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Entrevista: CUTI Luiz Silva

Entrevista: CUTI Luiz Silva

Por uma literatura negro-brasileira

Por uma literatura negro-brasileira

Camila Prado

15 de agosto de 2023

Palavra como antídoto escrevendo um mundo novo

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 A primeira contadora de histórias, quem jogou as sementes da literatura em sua vida, foi sua avó, certo? De que outras formas o senhor foi “fisgado” pela literatura? 

O que mais me fisgou foi o prazer de fabular e a necessidade de me conhecer a cada dia mais. É gostoso fabular. Por isso a humanidade é feita de narrativas. Há um prazer nisso, algo fisiológico. Eu fabulava brincando, ouvindo minha vó e viajando na fumaça de seu pito de barro, além de ficar atento ao que me contavam minha mãe e minhas irmãs. O problema do prazer de fabular é que praticamente a maioria dos humanos estão, em pleno século XXI, viciados em mitos. Mitos são estórias. Estamos tendo uma verdadeira overdose de mitos manipulados por gente muito ruim que percebeu desde a antiguidade que poderia roubar e controlar os outros por meio desse prazer. A literatura oferece outra alternativa: a de receber o maior número possível de olhares, e não apenas os selecionados para hegemonizar, que põem viseiras em todo mundo.  

 O senhor diz que na adolescência a poesia tinha o papel de extravasar inquietações da juventude e do enfrentamento da realidade racial brasileira. Como foi passar para o outro lado, da leitura para a autoria? Fale um pouco sobre esse tornar-se escritor. 

Entender-me como pessoa passa pela reflexão do que mais me atinge. O racismo desde muito cedo me atingiu. Extravasar é fazer catarse, uma das funções da literatura. Outra função importante é produzir/ fruir conhecimento. Desde cedo eu fabulo. Antes, oralmente. Foi só aprender a escrever e continuar fabulando. A juventude é um período muito crítico na vida das pessoas. Há uma guerra de hormônios que nos deixa profundamente inquietos e apreensivos em relação ao entendimento do mundo. Somos, nesse momento, presa fácil das crenças e ideologias. Os malandros sabem disso. Assim, aliciam a juventude para todo tipo de escravidão. Escondem a real condição humana usando certezas baseadas no medo, na ignorância e na intimidação. Tornar-se escritor é dos caminhos para se livrar dos predadores de subjetividade.

Produzir literatura a partir de
uma perspectiva antirracista é contribuir
para a libertação das pessoas.

pode qualquer poder
decretar o fim da linguagem
negra que persiste impressa
no lado oposto
da farsa

o poema esgarça
norma, decreto, lei
     e teoria de supremacia de raça
de povo escolhido
ou qualquer outra desgraça
(Trecho de “Persistência”, in: Negrhúmus líricos: Poemas. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2017, p. 22.)

 

 Voltando um pouco à questão de despertar o interesse pela literatura, mas agora ampliando-a, como o senhor vê o ensino da literatura nas escolas? 

Ainda estamos presos ao biografismo que impede a formação de leitores. Com ele, os estudos de época. O ensino da literatura não permite que se aborde o principal: o texto. Por outro lado, a obrigação de se avaliar o aluno se confronta com o prazer da leitura. Leitura é deleite. Quando se associa a ela fichas a serem preenchidas, trabalhos a serem realizados, disputas entre grupos, o deleite se perde e a formação de leitores não se realiza, porque todo esse esforço impede. Assim, o ensino da literatura acaba indo contra a própria literatura, dela surrupiando futuros e potenciais leitores. A vivência com o texto no ato da leitura é intensa quando se faz com liberdade. As infinitas analogias que são feitas constituem o tesouro que se conquista. Há uma ilusória pretensão de se descobrir “o que o autor quis dizer”. Isso é o que menos importa. Da pós-leitura importa o que o leitor quer dizer de sua viagem.

 “A formação escolar é muito dolorida para a população negra porque parte de textos racistas” – a partir dessa sua declaração, gostaríamos de ouvi-lo sobre como a situação imaginária que o texto literário apresenta pode contribuir para a construção de uma real identidade brasileira, que olhe para e reflita sobre nossas sequelas históricas e nos ajude a superá-las. 

A literatura, juntamente com as outras artes, atua no sentido de tornar o imaginário, coletivo e individual, dinâmico, permitindo- lhe não se esclerosar. A vida é movimento, descoberta constante. Imaginário cristalizado significa sofrimento, violência e morte. O racismo é uma das tentativas de cristalização do imaginário, pela ação do mito da superioridade racial. Invasores, ladrões, criminosos de todos os tempos são alçados ao plano da virtude e suas ações são, estupidamente, nomeadas como civilização e cultura, quando não passaram e não passam de barbárie. Produzir literatura a partir de uma perspectiva antirracista é contribuir para a libertação das pessoas, é incentivá-las a sair da vala comum da obediência aos ditames da crueldade milenar que torna o “homo sapiens” em “home stultus”, colocando a estupidez como parâmetro a ser seguido, inclusive com toda a tecnologia que se vai inventando. Da mesma forma, atua a perspectiva antipatriarcal. Assim como há uma hierarquia racial, há também uma hierarquia de gênero. Ambas, baseadas em mitos, precisam ser demolidas na subjetividade das pessoas como ação imprescindível para a reconstrução do mundo livre e prazeroso. Se os mitos as sustentam, neles deve estar a atenção de quem cria literatura.

 Desde 1978, a série Cadernos Negros, da qual o senhor é um dos fundadores, alterna entre poemas e contos a cada edição anual. Fale um pouco sobre essa premissa, bem como sobre a relevância dos Cadernos Negros no campo editorial. 

