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Desigualdades educacionais sob a perspectiva de aquisição da língua portuguesa: o que dizem os dados das avaliações externas?
Desigualdades educacionais sob a perspectiva de aquisição da língua portuguesa: o que dizem os dados das avaliações externas?
texto - Ana Lorena Bruel; ilustração - Criss de Paulo
15 de agosto de 2023
Palavra como antídoto escrevendo um mundo novo
Há muito discutimos, estudamos, lemos sobre desigualdades sociais e educacionais. A presença de relação entre elas não é novidade e não nos surpreende. Mas, quais são essas relações? Será que nos encontramos novamente diante do impasse entre “o ovo e a galinha” sem saber quem vem antes? Como são produzidas as desigualdades? Há o que ser feito diante das grandes desigualdades do mundo ou elas são inexoráveis? Como reconhecer os impactos das desigualdades educacionais sobre a vida das pessoas?
É necessário definir o que caracteriza as desigualdades, a que elas se referem. Partimos da compreensão de que as desigualdades se entrecruzam, se multiplicam e são cumulativas, produzindo desvantagens que atravessam diferentes esferas da vida. Assim, as desigualdades educacionais não são monolíticas, imutáveis ou blindadas em relação a outras desigualdades, ao contrário, são permeáveis, dinâmicas, possuem uma face objetiva e outra subjetiva, estão em constante interação e podem ser ampliadas ou reduzidas diante de políticas e ações que atuem sobre sua produção.
Filmes, documentário e série que podem contribuir para a reflexão sobre desigualdades educacionais
Filmes
- O menino que descobriu o vento (2019), dirigido por Chiwetel Ejiofor.
- Entre os muros da escola (2008), dirigido por Laurent Cantet.
Documentário
- Fora de série (2018), dirigido por Paulo Carrano. Disponível em <https://www.filmeforadeserie.com>.
Série
- Avaliação e aprendizagem, episódio “O que é avaliação?”, produzido pelo MEC / TV Escola. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=20281>.
Podemos considerar que as teorias que procuram explicar as desigualdades educacionais analisam três grandes dimensões da realidade e suas confluências: as desigualdades sociais e sua influência sobre as desigualdades educacionais; num sentido inverso, a influência das desigualdades educacionais sobre as desigualdades sociais e outras esferas da vida; e a produção de desigualdades propriamente educacionais em virtude da organização dos sistemas de ensino e das instituições escolares.
Os estudos sobre o tema apontam para a existência de certa reciprocidade entre essas três dimensões na produção das desigualdades educacionais. E apontam também para uma complexificação e multiplicação das formas de desigualdades e das experiências vivenciadas por estudantes e suas famílias, docentes e demais funcionários da escola.
No campo da educação, podemos considerar a existência de múltiplas desigualdades. Entre elas, desigualdades de acesso à escola, que vão desde a exclusão total e violação do direito à matrícula em um estabelecimento de ensino até a existência de escolas com condições de qualidade desiguais que ofertam oportunidades desiguais de ensino e aprendizado.
Podemos enunciar também as desigualdades de permanência, que possibilitam trajetórias desiguais em quantidade de anos estudados e em qualidade de aprendizagens realizadas; ou as desigualdades promovidas pelas experiências de fracasso escolar, de reprovação e de abandono; há ainda desigualdades relacionadas à conclusão da escolaridade (mesmo obrigatória) e aos resultados (por exemplo, desempenho em relação ao conhecimento considerado adequado a cada etapa de ensino).
Verificamos desigualdades em relação ao investimento em educação a depender do ente federado, da rede de ensino, da mantenedora, com desigualdades de financiamento e de distribuição dos recursos necessários à oferta educacional; desigualdades nas condições materiais e de infraestrutura das escolas; desigualdades nas formas de gestão, de formação, de contratação e de valorização dos profissionais da educação; enfim, esses e outros fatores não enunciados aqui permitem observar uma multiplicidade de desigualdades que podem se acumular ampliando ainda mais os seus efeitos.
