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Atos de fala e a voz da sabedoria

Atos de fala e a voz da sabedoria

texto - João Wanderley Geraldi; ilustração - Criss de Paulo

15 de agosto de 2023

Palavra de educador(a): viver para contar e contar para viver. Experiências da 7ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa

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Selecionamos aqui trechos da palestra que o professor João Wanderley Geraldi fez no Encontro de Semifinalistas para os(as) professores(as) que trabalharam o gênero Artigo de Opinião durante a 7ª Olimpíada de Língua Portuguesa.

A gênesis dos gêneros discursivos

Vou partir da seguinte questão: a ideia de que na relação de interlocução com outros por meio da linguagem, nós realizamos ações. Essa teoria começa com Austin [John Langshaw Austin, Lancaster, Inglaterra, 1911-1960], um dos grandes nomes da Filosofia da Linguagem Ordinária, na Inglaterra, mas tem o seu avanço diretamente para os estudos linguísticos, nos Estados Unidos, com John Searle e seu “Speech Acts” (“Atos de fala”).

Em meados do século XX, a Filosofia da Linguagem Ordinária consistiu em um movimento que teve como pressuposto metodológico a ideia de que os problemas filosóficos tradicionais resultam de confusões conceituais. Segundo seus adeptos, os filósofos frequentemente incorrem nessas confusões por distorcer ou desconsiderar o que as palavras realmente significam na linguagem cotidiana.

Fonte: Wikipedia.

Mas a teoria só me interessa no sentido de que cada unidade de fala nossa é um ato – e ato que não se realizaria senão através da linguagem. O exemplo clássico é do verbo prometer. Se eu digo: “prometo fazer ‘X’”, ao dizer que prometo fazer “X”, eu crio no mundo algo que não existia. É a minha promessa. A partir desse exemplo paradigmático – aquilo que na semântica se chama “prototípico” –, acabou-se percebendo que toda fala realiza um conjunto de atos. Quer dizer, o homem age. O homem não é somente um sujeito submisso, mas é um sujeito que age. As ações que nos interessam aqui são muito mais do que ações enquanto atos de fala, mas sim enquanto ações discursivas que são geradas – no sentido bakhtiniano do termo de gênesis – nas esferas da comunicação social. “Esferas da comunicação social” é outro termo para dizer o que na sociologia se chama de “Instituições Sociais”. Esse é o lugar de gênesis dos gêneros discursivos.

Relações intergenéricas e Bakhtin

Assim como as esferas de comunicação social são interdependentes, para mim o mais importante nos gêneros não é a especificação de cada gênero, mas as relações intergenéricas que são os cruzamentos que se dão entre um gênero, produzido em uma esfera, trazido para outra esfera propositadamente ou usado como modelo para criação de outro gênero. Por isso que Mikhail Bakhtin, naquele famoso texto sobre os gêneros discursivos [cf. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997], não trabalha uma tipologia dos gêneros, mas faz uma divisão entre primários e secundários. Do meu ponto de vista, na minha leitura de Bakhtin, um gênero secundário pode ser uma junção de dois outros gêneros secundários. Um exemplo clássico: um romance epistolar tem como seus gêneros constitutivos, como seus secundários, o romance e a carta que produzem o gênero romance epistolar. A carta tem em sua gênesis a conversa, principalmente a carta familiar. Então, você tem esse jogo: as ações discursivas, portanto, são da ordem dos gêneros enquanto formas composicionais e dos tipos de ações que fazemos durante um discurso, de modo que cada componente, cada ato de fala, em um discurso escrito, tem a sua textualização – e eu faço uma diferença entre texto e discurso. O discurso tem a sua materialização no texto, mas tem a sua materialidade nas esferas onde ele é produzido. Temos uma diferença entre materialização textual e materialidade: o leitor entra pela materialização textual e a sua leitura tem que chegar à materialidade do discurso. É uma caminhada ao inverso do processo de produção, e enquanto faz essa caminhada o leitor produz uma compreensão, porque ele pode deslocar um discurso de uma esfera de comunicação na qual ele aconteceu para outra esfera e, nessa outra esfera, o mesmo texto pode produzir compreensões diferentes. Todos nós professores trabalhamos com isso o tempo todo. Nós levamos para dentro da sala de aula o texto literário, que é deslocado da esfera da comunicação social literária, da “instituição literatura”, para dentro de uma atividade didática. Isso transforma um pouco o sentido do texto literário, porque produz novas compreensões.

Relatório e relato de experiência

Vou fazer uma diferença entre relatório e relato de experiência. O relatório de experimento, no que se refere à referência ao mundo, busca a objetividade e, portanto, a informação nua e crua do que supostamente é a verdade. É aquilo que nós chamamos de “verdade”. É óbvio que o relatório contém o ponto de vista do sujeito que o elabora, mas ele busca uma objetividade, enquanto que o relato da experiência é da ordem da subjetividade. Um relato de experiência em que não aparece o autor, em que o autor se faz neutro, escreve em terceira pessoa, adquirindo uma distância da experiência vivida, passa a jogar com uma das características de estilo do relatório no interior de um relato, portanto ele já está mesclando. O inverso é a mesma coisa. Há um exemplo que traz claramente o estilo de relato de experiência para dentro do relatório que são os dois relatórios de Graciliano Ramos, quando foi prefeito da cidade de Palmeira dos Índios. Um escrito em 1929 e o outro escrito em 1930.