Alternar poemas e contos foi uma maneira de incluir mais autores no projeto iniciado em 1978. A série Cadernos Negros nasce com o propósito libertário tanto de experimentação estilística quanto temática. É uma resposta ao bloqueio editorial racista ainda presente na sociedade brasileira. Um bloqueio que significa um epistemicídio na fonte, ou seja, a não permissão para que o conhecimento diferenciado se faça. Agora, que os Cadernos completam 43 anos, fica bem mais fácil entender o projeto pela sua trajetória. Foi início para muita gente que hoje tem vários livros publicados. Criou leitores onde não havia nenhum. O Quilombhoje (grupo de escritores que passou a organizar os Cadernos Negros a partir do volume 5), criado em 1980, dois anos depois da criação da série, fazia suas Rodas de Poemas. Algumas dessas reuniões chegavam a ter várias dezenas de pessoas. E havia música, e havia dança, tudo em uma mesma sintonia com o dizer o poema. A experiência subjetiva da população negra do Brasil precisa cada vez mais ser plasmada em literatura. Isso enriquece o país como um todo. O protagonismo é uma das vias. Mas, os brancos ou os que se pensam como brancos precisam entender que os escritores negros estão falando deles, brancos, também, e de todos os que compõem a vida nacional. A escrita negro-brasileira propõe flagrar as práticas racistas no cotidiano das relações sociais – com suas contradições, baixeza e crueldade – e apontar caminhos de superação. 

 Por que Literatura Negro-brasileira e não Afro-brasileira? Conte-nos um pouco os fundamentos de seu conceito. 

A criação conceitual pelos oprimidos é o que mais irrita os opressores. Nomear é privilégio de quem detém o poder. Quando conceituamos, estamos redirecionando o pensamento para que considere aspectos que foram negligenciados ao longo do tempo histórico e cultural. A Humanidade surgiu na África. Todos os humanos são “afros”. Não só os negros. Precisamos assumir essa evidência genética e civilizatória. A expressão “negro-brasileiro” traz o sentido de evitar o culturalismo que, desde Gilberto Freyre, tenta domesticar mentalmente a intelectualidade negra, tomando a África como referência obrigatória que anula a brasilidade negra e seu propósito transformador que nos remete aos quilombos e que, no pós- -abolição e no início do século XX, foi encontrando na palavra “negro” o seu mote identitário (Frente Negra Brasileira, Teatro Experimental do Negro, Movimento Negro, Dia Nacional da Consciência Negra etc.). Além do meu livro Literatura negro-brasileira, o ensaio que escrevi e intitulei Quem tem medo da palavra negro trata dessa questão de a elite brasileira historicamente empurrar o debate sobre a violência racial para debaixo do tapete. É a forma de perpetuá-la. Em pleno século XXI, há governantes que dizem não haver racismo no Brasil. A hipocrisia dessa gente já virou uma calosidade escandalosamente vergonhosa.  

irmão, quantos minutos por dia
a tua identidade negra toma sol
nesta prisão de segurança máxima?
(Trecho de “Torpedo”, in: Negroesia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p. 92.)  

às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada

às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
(Trecho de “Quebranto”, in: Negroesia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p. 53.)

apesar do chá que fascina
vaidades na academia
o poema negro digladia contra a
hecatombe vivida na periferia

e abomina a indiferença
que se quer neutra
sendo assassina.
(Trecho de “Contradicção”, in: Axéconchego: Poemas. Salvador: Segundo Selo, 2020, p. 84.)

Conheça mais sobre a obra do autor em
<www.cuti.com.br>.

 

 

 Na área acadêmica, o senhor se debruçou sobre os autores Lima Barreto e Cruz e Souza. Considera que eles têm seu devido espaço na literatura e na formação dos estudantes? 

Cruz e Sousa e Lima Barreto fazem parte do cânone literário brasileiro, porém são escanteados pelo racismo. Recobrindo o seu ódio com argumentações puristas e análises torpes e inconsistentes, acadêmicos que são supremacistas brancos – muitos enrustidos – desprezam esses nossos autores. Percebi muito isso no meu tempo de universidade, tanto na graduação em Letras quanto na pós- -graduação na mesma área. Trabalhar esses autores é fundamental para a formação dos alunos brasileiros. Isso porque eles plasmam em literatura uma experiência vivida bastante silenciada ainda. Fazem uma leitura muito especial da realidade, uma leitura a partir do ponto de vista de quem sofre e pensa sobre a opressão e suas consequências subjetivas. 

 Bel Santos Mayer (gestora da Rede LiteraSampa e coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – Ibeac), em entrevista para nossa 35ª- edição, sugeriu o que ler durante o isolamento da Covid-19: “Qualquer poesia que ajude a respirar”. Suas dicas: “Adélia Prado, Cuti, Drummond”. Em que medida a literatura o ajuda a respirar, principalmente no momento em que estamos vivendo?

 A poesia é respiração psíquica. Ela tem por função básica não deixar a língua enrugar, necrosar. Ela areja a língua que usamos, impede que os automatismos com o qual vamos nos comunicando no dia a dia tenham pleno êxito. A poesia, pelo seu permanente refazer a organização das palavras e a criação de novos termos, impede que a língua se reduza ao império do imperativo comercial e ideológico. É ela que revitaliza a língua e nos permite pensar além dos parâmetros estabelecidos, porque move nossa percepção a partir das profundezas do inconsciente, elaborando construções linguísticas que se comunicam diretamente com nosso universo das sombras.

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