Essa complexificação das desigualdades torna ainda mais desafiador o processo de definição, de medida e de enfrentamento das desigualdades! Por isso, nos propomos a apresentar neste artigo, de forma articulada, questões teóricas sobre a compreensão de conceitos e fatores relacionados às desigualdades; evidências empíricas que nos ajudem a observar diferentes formas de mensuração; e questões que nos ajudem a refletir sobre o necessário enfrentamento!
Muitos pesquisadores se debruçam sobre o tema e contribuem para a construção de teorias que permitem compreender melhor a realidade que enfrentamos. Muitos debates têm permeado a esfera acadêmica e também os contextos das práticas e da formação de professores, ajudando na reflexão sobre os fatores que influenciam as desigualdades educacionais, como: questões relacionadas ao nível socioeconômico dos estudantes e suas famílias, aspectos históricos e culturais, contextos dos territórios, segregação social, estrutura de empregos e status social, ampliação e diversificação da oferta escolar, seletividade das escolas, fracasso escolar, experiências classificatórias e excludentes que permeiam a cultura escolar, entre outros aspectos (Bruel, 2014).
Para pesquisar
DUBET, F. O que é uma escola justa? – A escola das oportunidades. São Paulo: Cortez, 2008.
LUCAS, S. “Effectively Maintained Inequality: Education transitions, track mobility, and social background effects”. American Journal of Sociology, v. 106, nº- 6, mai., 2001, pp. 1.642-1.690.
BROOKE, N.; SOARES, J. F. Pesquisa em eficácia escolar: origem e trajetórias. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008.
SEN, A. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001.
CURY, C. R. J. “Educação escolar e pandemia”. Pedagogia em Ação, v. 13, nº- 1, 1º- sem., 2020. Disponível em <http://periodicos. pucminas. br/index.php/pedagogiacao/article/view/23749>.
Mesmo diante de um conjunto extenso de pesquisas na área, ainda temos dificuldade para superar a visão classificatória presente na cultura escolar e há muitas barreiras para derrubar os modelos seletivos instituídos. Provas, reprovações, testes seletivos não podem estar acima da preocupação com a garantia do direito à aprendizagem de todos e de todas!
No conjunto dessas reflexões sobre os processos de produção de desigualdades educacionais, podemos situar o debate sobre a aprendizagem da língua portuguesa e as desigualdades decorrentes dos inúmeros fatores que atravessam as experiências escolares de aquisição da língua. Poderíamos apresentar um conjunto de evidências empíricas com base em relatos de experiências, análises de textos produzidos pelos alunos, entrevistas com operadores da política, gestores, docentes e estudantes; poderíamos analisar as diferentes formas de expressão oral, escrita, imagética, não verbal de alunos em diferentes etapas da Educação Básica; poderíamos também analisar os currículos escolares, planejamentos de ensino e planos de aula; poderíamos utilizar os cadernos escolares, as atividades de avaliação, livros didáticos e outros materiais de ensino. Há uma multiplicidade de fontes possíveis para analisar as desigualdades educacionais.
Para este texto, decidimos analisar os dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que se caracteriza como um conjunto de avaliações externas em larga escala. Essas avaliações permitem a construção de um diagnóstico dos sistemas de ensino a partir do levantamento de dados sobre a proficiência dos estudantes em algumas áreas de ensino e sobre informações de contexto ligadas às escolas, aos gestores e aos estudantes que realizam as provas. As informações contextuais são fundamentais para que possamos compreender como fatores intra e extraescolares interferem no desempenho dos estudantes avaliados.
Cuidados com o uso dos dados referentes às avaliações externas!