Vou tomar só um exemplinho disso para mostrar como é que essa presença se faz. Enquanto o relato de experiência é da ordem da cronologia e do tema, o relatório é da ordem do “item por item” de atividades realizadas. No relatório de 1929 tem o item “Iluminação”: “A iluminação da cidade custou oito milhões, 21 mil e oitocentos réis”. E ele diz: “Se é muito, a culpa não é minha, é de quem fez o contrato com a empresa fornecedora de luz”. Já em 1930 escreve: “A prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o oferecimento de luz. Apesar de ser um negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um ‘BLUFF!’ Pagamos até a luz que a Lua nos dá.” Percebe-se a imbricação de estilos e do vocabulário: o seu modo de contar de “relatório” ele busca no relato de experiência. No texto “Cemitério”, no relatório de 1929, ele escreve: “No cemitério enterrei cento e oitenta e nove mil réis. Pagamento ao coveiro e conservação”. No relatório de 30, ele escreve no item “Cemitério”: “Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam.” Veja, ele trata os mortos como os “munícipes que não reclamam”, então a obra de fazer um novo cemitério pode ser prorrogada, enquanto que as obras para os vivos não podem. Você tem aí o quê? Num relatório de prefeitura cujo estilo composicional que deveria ser direto, com precisão, há a presença do relato de experiência que traz a subjetividade de quem faz o “relatório”, e com muita clareza.

Daí porque a verdade é que esses dois relatórios de Graciliano Ramos se tornaram clássicos da literatura brasileira, e não da burocracia da política brasileira. Eles nunca seriam apresentados como modelo daquilo que é burocraticamente produzido. Então, no estilo: enquanto um é direto e com tentativas de precisão; o outro é impressivo. Veja a diferença entre impreciso e impressivo, que vem de impressão. As impressões do autor aparecem dentro do relato de experiência. É claro que você tem no estilo o emprego de figuras de linguagem… Ao invés de dizer que gastou tantos mil réis no cemitério, ele diz “eu enterrei”. Ele pega um item lexical que é próprio precisamente da morte e do enterro para dentro de uma esfera social onde se usaria o verbo “gastou”. Então ele pôs: “enterrei”. Ele não fala em gastar. Quer dizer que o gasto é um enterro de dinheiro.

Parecer ou lição de vida

Um relatório, normalmente, termina com um parecer, ou uma indicação de crime, do que fazer, de uma proposta ou coisa semelhante. Um relato de experiência termina tirando lições da experiência de vida. Como diz o Jorge [Larrosa Bondía]: “A minha experiência não pode ser vivida por outro. A experiência de vida é somente minha”. Eu posso compartilhar a experiência relatando coisas da experiência que nunca vai ser um completo relatório, não será “pari passu”[em passo igual] com o acontecimento, por isso que ela é da ordem do tema e não do item. Da experiência que você deixa para os outros como legado, a lição que você tirou, e a lição na verdade é precisamente aquilo que nós compartilhamos: “Eu aprendi tal lição dessa experiência”. Isso não quer dizer que ao fazer as mesmas coisas que eu fiz você vai ter a mesma experiência, mesmo usando os mesmos instrumentos, não vai tirar a mesma lição que eu tirei. Mas a lição que tiro é uma lição que posso compartilhar, porque o relato da experiência está na ordem não da ciência, mas da sabedoria.

Da ordem da sabedoria

Quando em meados do século XX, Walter Benjamin escreveu sobre o narrador – que tem a ver com o relato de experiência, com a história –, ele diz que a narrativa está em queda no mundo, porque a experiência não tem mais valor. Veja o quanto os povos primitivos, ou os povos contemporâneos que não entraram na cultura racionalizada da modernidade ocidental, tinham no contador de histórias o lugar da sua história e o lugar da sua sabedoria. E Benjamin chama, muito claramente, a sabedoria “de lado épico da verdade”, no sentido de que você tem o herói nessa construção; enquanto o relatório é da ordem da objetividade, do não sujeito e do não herói. E claro que desde [René] Descartes, particularmente desde o Iluminismo, a modernidade se caracterizou pela exclusão da sabedoria. Talvez o último sábio com quem eu convivi, na Universidade, dando aula juntos e tudo, foi o Paulo Freire. Se tiverem a curiosidade de ler, por exemplo: Pedagogia da esperança, do Paulo [Paz & Terra], vão perceber que ele dá como subtítulo à essa obra “Um reencontro com a pedagogia do oprimido”. Eu me lembro que ele foi publicado em 1992 – e em 1990 ele me disse: “Wanderley eu tenho que fazer uma revisitação ao texto Pedagogia do oprimido. E o que é Pedagogia da esperança senão um relato da experiência de convívio dele com outros, a partir da leitura que outros fazem da Pedagogia do oprimido? Não é uma revisitação dele fazendo uma autocrítica à essa obra, mas é ele tomando as críticas feitas à Pedagogia do oprimido, contando as histórias dos encontros com seus leitores – que são outros muitos educadores – no mundo inteiro. Não se reescreve um livro, se revisita o livro a partir dos leitores. Isso é da ordem da experiência, isso é da ordem da sabedoria; e não da ciência. 

 


João Wanderley Geraldi, em uma das primeiras edições da Olimpíada, integrou a Comissão Julgadora Nacional para selecionar os textos vencedores. Também já participou de edições anteriores desta revista. Doutor em Linguística, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor visitante da Universidade do Porto. Reconhecido por seus trabalhos sobre ensino de Língua Portuguesa e análise do discurso, é autor de obras importantes como O texto na sala de aula: leitura e produção (Assoeste, 1984); Portos de passagem (WMF Martins Fontes, 2013); Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação (Mercado de Letras, 1996); A aula como acontecimento (Pedro & João, 2015).

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