"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Um relato sobre os infinitos e os finitos que cabem na Olimpíada
Um relato sobre os infinitos e os finitos que cabem na Olimpíada
texto - Lilian Borba; ilustração - Criss de Paulo
15 de agosto de 2023
Palavra de educador(a): viver para contar e contar para viver. Experiências da 7ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa
A edição de 2021 da Olimpíada de Língua Portuguesa trouxe como novidade o foco da premiação no relato de práticas docentes. Tal mudança fez com que professores e professoras se tornassem protagonistas nas reflexões sobre ensino e aprendizagem coletiva e colaborativa. Considerando que narrar é (re)significar, parto do princípio de que relatos de experiência são testemunhos históricos, e o tema “O lugar onde vivo” propicia aos docentes elaborar atividades a partir das quais os estudantes têm a oportunidade de olhar para sua cidade, pensar sobre ela para então “textualizá-la”. Olhar, (re)pensar, textualizar são ações relevantes na construção de cidadania – um dos papéis da escola pública – esse tipo de ação promove o que eu chamo de “olhar de ver”, em outras palavras, o tema da Olimpíada pode propiciar a desautomatização do olhar e do entendimento sobre a cidade, levando estudantes (e docentes) a experienciar o lugar onde vivem de formas diferentes. Neste artigo, busco externar parte de minha percepção sobre o envolvimento docente, sobre as significações do narrar e sobre o importante papel da Olimpíada nessas relações.
Em agosto, fui convidada para avaliar os relatos de prática docente relacionados aos cinco gêneros que pertencem ao concurso: Documentário, Crônica, Poema, Memórias Literárias e Artigo de Opinião. E, já em seguida, fui chamada também para atuar com o grupo de docentes formadores, cabendo a mim participar do Encontro de Semifinalistas do gênero Poema. Ao longo de quatro manhãs, na modalidade on-line, interagi com 21 professores provenientes do que chamo de “diversos interiores” do país. Nesses encontros, abordamos vários aspectos sobre a escrita, a função e a força tanto dos relatos produzidos pelos docentes quanto pelo processo de produção dos poemas elaborados pelos estudantes. Ver e ouvir mestres de escolas de cidades de pequeno e de médio porte, e de alguns municípios muito pequenos, narrarem oralmente momentos significativos de sua jornada em 2021, durante nossas rodas de conversas virtuais, se constituiu em uma vivência e tanto para o grupo! Discorremos muito sobre as condições de produção do trabalho docente e o elemento intrínseco a todos os relatos foi a pandemia da Covid-19 que fez com que as portas das escolas se fechassem em muitos momentos, levando a escola para dentro das casas de alunos e de professores.
Parte substancial do enfrentamento da pandemia pela escola está documentada nos relatos elaborados pelos professores e professoras e também nos textos dos alunos e das alunas. Foi comovente, por exemplo, acompanhar a fala de um professor do Amapá que esteve internado em virtude da Covid, ou saber sobre uma mãe que precisou coletar e vender material reciclado para comprar créditos para o smartphone da família para que os filhos pudessem acompanhar as aulas on-line, ou ainda ouvir o relato da professora que mora pertinho da escola e cuja residência se transformou em uma referência para que estudantes e pais recebessem orientação sobre atividades escolares. Enfim, nos encontros pelo ambiente virtual, discutimos o quanto os relatos produzidos são testemunhos desse período pandêmico, portanto são fontes para que se conheça um pouco da percepção de professores de diversas cidades sobre a função da escola nesta época.
Hoje, estou aqui, escrevendo meu relato de experiência no trabalho com diversos colegas de profissão, muitos dos quais não conheço pessoalmente, mas com quem me identifiquei demais, sobretudo no que diz respeito à parceria que conseguiram estabelecer com seus alunos criando grupos de mensagens eletrônicas, elaborando atividades extracurriculares, convidando poetas para atividades com estudantes, promovendo entrevistas com pessoas da cidade... Ou seja, os professores, cuja experiência tive a oportunidade de conhecer, buscaram propiciar momentos de aprendizado significativo durante o desafio da Olimpíada. Segundo os relatos docentes, o trabalho de escrita passou a ter propósitos múltiplos não se resumindo a “apenas” produzir um poema para/na escola, sendo que em muitos casos o compromisso acabou se transformando em experiências singulares. Uma delas foi relatada por uma professora do 5º- ano em cuja classe há alunos portadores de deficiência. A docente propôs aos alunos que modelassem com barro extraído de seus próprios quintais algum elemento que tivesse relação com sua cidade. Apesar da recusa inicial por parte de alguns estudantes, a professora que também produziu seu trabalho com o barro conseguiu levar os alunos a participarem dessa atividade de certa forma introdutória ao ato de escrever. Pode-se dizer que estrategicamente houve um deslocamento no trabalho com linguagens de forma lúdica e muito concreta que propiciou a inclusão de estudantes com deficiência que se manifestaram por meio de outra linguagem. Durante nossas rodas de conversa virtual, a professora mostrou ao grupo imagens do trabalho que tocaram os participantes do encontro.