O uso das informações produzidas pelo Saeb precisa ser feito de maneira cuidadosa e sempre considerando as importantes críticas ao sistema de avaliação. Pesquisadores da área (Bonamino e Sousa, 2012), alertam para os riscos de redução do trabalho escolar às exigências dos testes, secundarizando o que não é avaliado. As avaliações externas apresentam uma concepção limitada de currículo em face da diversidade e da riqueza do trabalho desenvolvido pelas escolas. Outra limitação importante é que as avaliações externas, feitas em larga escala, analisam o desempenho dos estudantes ao final de etapas de ensino e não durante o processo de aprendizagem, não conseguindo, portanto captar essa dinâmica. Há também o risco de ranqueamento entre as escolas e entre os estudantes a partir dos resultados dos testes, o que não contribui para ações efetivas de melhoria da qualidade da oferta educacional. Como esses resultados estão relacionados ao nível socioeconômico dos estudantes, esse tipo de premiação pode contribuir para a ampliação das desigualdades educacionais.
Apesar de todos esses riscos, os resultados das avaliações podem e devem ser utilizados como diagnóstico tanto para a discussão e definição de políticas educacionais quanto para a análise sobre a organização dos sistemas de ensino. Os dados podem contribuir para fundamentar necessárias reflexões acerca do trabalho educativo realizado pelas escolas, as formas de tratamento dos conteúdos escolares, a cultura institucional, as desigualdades educacionais.
Selecionamos as informações da avaliação realizada em 2019 com estudantes de Ensino Médio (3º- e 4º- anos) matriculados em escolas públicas (avaliação censitária) e em escolas privadas (avaliação amostral) do país. Há um grande conjunto de dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) sobre estudantes, escolas, docentes, gestores. Essas informações podem ser relacionadas aos resultados de proficiência em Matemática, Língua Portuguesa, Ciências Humanas e Ciências da Natureza. Para este artigo, interessa apenas os dados relativos à Língua Portuguesa.
A primeira evidência que salta aos olhos quando analisamos os resultados das avaliações dos estudantes de Ensino Médio em 2019, que também pode ser encontrada em outros anos em que a avaliação foi realizada e em outras etapas, é a desigualdade de rendimento dos estudantes matriculados em escolas de diferentes dependências administrativas. Há poucas matrículas de Ensino Médio nas redes municipais de ensino (pouco mais de 11 mil estudantes avaliados em todo o país), pois, de acordo com o Art. 10 da LDB nº- 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a responsabilidade pela oferta pública dessa etapa é dos Estados. As redes estaduais de ensino concentravam 85% das matrículas de Ensino Médio em 2019 e 1,7 milhão participaram do Saeb nesse ano.
Podemos verificar, na Tabela 1, que a menor média de proficiência encontra-se nas redes estaduais, com um dos maiores desvios padrão. O desvio padrão é uma medida de dispersão que indica quanto os valores obtidos se distanciam da média; assim, quanto maior o desvio, maior a dispersão, mais o conjunto de dados se distancia do valor da média, o que indica maior desigualdade entre as proficiências do grupo de estudantes. Então, nas redes estaduais, os estudantes obtiveram menor média geral e há maior desigualdade entre eles. Esse resultado pode ter sido afetado pela grande diversidade entre as redes estaduais de ensino do país.
Na rede federal de ensino encontramos a média mais alta e a menor dispersão. Isso pode significar que os estudantes das escolas federais apresentam maior proficiência e menor desigualdade entre si. Os estudantes de escolas da rede privada obtiveram média geral muito próxima dos estudantes das escolas federais, mas a dispersão é um pouco maior, o que pode indicar maior desigualdade entre as escolas privadas do que entre as escolas públicas federais.
Podemos considerar que as escolas federais e as escolas privadas são as mais seletivas, pois as federais em geral promovem procedimentos de seleção dos estudantes para o ingresso, classificando aqueles que apresentam melhores resultados. Já as escolas privadas selecionam os estudantes pela cobrança de mensalidades, matriculando aqueles que possuem nível socioeconômico mais alto e possuem condições para manter os pagamentos. Ainda que existam exceções, tanto em instituições federais que adotam outras formas de ingresso (como sorteios) quanto em instituições privadas que distribuem bolsas de estudos ou cobram baixas mensalidades, em geral elas se mostram mais seletivas.
