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O que diz o texto do(a) professor(a) no seu relato de prática?

O que diz o texto do(a) professor(a) no seu relato de prática?

texto - Ivoneide Bezerra de Araújo Santos Marques; ilustração - Criss de Paulo

15 de agosto de 2023

Palavra de educador(a): viver para contar e contar para viver. Experiências da 7ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa

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Naquele dia, não consegui aguardar o toque do relógio. Por aqui, o dia estava quente como de costume, mas não foi o calor que me acordou. Eu mal dormi naquela noite. O dia prometia. Antes do horário marcado, já estava diante do computador esperando (re)encontrar na tela os(as) colegas com quem eu dividiria mais uma experiência: a avaliação dos relatos de prática dos(as) professores(as) que participavam da Olimpíada 2021, trabalhando com o gênero discursivo Artigo de Opinião.

Ciente da responsabilidade que havia assumido, eu pensei algumas vezes: como devo receber os(as) colegas no primeiro dia? Mil coisas passaram pela cabeça: vou fazer uma exposição rápida sobre os critérios avaliativos para otimizar o tempo que seria bastante curto; discutir, em linhas gerais, sobre o papel do avaliador de textos na Olimpíada; esclarecer sobre a concepção de avaliação adotada etc. Que coisa mais impessoal, pensei. De repente, um insight. Não teria erro. Era isso. Iria recebê-los com uma dose generosa de afeto e poesia. Declamaria para eles: 

“Não são caracteres desconhecidos é a nossa escrita comum, sem qualquer ambiguidade, sem qualquer ornamento pessoal, manual, ideal. Que diz o texto?” ;

  

Desde que recebi o convite para participar da comissão julgadora, não me saía da cabeça este verso do poema “Tradução”, de Cecília Meireles: “Que diz o texto?”. Era tudo que eu queria saber. A sensação de curiosidade misturada à euforia me fazia sentir o coração saltar pela boca. Era chegada a hora de decidirmos que textos seriam os finalistas.  

Cada avaliador já teria lido os textos e eu também. Na condição de presidente dessa comissão, dividiria essa responsabilidade com uma representante do Cenpec; por sinal, ganhei de quebra, como se diz no lugar onde eu vivo, uma excelente parceira. Avaliei, previamente, todos os 42 textos que já haviam sido selecionados entre os melhores nas Comissões Julgadoras Estaduais de diferentes partes do país. Nossa equipe de avaliadores na Etapa Semifinal era composta por seis pessoas, além de mim e da representante do Cenpec. Contamos ainda com mais três colegas da equipe de apoio do Cenpec para as questões de ordem técnica. Embora os textos já tivessem sido avaliados previamente pela equipe de avaliadores, a escolha definitiva ocorria naqueles dois dias. Dias de intenso trabalho pela frente. Senti um frio na barriga. Mas, atuando na Olimpíada desde 2008, sua primeira edição, sentia-me preparada para a tarefa. Contudo, era preciso, além de observar os critérios estabelecidos para o concurso, definir estratégias metodológicas para o trabalho a ser realizado.

Partindo de outras experiências, decidimos que faríamos uma avaliação dialogada, discutindo cada um dos 42 textos, ouvindo cada profissional sobre o que ele tinha a dizer, a partir de suas anotações, análise dos materiais e registros de sua avaliação individual. Observando cada relato de prática, fomos vendo quais tinham mais condições de avançar para a fase final. Para escolher um texto, cada avaliador(a), além de ter analisado previamente, precisava justificar sua opção e apontar os pontos que destacava em cada um. Essa estratégia metodológica impõe seriedade e rigor ao trabalho avaliativo e ajudou bastante a dinamizar o processo de seleção dos semifinalistas e, depois disso, cada texto ainda foi escolhido coletivamente pela equipe. Um trabalho metódico e muito criterioso.

