"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Uma descoberta adolescente
Uma descoberta adolescente
texto - Jordana Thadei; ilustração - Criss de Paulo
29 de agosto de 2017
Formação em diálogo
Jordana Thadei, participante do curso “Caminhos da Escrita”, fala sobre sua trajetória com a leitura e dos livros como forma de conexão com o mundo.
Tornei-me leitora aos 13 anos. Não, não! Eu fui alfabetizada aos 6 anos, como a maioria das crianças, naqueles mais de quarenta anos que já vão se afastando rapidamente. Mas a leitura só entrou na minha vida aos 13 anos. Até aí, ela era uma tarefa dentro da escola. Minha avó conta que minha mãe não brincou. Ela leu vorazmente desde os dias em que começou a decodificar palavras. Éramos recém-chegados na cidade de Rio Pomba, Minas Gerais. Minha mãe, professora, trabalhava o dia todo e estudava pedagogia, à noite, na vizinha cidade de Ubá. Quase não a víamos, eu e meu irmão. Ela passava os finais de semana soterrada em papéis da escola ou da faculdade. E lia, lia, lia romances que eu gostava de admirar. Eram grossos, finos, encapados, sem capa, escangalhados, novos, despencados, branquinhos, amarelados. Não importava. A livraria mais próxima ficava a 90 quilômetros. Mas a leitura, para ela, valia a pena, ainda que fosse do gosto literário do vizinho que tivesse algo para emprestar. Enquanto ela lia, podíamos fazer o que quiséssemos dentro e fora de casa. Ela estava transportada para outro mundo. Aprendi isso muito cedo e me beneficiei bastante disso, também.
A graduação terminou. Eu tinha uns 7 ou 8 anos e meu irmão, uns 4 ou 5. Minha mãe, finalmente, passava as noites em casa. Com o livro na mão. Passou a ler ainda mais. Independente, desde pequenininha, eu cruzava “o Pomba” de ponta a ponta, na minha Caloi roxo-metálica, acompanhada de dezenas
de outras “crianciclistas”.
Aos poucos fui decidindo que os livros jamais me desconectariam do mundo, como pareciam fazer com minha mãe. E nunca me interessei por eles, assim como eles nunca me foram apresentados. Mas, no meio do caminho, tinha a professora do 3º- ano primário, a dona Eliane, que, todos os dias, lia para nós. Lembro-me que o último livro do ano foi O menino do dedo verde1. Consigo ver o rosto da dona Eliane lendo a última linha do livro e fechando a capa verde vagarosamente, com um sorriso no rosto, não sem antes interromper a leitura por alguns segundos, para aumentar o suspense.
Não sei mais se nos fazendo suspense ou sentindo o suspense das nossas possíveis reações, pois nem imaginávamos que “Tistu era um anjo”. Pega de surpresa, fiquei emocionada e um pouco revoltada também. Afinal, eu encerrava um ciclo de histórias de finais previsíveis e felizes. No ano seguinte meu pai foi novamente transferido de cidade. Na nova cidade, algum professor passou pela 6ª- série e exigiu a leitura de “um livro”. Qual livro? Qualquer um. Escolhi o mais magrinho da coleção do Monteiro Lobato que minha mãe ganhou e devorou aos 8 anos. Era bonita. Verde, de capa dura e escrita de dourado, feito enciclopédia. Mas não tinha ilustração e o papel da página já estava áspero. Não me lembro que livro li. Mas li. Era tarefa escolar e eu não ousava descumprir.
Em casa tinha a coleção do Monteiro Lobato e a coleção do Tarzan, ambas lidas e re-re-relidas pela minha mãe, na infância. E quanto mais eu sabia das histórias de que ela foi “criança-traça”, menos eu tinha vontade de ler. A professora da 6ª- série se deu por satisfeita com a leitura de um livro. Missão cumprida para a professora e para os alunos. Nessa época, andei ganhando alguns concursos de redação, na escola, numa demonstração do descompasso entre a minha relação com a escrita e com a leitura.
Quando eu tinha uns 10 anos, meu avô me explicou, didaticamente, a importância da literatura na vida das pessoas. E me presenteou com Dona Beija2. Eu mal aguentava carregar aquilo e arrepiava só de pensar que um dia teria que dar cabo do calhamaço. Ele havia me tranquilizado dizendo que era “para quando eu tivesse vontade de conhecer”. Mas isso já era um compromisso de ter que ter vontade. Era isso ou decepcionar o meu avô. Minha avó, percebendo o despropósito do presente, fez uma tentativa com Pollyanna3, mas, certamente, o “jogo do contente” estava longe de nem ser sequer interessante para uma pré-adolescente bocuda e atrevida. Arriscou Meu pé de laranja lima4 e funcionou mais ou menos. O livro ficou destruído pelas minhas lágrimas e a ideia de que a leitura era isolamento e sofrimento ia se fortalecendo em mim.
O tempo foi passando. Minha mãe ia muito a Juiz de Fora e sempre trazia presentinhos. Meu irmão ganhava um livro e eu algum acessório das Lojas Americanas, que me encantavam. Eu tinha uns 13 anos, quando, na casa da minha avó – o ninho das traças –, meu tio perguntou à minha mãe por que ela não trazia livros para mim, apenas para o meu irmão. Ela respondeu que trazia para ele porque ele lia e não trazia para mim porque eu não lia. Ele, então, perguntou “mas o que você oferece para ela ler?”. E minha mãe: “não ofereço nada, porque ela não lê nada!”. Não me lembro como terminou a conversa. À tarde o tio me entregou um livro, sem dizer muito. O título era O menino no espelho5. Nome de livro para criança, mas cara de livro de adulto. Perguntei se era pra entregar pra minha mãe. E ele “leia a dedicatória!”.
Para Anadroj,
Com abraço, do tio Cléber.
Perguntei quem era Anadroj e ele me disse para ler de trás pra frente, espelhado. ANADROJ / JORDANA. Não vi sentido, mas achei engraçado. Perguntei por que ele tinha escrito meu nome de trás pra frente e ele disse: “Isso você só vai saber mais ou menos na metade do livro”. Terminei o livro no dia seguinte, apaixonada por Fernando Sabino e iniciada no prazer da leitura. Esse tio me “alimentou” de livros por muito tempo. Anos mais tarde, em um evento na Unicamp, tive contato com o trabalho de Jorge Larrosa: “Carta aos leitores que vão nascer”. E me dei conta de que a leitora nasceu em mim aos 13 anos, embora eu já soubesse ler.
2. A vida em flor de dona Beija: romance do ciclo do povoa mento nas gerais, de Agripa Vasconcelos. São Paulo: Editora Itatiaia, 1988.
3. Eleanor H. Porter. São Paulo: Autêntica, 2016 [1915].
4. José Mauro de Vasconcellos. São Paulo: Melhoramentos, 2005 [1968].
5. Fernando Sabino. São Paulo: Record, 2009 [1982].
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