Permanecem, então, algumas dúvidas importantes sobre o processo de produção das desigualdades educacionais: a seletividade das escolas federais e das escolas privadas contribui para que seus estudantes apresentem níveis mais altos de proficiência? Se essas escolas recebessem os estudantes que frequentam as escolas públicas estaduais comuns, eles teriam média de proficiência mais alta que os demais? A seletividade das escolas contribui para a segregação dos estudantes, estratificação dos sistemas de ensino e manutenção das desigualdades?
Há outras informações que ajudam a entender as desigualdades entre as escolas. Poderíamos analisar a composição dos estudantes em relação ao nível socioeconômico, à escolaridade de suas mães, ao pertencimento étnico-racial; poderíamos analisar as condições de infraestrutura das escolas, a adequação da formação docente à etapa e à disciplina ministrada, as características da gestão escolar; e também poderíamos analisar o território onde a escola se situa, as características do entorno, as políticas locais que interferem na organização da oferta. Para efeitos deste texto, não é possível desenvolver todas essas análises e muitas dessas informações não estão disponíveis no banco de dados do Saeb, o que exigiria tratamento e pareamento de dados de outras fontes. Assim, selecionamos os dados relacionados à autodeclaração de cor/raça para apresentar aqui.
As desigualdades educacionais atingem de forma muito distinta estudantes que se autodeclaram brancos, negros (pretos e pardos), amarelos, indígenas. Estudantes que se autodeclaram brancos são os que apresentam a maior média na avaliação de Língua Portuguesa (296 pontos) com alto desvio padrão (51,2) o que pode indicar que a média mais elevada está acompanhada de grande dispersão entre os casos, ou seja, nem todos apresentam altas notas.
Estudantes que se autodeclaram amarelos (média 277) e pardos (média 274) apresentam médias mais baixas do que os estudantes que se autodeclaram brancos. Essa diferença é de pouco mais de 20 pontos. De acordo com Soares e Alves (2013, p. 496), “20 pontos na escala de proficiência do Saeb [...] equivale a aproximadamente um ano de escolaridade”, ou seja, mesmo frequentando a mesma série, a diferença de proficiência entre esses grupos corresponde a um ano de experiências e oportunidades escolares. É como se os estudantes que se autodeclaram amarelos e pardos tivessem tido um ano a menos de oportunidades de aprendizagem, quando comparados a estudantes brancos.
A diferença é ainda maior quando observamos as médias de estudantes autodeclarados pretos (média 269) e indígenas (média 255). No caso de estudantes autodeclarados pretos, a média é 30 pontos mais baixa que a dos estudantes autodeclarados brancos; e no caso dos autodeclarados indígenas, a diferença é de mais de 40 pontos. Essa diferença equivaleria a um ano e meio e dois anos, respectivamente, de defasagens em termos de experiências de escolarização. Para os estudantes indígenas, o valor do desvio padrão (48,5) é mais baixo do que para os outros grupos, o que significa que além da média ser mais baixa, a dispersão é menor, ou seja, as notas dos estudantes estão concentradas mais próximas dessa média.
A diferença de cor/raça se converte em desigualdade de desempenho associada ao problema histórico de racismo estrutural e institucional reproduzido pela sociedade e pela escola. As desvantagens captadas pelas desigualdades entre as médias exigem que a escola assuma uma posição antirracista, desde a definição de políticas até a organização do currículo e a ação cotidiana. Não é possível tolerar o racismo, o preconceito, as práticas de discriminação.
As desigualdades raciais estão vinculadas às desigualdades educacionais, e vão além das relações entre cor e renda. Manifestações de racismo produzem experiências de escolarização que afetam a construção da autoimagem, da autoestima e do desempenho dos estudantes. O enfrentamento dessa situação exige seu reconhecimento e a reconstrução de relações sob outras perspectivas, a perspectiva da alteridade e da igualdade racial.