Nos dois dias de avaliação, esse diálogo sobre cada texto foi superprodutivo, pois a troca das experiências de leitura dos textos nos ensina a avaliar melhor, observando, comparando e refletindo sobre o que foi realizado nas oficinas, confrontando o que está registrado por escrito no relato com o que está registrado nos materiais e no álbum da turma. Penso que essa mudança, oportunizando anexar outros materiais (fotos, textos de estudantes, vídeos etc.), além do texto do professor, impôs ainda mais seriedade e rigor ao concurso. Afora o orgulho de estar contribuindo com um trabalho tão relevante para a educação do país, a sensação que sentia naquele momento era de contentamento, entusiasmo e esperança, palavra de grande valor no atual contexto de crise humanitária.

Concluímos com sucesso a seleção dos textos, inclusive os que comporiam a lista da reserva de vagas, destinada a escolas que apresentam baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). A meu ver, das mudanças ocorridas no concurso, essa é a mais relevante por garantir a essas escolas a oportunidade de acompanhamento e acesso à política de formação docente proporcionada pela Olimpíada.

Nesta 7ª- edição, o concurso rompeu padrões e reconfigurou-se, tendo assumido um novo formato, ao se realizar totalmente on-line. Além disso, incluiu o gênero discursivo Relato de Prática, focando, de modo mais específico, na escrita dos(as) professores(as). Certamente, a reconfiguração do concurso e a mudança do ensino presencial para o ensino remoto implicaram alteração no desenvolvimento das atividades na sala de aula. Tudo isso instigou mais ainda meu interesse em saber o que dizem os relatos dos docentes sobre essa experiência.

A escrita dos professores e das professoras desvela valores, visões de mundo e opiniões sobre o que foi vivenciado no contexto em que trabalharam, além de vários sentimentos (medo, insegurança, angústia, tristeza, esperança e indignação). Os textos revelam o quanto têm sido resilientes, comprometidos( as) e obstinados(as) na busca pela melhoria de suas práticas pedagógicas, no enfrentamento das dificuldades que lhes são impostas. No contexto da pandemia, a Olimpíada teve um papel social importante, pois contribuiu muito para motivar os(as) estudantes e os(as) próprios(as) professores(as). Observamos em diversos relatos que o material do concurso disponibilizado no Portal Escrevendo o Futuro e os encontros de formação deram suporte ao trabalho realizado nas oficinas e nos projetos e ajudaram a manter os(as) estudantes na escola.

O trabalho da comissão fluiu muito bem. No segundo dia, houve um momento em que o grupo precisou parar, reler textos, refletir mais profundamente sobre as experiências neles relatadas para decidir se um texto deveria seguir adiante ou não. Percebemos a importância de ouvir o outro, de negociar sentidos atribuídos aos textos lidos, de confrontar parâmetros utilizados na avaliação individual anteriormente realizada, para realinhar critérios avaliativos, visando à garantia da equidade no processo. Uma passagem marcante do trabalho em equipe foi a discussão de um texto que apontava possibilidades de ensinar a argumentar para a vida. Isso me chamou a atenção por propor o uso das práticas de letramento para agir no mundo, um ponto de partida para o trabalho com leitura e escrita como práticas sociais, algo que deve ser assumido como objetivo de ensino da língua na escola. Mas o texto dividiu a opinião do grupo por não atender a um modelo prototípico de um relato de prática, embora tivesse outros pontos positivos, tais como: originalidade, autoria e reflexão sobre a ação na narrativa da experiência, o que colocava em relevo o quanto refletir sobre a ação impacta na formação docente. No final, o texto ficou entre os escolhidos para compor a seleção da reserva de vagas. Esse episódio me fez compreender melhor o valor do diálogo em processos educativos, pude entender que “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”1. Para o autor, diálogo é uma exigência existencial.

No processo reflexivo de pensar sobre a ação, compreendi que essa experiência foi algo singular não porque a vivi, mas pelo que nela me ocorreu, por exemplo, quando pude testar minha capacidade de dialogar e perceber que ninguém perde por abrir mão de um posicionamento assumido, quando isso favorece o agir docente numa perspectiva ética, em que o trabalho colaborativo e o pensamento coletivo se sobrepõem aos interesses e opiniões individuais. Percebo agora, com maior clareza, o valor formativo da narrativa da experiência docente quando realizada em uma perspectiva crítica e reflexiva. Por exemplo, registrar por escrito essa experiência de avaliação, refletindo sobre minha própria prática, teve um impacto muito positivo para a minha vivência de formadora de professores e professoras. Levarei, certamente, muito dela comigo para minha atuação em sala de aula.

