"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Escuta do texto ou leitura?
Escuta do texto ou leitura?
texto - Élie Bajard; ilustração - Criss de Paulo
01 de fevereiro de 2010
Mergulhar é preciso
As editoras vêm publicando hoje livros acompanhados de CD. Com a multiplicação das memórias eletrônicas, a narrativa escrita tem se tornado cada vez mais acessível, por se endereçar aos ouvidos de públicos diversificados, como cegos, analfabetos ou pessoas ocupadas com outras tarefas, como dirigindo um carro ou fazendo jogging. Assim, a história adota uma forma dupla. Nas páginas do livro, a narrativa é publicada para sua apreensão visual; no CD é “tornada pública” mediante a voz de um “locutor”, como se diz no rádio. Como nos dois casos a história tem autoria única e é constituída pelas mesmas palavras em uma ordem fixa, consideramos que estamos em presença de um texto único com duas representações: a primeira, impressa; a outra, sonora.
Na página do livro, o texto impresso, acompanhado ou não por ilustrações, se espalha sobre uma superfície, endereçando-se à visão de um leitor potencial. Constituído mediante palavras individualizadas por espaços brancos, o texto forma uma imagem percebida por uma olhada única ou por diversos “zooms” que destacam aqui um título, ali um grupo de palavras. Por não ter correspondência sonora, Escuta do texto ou leitura? o espaço – caráter mais frequente do teclado – faz escapar nossa escrita de um funcionamento puramente fonológico. A competência do leitor consiste em ser capaz de extrair da fileira de palavras individualizadas pelo espaço uma história até então desconhecida.
A gravação em CD ou em walkman mobiliza a audição dos que recebem a narrativa desenrolada no tempo de maneira sequencial: as palavras aparecem e desaparecem no momento da sua pronúncia. Não individualizadas como no texto impresso, elas são embutidas em blocos dentro de uma música chamada prosódia1. Separados por silêncios, esses blocos compõem o texto sonoro. A compreensão dessa língua sonora supõe que o ouvinte, através de operações mentais específicas, saiba tirar significado daqueles blocos sonoros.
No plano linguístico existe uma diferença notável entre a recepção do texto impresso e a do texto sonoro. Para ser compreendido, o primeiro exige a longa aprendizagem da alfabetização, enquanto o segundo é entendido mesmo pelo analfabeto, se a língua do texto corresponde à sua cultura. De fato, nossa capacidade de entender um texto sonoro é herança de nosso domínio da língua oral, pois língua falada e texto sonoro recorrem à mesma matéria acústica constituída de unidades sonoras estruturadas pela prosódia.
Assim, o Evangelho proferido pelo padre é compreendido pelos cristãos analfabetos; o Alcorão recitado no minarete é entendido pelos fiéis desprovidos do livro; o poema dito por Manguel, jovem pesquisador, é escutado por Borges, renomado escritor, já cego. Da mesma maneira, a história contada pela mãe na beirada da cama encanta a criança ainda não escolarizada.
Nessas situações os ouvintes se beneficiam da mediação da voz alheia para ter acesso à história do livro – como dizem as crianças, para distingui-la da história da boca, improvisada pelo contador – enquanto não podem entender o texto gráfico. Assim, as duas formas do texto – sonora e impressa – requerem um conjunto distinto de operações mentais para serem compreendidas. É desse modo que, hoje, a criança entra na cultura da língua escrita pela escuta e manuseio do livro antes de ser alfabetizada, enquanto no passado o mundo da escrita era acessado apenas através da cartilha. As condições sociais da alfabetização mudaram; a abordagem das correspondências entre sons e letras não constitui mais o rito de iniciação no mundo letrado. Hoje, a criança chega ao momento da alfabetização com uma experiência na língua escrita ignorada ontem. Ela sabe que a narrativa que passa pela boca do mediador provém do livro, que as palavras e sua ordem são imutáveis, que a língua – léxico e sintaxe – é requintada, e, para ser entendido, o texto impresso exige uma complexa aprendizagem. Assim, não há mais idade mínima para que a criança usufrua a literatura.
No entanto, a escuta do texto pode ser proporcionada por duas situações distintas. A chamada do almuadem2 pode ser proferida ao vivo, ou, como ocorre frequentemente em nossos dias, provir de uma gravação. Nos dois casos o texto é perene; não é possível trocar as palavras do texto sagrado.
Essa fixidez é imposta por duas circunstâncias: pela gravação e pelo texto mesmo. Quando gravado, o texto é repetido a cada emissão com a mesma “música”; não existe nenhuma variação – nem nas palavras, nem na prosódia. No texto proferido ao vivo, ao contrário, não existe repetição; se as palavras e sua ordem permanecem fixas, cada transmissão do texto adota uma prosódia nova, vinculada à singularidade da situação.
A gravação possui uma eficácia específica, na medida em que cada ouvinte pode, a partir de uma memória eletrônica, ter acesso a textos sem requerer a disponibilidade dos olhos, nem a presença de alguém. A criança que não sabe ler ou o adulto impossibilitado de ler por alguma razão têm sempre a possibilidade de recorrer à gravação para usufruir o prazer do texto. Quando realizada com cuidado, por um ator, por exemplo, essa gravação pode convidar professores e alunos a apropriarem- se da “voz alta” ao vivo para se comunicarem entre si.