As desigualdades aqui analisadas precisam ser compreendidas a partir dos múltiplos atravessamentos que as constituem. Um fator que também interfere no desempenho dos estudantes é a idade que tinham quando começaram o processo de escolarização. Verificamos uma tendência de associação entre a idade de ingresso no sistema de ensino e o desempenho nas avaliações externas.
Outro aspecto que pode ser analisado, para averiguar desigualdades internas aos sistemas de ensino, é a distribuição dos estudantes de acordo com o turno de matrícula e a frequência à escola. Os estudantes que frequentam a escola no turno matutino apresentam médias mais altas na avaliação do que estudantes que frequentam o vespertino e o noturno.
As experiências de fracasso escolar e as experiências promovidas pelas desigualdades educacionais produzem impactos sobre as expectativas dos estudantes em relação ao futuro e à continuidade dos estudos. Ao mesmo tempo, as expectativas das famílias e dos docentes também influenciam no desempenho escolar. Essa influência recíproca pode ser observada nos dados sobre a média dos estudantes quando comparadas às suas pretensões depois da conclusão do Ensino Médio.
A média atingida pelos estudantes que pretendem somente continuar estudando é mais alta do que a média dos estudantes que pretendem conciliar estudo e trabalho ou permanecer apenas no mercado de trabalho. Os estudantes que responderam que pretendem apenas trabalhar apresentaram uma média 60 pontos abaixo dos que pretendem apenas estudar. Em parte, isso pode nos levar a compreender que os estudantes com menores desempenhos são desestimulados a continuar os estudos, enquanto os estudantes com melhor desempenho são estimulados a continuar estudando e ter uma vida escolar mais longa. Por outro lado, a intenção de estudar e trabalhar ou somente trabalhar não depende exclusivamente da vontade individual, mas sobretudo das condições de vida que exigem o ingresso no mercado de trabalho, mais cedo. É uma decisão ou expectativa que também está relacionada ao nível socioeconômico dos estudantes, embora não se limite à questão de renda.
Podemos ainda ressaltar aspectos relacionados às condições de vida e estudo, que foram fortemente agravadas no período de pandemia da Covid-19, vivenciado desde o início do ano de 2020. Embora estejamos analisando as respostas de estudantes que concluíram o Ensino Médio (ou estavam matriculados nos 3º- e 4º- anos) em 2019, algumas respostas podem ser consideradas tendências que provavelmente se mantiveram nos anos posteriores.
Em 2020 e início de 2021, grande parte das instituições de ensino adotaram medidas de isolamento social para conter a pandemia e instituíram em suas rotinas a utilização de tecnologias de informação e comunicação para a realização de atividades remotas. Isso tornou necessário o acesso a equipamentos como computadores e smartphones, à internet, a espaço adequado para estudar e acompanhar as atividades on-line.
Entre os estudantes de Ensino Médio que realizaram as avaliações do Saeb em 2019, 32,9% não tinham computador (PC ou notebook) em casa e 22,2% não tinham rede Wi-Fi; 13,7% dos respondentes não tinham computador nem internet, com rede Wi-Fi. Dos estudantes matriculados em redes estaduais de ensino, 37,7% não tinham computador; enquanto 82% dos estudantes da rede federal e 91% dos estudantes das escolas privadas tinham pelo menos um computador em casa.
Além dos equipamentos e de acesso à internet, o espaço físico passou a ser de grande importância nesse momento: 48,7% afirmaram não ter mesa ou escrivaninha para estudar e 39,1% não possuem um quarto só seu. Isso implica, provavelmente, na necessidade de compartilhar espaços e equipamentos (quando estão disponíveis) com outros moradores da casa, organizar horários para esse uso compartilhado, dividir o tempo de uso de pacotes de dados, conciliar as demandas da vida privada com as demandas das tarefas escolares.