Em relação aos textos dos(as) professores( as), identificamos dificuldades enfrentadas no percurso de realização das oficinas, mas também percebemos o prazer em verem sua escrita em foco, em se sentirem prestigiados(as) pela Olimpíada e terem direito à voz, justamente em um período que tem exigido deles tantas competências e habilidades, sem que tenham tido acesso à formação necessária para isso, em sua formação inicial ou continuada.

Para enfrentar as dificuldades por falta de acesso a tecnologias, ou mesmo de lacunas na formação docente, professores, professoras e estudantes atuaram seguindo a lógica de que todos(as) ensinam e todos(as) aprendem, solidariamente. Isso foi apontado nos relatos lidos, conforme podemos ver em “Um poema em louvor da estrada”, do professor Gilmar de Oliveira Silva, de União dos Palmares (AL):

“[...] com as ações planejadas para uso da tecnologia, vinha muito trabalho, muito aperreio e muita necessidade de se aprender coisas complicadas para nós, mas muito simples para o 3º- A”.

  

Nesses momentos, entravam em cena os(as) estudantes e partilhavam conhecimentos e experiências com os(as) docentes, como relata Gilmar: “[...] com eles conseguimos fazer transmissão no Instagram, editar vídeos, elaborar cards, produzir podcasts, conhecer novos aplicativos para inovação de técnicas pedagógicas nas aulas”. Esse exemplo ilustra uma concepção de educação dialógica assumida no trabalho da Olimpíada: “O educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado em diálogo com o educando, que, ao ser educado, também educa”2.

Aos poucos as respostas à pergunta que não queria calar – Que diz o texto? – iam sendo evidenciadas na escrita dos(as) professores( as). Chamou-me a atenção, além dos obstáculos enfrentados, as estratégias metodológicas pensadas para viabilizar o trabalho docente. Diversos textos relataram experiências exitosas de trabalhos que resultaram da articulação de diferentes organizações didáticas (sequências didáticas, oficinas e projetos), ideia que defendo, por entender que uma organização dessa não exclui a outra e a articulação delas pode subsidiar a prática do professor em sala de aula.

Da Olimpíada 2021, carregarei comigo a certeza de que boa parte das soluções de que precisamos para a melhoria da qualidade da educação em nosso país pode vir dos professores e das professoras. Eles e elas revelam seriedade, compromisso, dedicação e responsabilidade social. Muitos(as) deles(as) demonstraram ter os saberes necessários ao saber fazer em sala de aula, mas ainda precisamos avançar nas políticas de letramento do professor e na sua valorização profissional, além de melhores condições de trabalho que lhes garanta, por exemplo, acesso às tecnologias e à internet. Para isso, é imprescindível também aparelhar melhor as escolas.

Ao longo de mais de trinta anos de docência, boa parte dela dedicada à formação docente, e apesar de toda a minha experiência na Olimpíada, posso afirmar: nesses dois dias de trabalho, muito aprendi. Aprendi, inclusive, que cada experiência é uma experiência singular. Aprendi até a escrever um relato de prática, numa narrativa reflexiva que me aponta caminhos e olhares para a vivência de novas experiências de ação e formação docente, na qual “[...] o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática”3. Dessa experiência, saio, portanto, com a certeza de que “[...] Ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro horas da tarde. Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, na prática e na reflexão sobre a prática”4


Ivoneide Bezerra de Araújo Santos-Marques é professora formadora da Rede de Ancoragem da Olimpíada desde 2008. Nesta edição do concurso, coordenou a Comissão Avaliadora dos Relatos de Prática dos(as) educadores(as) que trabalharam o gênero Artigo de Opinião ao longo da 7ª- edição da Olimpíada. Ela é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) e atua também no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). É doutora em Estudos da Linguagem pela UFRN, com estágio pós-doutoral pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob a orientação da professora Angela Bustos Kleiman.


Notas de rodapé

1. Paulo Freire. Pedagogia do oprimido. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 90.
2. Paulo Freire. Pedagogia do oprimido. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 79.
3. Paulo Freire. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 45.
4. Paulo Freire. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991, p. 58.

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