"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Os cadernos de meu avô
Os cadernos de meu avô
texto - Karina Kristiane Vicelli; ilustração - Criss de Paulo
04 de setembro de 2019
Edição 32, dezembro de 2018
Ainda muito pequena, encasquetei que queria aprender a ler. Por que essa ânsia numa criança de tão tenra idade? Culpa do meu avô, seu Choei Higa, todos os dias, religiosamente, depois de trabalhar em sua horta, chegava com os pés cheios de barro, deixava os sapatos na porta, entrava para tomar seu café e depois ia para a escrivaninha. Eu ficava próxima, rondando suas leituras e escritas, queria saber o que tanto ele fazia, por que dedicava tanto tempo à escrivaninha? Essa curiosidade me fez perturbar a família, precisava aprender a ler.
Eu morava numa casa cheia de gente. Meu avô teve dezessete filhos, catorze vingaram. Desses catorze, sete eram do primeiro casamento e foram embora quando meu avô se casou com minha avó, dona Judith Higa. Minha avó mal sabia ler, “malemal” frequentou a 6ª- série. Foi com esses outros sete filhos, do segundo casamento, que cresci. Tia Angélica era casada, morava perto e sempre aparecia com meus primos, Marcelo e Márcio; tio Mário foi embora para São Paulo trabalhar no McDonald’s; tio Roberto era artista e passava os dias pintando ou tocando violão; minha mãe nunca tinha tempo; tia Jaqueline me fazia de boneca; tio Luiz só me dava broncas e castigos; tio Eduardo me ensinava a caçar passarinhos, a arrombar janelas e a subir no telhado.
Cada um era um professor diferente, sempre me ensinavam alguma coisa, mas a minha curiosidade maior era desvendar os cadernos de meu avô. O que tanto ele escrevia? Seriam amores secretos? Histórias do passado? Devia ser algo muito interessante, porque todos os dias ele se dedicava a passar horas na escrivaninha.
Até que um dia, minha mãe, que nunca tinha tempo, trouxe uma cartilha, sentou-se ao meu lado e me ensinou o alfabeto, as sílabas... dizem os tios e as tias que no outro dia eu estava lendo. Pronto, nasceu a leitora, agora eu poderia descobrir os segredos de meu avô, mas ele não poderia saber de jeito nenhum que eu sabia de tudo, que agora eu tinha a chave de seus mistérios. Planejei mexer nos livros e cadernos de meu avô com cautela, tinha que ser em um momento em que ele não estivesse em casa, a hora em que ele fosse para a horta seria perfeito! Segui meu plano, fui ávida e curiosa mexer nos caderninhos de meu avô. Para minha decepção, não estavam lá as letras e as sílabas que a minha mãe me ensinou, meu avô nasceu no Japão, veio para o Brasil em 1914, fugindo da guerra, e escrevia com outro código.
Seus segredos continuaram invioláveis. Pedi para que me ensinassem aquele código, mas ninguém sabia, e meu avô não transmitiu a ninguém a sua língua materna. Durante a Era Vargas fora preso e torturado, quase morreu, foi quando migrou de Santos para Campo Grande, na época cidade do Mato Grosso.
Como não conseguia ler os cadernos de meu avô, lia tudo que encontrava pela frente, muitos livros de arte, clássicos, e então minha mãe fez uma carteirinha da Biblioteca do Sesc, um mundo se abriu para mim: a biblioteca. Lembro-me bem do primeiro livro emprestado: O menino do dedo verde, de Maurice Druon. Vieram muitos outros: Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos; A bailarina, de Cecília Meireles; ahhh e a Série Vagalume!!!
Depois, quando estava na faculdade, comecei a estudar o nihongô (língua japonesa), mas daí a conseguir ler o que meu avô escrevia, levou um bom tempo. Depois que ele faleceu, levei um de seus caderninhos para o meu professor Júlio Fukushi ler para mim. Seus segredos eram diários de seus plantios, de quando semeou, quando floresceu, quando colheu a cenoura, que a mandioca que não foi pra frente...
Eu esperava aventuras insondáveis e encontrei o simples, encontrei o registro diário de uma horta que alimentou seus filhos, seus netos e os meus sonhos de leitora. Decepção? Não, porque hoje compreendo que a vontade de desvendar os seus escritos me fez ser uma criança curiosa, característica que me move até hoje a aprender. E não seria o meu avô um menino de dedo verde que plantou tantos sonhos e vontade de saber em minha cabeça de menina?
Texto referente à tarefa: “Eu, a leitura e a escrita”, do Curso Caminhos da Escrita, realizado no segundo semestre de 2018.
Sobre a autora
Karina Kristiane Vicelli é professora do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, em Dourados (MS).
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