Se transpusermos essa situação para o momento em que vivemos, fica evidente que as condições para o acompanhamento das atividades remotas são muito desiguais entre estudantes que frequentam tipos diferentes de escola, que possuem condições materiais diferenciadas, que enfrentam realidades e situações domésticas muito distintas. As desigualdades existentes tendem a se acentuar também em virtude da crise econômica, da ampliação das taxas de desemprego, das situações de vulnerabilidade a que estão expostos.
Discutir desigualdades educacionais e os entrecruzamentos entre essas desigualdades e desigualdades sociais implica em reconhecer as desvantagens que se acumulam e se sobrepõem para alguns grupos sociais. As desigualdades de oferta educacional são atravessadas por desigualdades sociais, desigualdades raciais, desigualdades de acesso a bens e serviços sociais que deveriam ser garantidos como direito de todos.
Os fatores abordados neste texto não são os únicos que nos ajudam a compreender as desigualdades entre as escolas e as redes de ensino. É preciso considerar que as escolas que compõem as diferentes redes e sistemas de ensino também são diferentes entre si, ou seja, ainda que possamos verificar certas tendências, como as indicadas ao longo desta análise, não podemos supor que as instituições sejam homogêneas, pois não são. As desigualdades persistentes em nosso país muitas vezes produzem um olhar de resignação frente a esse conjunto de desvantagens, naturalizando as desigualdades e criando um discurso que transforma direito em privilégio. A educação não pode ser um privilégio, já nos ensinou Anísio Teixeira desde os anos 1960, assim como as condições para uma aprendizagem efetiva, para a aquisição dos conhecimentos escolares, para uma oferta escolar com condições de qualidade para todos, também não podem ser privilégio de ninguém.
O enfrentamento e a superação das desigualdades educacionais exige o reconhecimento das desigualdades e dos processos de produção dessas desigualdades, exige a defesa intransigente de igualdade e equidade na oferta educacional, garantindo que os estudantes que apresentam maiores demandas, em condições de maior vulnerabilidade, tenham acesso a mais oportunidades e a estratégias de ensino adequadas às suas necessidades.
Nessa perspectiva, Dubet (2008) defende a organização de um currículo mínimo que estabeleça conteúdos obrigatórios e garanta cultura escolar comum a todos os alunos. Consideramos importante garantir uma educação de excelência que possibilite ultrapassar os mínimos, mas é igualmente importante garantir que a ambição pelo mérito não produza seleção e segregação, que a busca pela excelência não se realize em detrimento do direito à educação e à aquisição do conhecimento pelo conjunto dos alunos. O enfrentamento e a redução das desigualdades é uma exigência das sociedades democráticas que percebem a educação como direito inviolável.
Ana Lorena Bruel é graduada em Pedagogia, com mestrado em Educação, pela Universidade Federal do Paraná; doutorado em Educação, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; e pós-doutorado pela Université de Bordeaux, França. É professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar e do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal do Paraná.
Referências
BRUEL, A. L. “Diálogos entre política educacional e sociologia: algumas reflexões sobre desigualdades sociais e educacionais”, in: Silveira, A. D.; Souza, A. R.; Gouveia, A. B. (orgs.). Conversas sobre políticas educacionais. Curitiba: Appris, 2014.
BONAMINO, A.; SOUSA, S. “Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil: interfaces com o currículo da/na escola”. Educação e Pesquisa, v. 38, nº- 2, abr./jun., 2012, pp. 373-388.
DUBET, F. O que é uma escola justa? São Paulo: Cortez, 2008.
SOARES, J. F.; ALVES, M. T. G. “Efeitos de escolas e municípios na qualidade do ensino fundamental”. Cadernos de Pesquisa, v. 43, nº- 149, ago., 2013, pp. 492-517.
TEIXEIRA, A. Educação não é privilégio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
THEODORO, M. (org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: Ipea, 2008.
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