Quando se compara o texto ao vivo com o texto gravado, é necessário levar em conta critérios suplementares. Além da matéria linguística – com a prosódia variável ou repetida –, mudam as condições relacionais. Enquanto a escuta do texto gravado não deixa de ser um encontro frustrado – o “locutor” grava sua voz sem auditores; os ouvintes a escutam na ausência dele –, a emissão ao vivo instaura um encontro entre um mediador presente e seus auditores, em um “aqui” e um “agora” compartilhados pelos participantes. Entre eles nascem inter-relações que transitam, sem dúvida, pelas palavras do texto, mas também por gestos e olhares, isto é, por linguagens não verbais. Mesmo o espaço real que acolhe locutor e ouvintes pode se transformar em lugares de ficção, floresta ou castelo. As palavras ditas remetem não apenas ao tempo fictício da história, mas ao momento atual vivido pelos protagonistas. As palavras pertencem certamente ao personagem da história, mas também à voz do “locutor” que as enuncia. A menina pode até escutar com receio as palavras “Eu vou te comer” pronunciadas não somente pelo lobo da narrativa, mas – magia da representação – oriundas também da voz masculina do mediador, acompanhada por seu olhar fixo. A situação ao vivo é enriquecida pela qualidade das interações que acabam pilotando o fluxo da voz endereçada aos ouvintes, enquanto a gravação mantém-se fixa, quaisquer que sejam as condições da recepção. É essa adaptação da voz à presença dos ouvintes que torna singular cada escuta do texto ao vivo. O mesmo texto dito por um, dois ou vários alunos se expressa em novos gestos, novos olhares, nova voz; recebe, a cada vez, nova vida.
Tamanha efervescência na sala de aula supõe um “locutor” com conhecimento pleno do texto. De fato, sem conhecer a narrativa por completo, como atribuir-lhe uma tonalidade triste, alegre ou apavorante? Como introduzir silêncio para criar suspense, se o final é ignorado? Mais ainda: quando o mediador fez questão de tomar conhecimento do texto com antecedência, seus olhos, menos presos ao livro, estabelecem, durante a emissão vocal, idas e voltas ágeis entre a página – da qual são extraídos fragmentos – e o público, com o qual mantém a comunicação.
Nessa prática, a “voz alta” tem por finalidade não a descoberta do significado do texto, mas sua comunicação com os ouvintes. Desse modo, negando o texto gaguejado, a sala de aula flerta com práticas culturais: sarau, jogral, recitação poética ou cena de teatro. Se a escuta do texto faz parte dos recursos do professor, ela deve ser escolhida cuidadosamente em função dos efeitos suscetíveis de serem contemplados. Assim, a escuta do texto não é somente um paliativo para analfabetos; ela é uma prática cultural plena, até mesmo apreciada pelos amadores de teatro.
Seu exercício na sala de aula é plenamente justificado pelos frutos que produz: prazer da escuta, conhecimento da literatura, enriquecimento da língua.
No entanto, escutar texto não é ler. Se o professor visa tornar o aluno capaz de “tomar conhecimento de um texto gráfico desconhecido”, situação vivida pelo assinante de jornal que descobre as notícias do dia, ou pelo candidato ao vestibular diante de um texto distribuído no início da prova, a escuta do texto não é a ferramenta pedagógica adequada, pois o assinante de jornal e o vestibulando necessitam compreender o texto sem a voz de nenhum locutor. Não podem escapar às operações mentais que possibilitam transformar o texto até então desconhecido em texto conhecido.
Se a escuta oferece uma alternativa para as pessoas que não sabem, não podem, não querem ler, o professor que pretende desafiar os alunos à leitura não pode queimar seu próprio desafio mediante uma emissão sonora que, por si mesma, anula a necessidade de ler. Cabe ao professor, então, se perguntar: será que meu objetivo é apenas propiciar a compreensão do texto com o menor custo cognitivo possível? Será que – ao fazer ressoar a musicalidade do texto sonoro – quero instaurar uma comunicação real mediante um texto ficcional? Ou será que pretendo propiciar a conquistadas estratégias de descoberta do significado a partir da grafia?
A escuta do texto contempla de fato os dois primeiros objetivos, mas impossibilita a realização do terceiro. Se o professor deve organizar a escuta de textos para que seus alunos se beneficiem das vantagens literárias e linguísticas que ela propicia, é imprescindível também que exija deles, em outros momentos, operações mentais de leitura. Se o professor tiver reconhecido essa necessidade, poderá atribuir à escuta funções distintas da mera fuga das situações de leitura.
1. Parte da gramática tradicional que se dedica às características da emissão dos sons da fala, como o acento e a entonação.
Élie Bajard, doutor em lingüística, é formador de professor na área da alfabetização. Trabalhou em vários países (Argélia, França, Marrocos, Vietnã). No Brasil foi o idealizador (1990) do Pró-Leitura, projeto de cooperação franco-brasileiro lançado pelo MEC para formação de professores alfabetizadores. Atuou na pós-graduação da Universidade de São Paulo. Trabalha hoje com diversas ONGs dedicadas à educação.
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