Aliado a essa possibilidade de deslocamentos no trabalho docente, um elemento que sempre me toca nesta atividade profissional é a animação, o entusiasmo com que certos professores assumem desafios ainda que em lugares com pouca atenção em termos de estrutura, em condições adversas como o momento pandêmico em que vivemos. No breve convívio com os professores semifinalistas, tive por vezes a sensação de que muitos de meus colegas professores conseguem encaixar o infinito da criatividade de suas ações pedagógicas, o infinito de suas ações humanas no finito dos dias letivos, no finito da estrutura escolar, no finito dos créditos de internet. Muitos professores conseguem encaixar o infinito potencial de seu conhecimento até mesmo na dura realidade da fome de alguns de seus alunos, às vezes, muito pequenos. Isso não é pouca coisa. Eu me senti realmente privilegiada por poder acompanhar e conhecer as ações que tantos professores desenvolveram ao longo desta Olimpíada que aconteceu no segundo ano da pandemia da Covid-19.
Essa habilidade, aparentemente paradoxal, de conjugar infinito e finito, que constitui o fazer de certo tipo de professor me traz à lembrança o personagem Clarimundo Roxo, da obra Caminhos cruzados, de Erico Verissimo. O mestre, criado por Verissimo, “preparou projetos, estudou e compreendeu Einstein, escreveu artigos para jornais, notas sobre filosofia, matemática, física e astronomia recreativa”, e costuma acordar muito cedo para vencer a agenda de aulas para alunos de diversas classes sociais. No romance, o professor Clarimundo faz a ponte entre mundos diversos cujos indivíduos têm acesso extremamente desigual a bens materiais e culturais. O narrador faz a seguinte afirmação sobre os sonhos e a dura rotina de Clarimundo:
“O espírito do professor monta na vassoura mágica
e vai fazer uma excursão pelo país das maravilhas.
Outra vez os dois mundos: o infinito dentro do finito”1.
Ao traçar um paralelo entre essa interessante passagem do romance e algumas das manifestações dos professores durante Olimpíada, me permito dizer que a “vassoura mágica” dos colegas docentes espalhados pelo país afora é, sem dúvida, o desejo de que suas aulas sejam significativas para seus estudantes, já o “país das maravilhas” é o conhecimento construído, renovado, revisto! Mas quero ir um pouco além dessa imagem literária, destacando a característica aparentemente paradoxal que muitos docentes possuem de conjugar o infinito dentro do finito, e compartilhar outro relato feito em uma de nossas rodas de conversa on-line. Uma docente do Sul do Brasil, contou parte do trabalho com alunos de sua classe que vieram do Haiti e da Venezuela, e que tinham dificuldades para escrever em língua portuguesa, ainda que falassem outros idiomas. Depois de diversas tentativas que não foram exitosas, a professora sugeriu aos alunos que escrevessem em suas línguas maternas, falassem de seus países de origem e explicassem os sentidos do que produziram para seus colegas de classe. A docente observou que todos os alunos tiveram uma experiência plural, multicultural. Como linguista, esse relato me tocou profundamente pois a possibilidade de explorar línguas e culturas diferentes nas atividades de escrita com alunos do 5º- ano me pareceu realmente abrir novas janelas de compreensão não só de idiomas como também de realidades, de outros lugares que esses alunos compartilharam com os colegas!
Participar desta edição do concurso acrescentou à minha prática profissional esse sentido de “experiência” como gesto de desautomatização do olhar que requer tempo para se refletir e muitas vezes refazer caminhos. Ler relatos de prática docente, escutar sobre a vivência profissional de colegas, me fez (re)aprender sobre a importância desse gênero narrativo como elemento que atua na formação docente. Narrar experiências no contexto da Olimpíada é uma forma de documentar, de testemunhar, de fazer história. E, no contexto escolar, os relatos escritos e oralizados valorizam a produção resultante da parceria professores-estudantes. Para mim, o que ficou para além dessa jornada formadora foi o desejo de voltar a trabalhar com textos como fontes documentais, pois meu olhar sobre relatos, sobre narrativas em primeira pessoa, adquiriu um novo sentido: falar sobre nossa vivência é um ato político também. Que venham novas edições da Olimpíada de Língua Portuguesa nas quais podemos continuar aprendendo a conjugar os infinitos e os finitos do fazer docente.
Lilian Borba participou do Encontro de Semifinalistas da 7ª- edição da Olimpíada como formadora de professores(as) que trabalharam o gênero Poema; também realizou avaliação de relatos de prática dos cinco gêneros que integram o concurso. Lilian é graduada em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com doutorado em Linguística e estágios de pós-doutorado pela Universidades Estadual de Campinas (Unicamp). Tem experiência em projetos relacionados à formação continuada de professores de Língua Portuguesa e à elaboração de material didático. Publicou artigos sobre os africanos e a formação do português brasileiro. É professora de Gramática e Sentido no cursinho popular “Pré-vestibular Lélia Gonzalez”, em Campinas (SP).
Notas de rodapé
1. Referência Literária: Erico Verissimo. Caminhos cruzados [1935]. São Paulo: Companhia de Bolso, 2016, p. 28.
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