?

Quando dou entrevista, quando estou conversando com a molecada, digo que o pulo do gato é juntar o conhecimento empírico, a coisa da rua, do popular, da oralidade, do que aprendemos uns com os outros, umas com as outras, com a universidade. Também tem outro conhecimento que é importante para tomarmos posse, porque é nosso, é da humanidade, que são as coisas que foram escritas, as coisas que foram escritas por pessoas não só brancas.

Estou fazendo doutorado agora, e na universidade parece que você está estudando na Alemanha, na França, porque, com todo respeito ao Deleuze, ao Marx, ao Freud e ao Walter Benjamin, mentores do Núcleo Bartolomeu, mas existe gente pensando no Brasil, na Índia, na Colômbia; existem pensadores na África. Existe toda uma gama de pessoas, não só os pensadores brancos europeus. Isso não chega fácil, você tem que procurar, são tesouros. Esses pensadores ajudam a entendermos nossa história aqui, a nossa história do Brasil e juntar com a oralidade, com o conhecimento das ruas, com a riqueza daqui. O Brasil é um país de tradição oral, se você for ver a matriz, os indígenas, a tradição africana, embora tivéssemos os malês e outros negros letrados, tem uma coisa muito forte desse circular, da contação de história, da oralidade africana. 

Uma rodada para responder em poucas palavras

Hip-hop

É uma maneira de ver e pensar o mundo. É um estilo de vida. É a maior cultura global jovem do mundo, que trouxe inovações estéticas, políticas, culturais, espirituais e permitiu que pessoas no mundo todo que viviam sob ruínas não fossem arruinadas.

Um verso. De poesia, de rap, do que você preferir

“Tudo é emprestado e há de retornar ao seu legítimo dono.” É um trecho da peça barroca A vida é sonho, do dramaturgo espanhol Calderón de la Barca.

Uma música

Capítulo 4, Versículo 3, Racionais MC’s.

Uma peça preferida, que seja referência

Uma peça estrangeira: Romeu e Julieta, William Shakespeare, porque eu já participei de muitas montagens.

Uma peça brasileira: Acordei que sonhava, de Cláudia Schapira. Foi o segundo espetáculo do Núcleo Bartolomeu e foi quando chegamos à formulação do teatro hip-hop e à formulação ator-MC. Uma obra-prima.

Uma lembrança

Durban, África do Sul, 2014, num píer, seis e meia da tarde, dançando Here Comes the Hotstepper, com Angela Davis. Fervendo. “Here come the hotstepper... Na, na, na, na, na...” Foi um momento... que momento!

 

Sobre a autora

Roberta Estrela D’Alva é atriz, MC, pesquisadora, cantora, apresentadora do programa Manos e Minas, da TV Cultura, e foi quem trouxe o slam para o Brasil. Nessa entrevista exclusiva, Roberta fala sobre sua trajetória e sobre a potência da poesia e do slam em abrir espaços.

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