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REVELAÇÕES DA PANDEMIA: uma escola a ser inventada

REVELAÇÕES DA PANDEMIA: uma escola a ser inventada

texto - Iracema Santos do Nascimento; ilustração - Valentina Fraiz

01 de novembro de 2022

Sonhar um sonho tão bonito

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Fui ao seu Manoel levar umas latas para vender. Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender. Deu 13 cruzeiros. Fiquei pensando que precisava comprar pão, sabão e leite para a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não dava! Cheguei em casa, aliás no meu barraco, nervosa e exausta. Pensei na vida atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta. A Vera não tem sapatos. E ela não gosta de andar descalça.

O trecho em destaque foi escrito por Carolina Maria de Jesus em 16 de julho de 1955. Referindo-se ao mesmo período em que escreveu Carolina, outro intelectual negro, Abdias Nascimento, usou dados do Censo Populacional de 1950 para tratar das disparidades socioeconômicas entre a população branca e negra do país. Àquela época, as(os) brancas(os) representavam 61,6% da população e as(os) negras(os), 37,6%. No entanto, as(os) brancas(os) eram 90,2% no ensino elementar, 96,3% no secundário e 97,8% no superior, diante de 6,1%, 1,1% e 0,6% de negras(os), respectivamente. Apesar das melhorias nas condições de vida do povo negro no Brasil, conquistadas por meio de lutas, em todas as áreas ainda recaem sobre essa população os sintomas do que se denomina de racismo estrutural. Por exemplo, as taxas de frequência líquida na escola mostram graves desigualdades entre os grupos branco e negro da população estudantil, conforme mostra o gráfico 1.

O conceito de racismo estrutural se sustenta a partir de duas compreensões. A primeira é a de que as relações intersubjetivas, ou seja, as relações entre sujeitos se dão primordialmente nas “relações materiais concretas construídas na produção social”, como explica Dennis de Oliveira. A segunda é a de estrutura social como manutenção de padrões amplamente difundidos entre relações sociais. Assim, pode-se entender racismo estrutural como um padrão de intersubjetividade sustentado na tipologia de classificação racial do projeto colonial moderno europeu. Classificar e hierarquizar toda a população mundial segundo critérios raciais em que a raça branca europeia seria a superior foi artimanha fundamental para justificar as invasões de territórios e a escravização de povos originários – processos que permitiram a acumulação inicial do sistema capitalista. Desse modo, o conceito de racismo estrutural abrange aspectos sociais, econômicos, históricos e políticos que, entrelaçados, estabelecem as condições para que grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática, segundo Silvio Almeida.

A desigualdade entre negras(os) e brancas(os) na frequência à escola na série, ano ou etapa correspondente à faixa etária ideal vai crescendo significativamente conforme aumenta a idade da população estudantil, passando de 0,7 pontos de desvantagem para as(os) negras(os) nos anos iniciais do ensino fundamental para 6 pontos nos anos finais e quase 12 pontos no ensino médio. Supõe-se que, junto com fatores extraescolares, alguma coisa que acontece dentro da escola contribui para a interrupção, a descontinuidade e o atraso da trajetória escolar desses sujeitos. Tais desvantagens nada têm a ver com incapacidade, vontade ou falta de “mérito” das pessoas negras. É muito difícil se interessar pelos conteúdos escolares, aprender e ter um bom desempenho quando as condições de vida são todas desfavoráveis. Se na escola essas(es) estudantes se deparam com preconceito, discriminação, falta de valorização das culturas negras e falta de acolhimento, o ciclo do insucesso se completa.

Recomposição de vínculos e relações

Intensificação da defasagem e dificuldades de aprendizagem, indisciplina, desinteresse pela escola, crescimento acentuado do número de faltas, de casos de agressões físicas e verbais e outras violências, sofrimento psíquico, distúrbios psicológicos – tudo isso vem sendo relatado por profissionais da educação de escolas públicas e privadas de todas as partes do Brasil no período de retorno presencial após a fase mais crítica da pandemia de covid-19. Observa-se também algo como uma interrupção no desenvolvimento emocional. Quem está matriculado no 6º ano em 2022 expressa comportamento e maturidade emocional correspondente à faixa etária do 4º ano.

A defasagem já era esperada, uma vez que, de modo geral, sobretudo nas redes públicas, o ensino emergencial remoto esteve longe de alcançar todas(os) as(os) estudantes e de ser suficiente para garantir os aprendizados. Foi rapidamente notável, por meio das avaliações diagnósticas, que parte das(os) estudantes estacionou nas habilidades de escrita de dois anos antes da pandemia.

As dificuldades de convivência, no entanto, não foram previstas e parecem ser apenas os efeitos mais visíveis de uma situação social extremamente complexa e delicada que não cabe à área educacional sozinha resolver, embora não haja dúvidas de que a escola precisa cumprir sua parte. Nota-se que esses problemas têm impactos distintos quando se considera os recortes de classe, raça e gênero.

“A onda de indisciplina é uma manifestação de expressões reprimidas, eles estão suplicando por algo, dizendo alguma coisa. Como estudar um conteúdo escolar se em casa há desemprego e necessidades básicas?”, reflete Carlos Roberto Medeiros Cardoso, diretor da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Caio Sérgio Pompeu Toledo, da Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo.

Com a pandemia, a carga de obrigações aumentou para todas as pessoas, crianças e adultas(os). Surgiram muitos casos de meninas cuidando de irmãs(os) mais novas(os), algo que sempre foi comum entre famílias de baixa renda. Episódios de automutilação se multiplicaram, principalmente entre meninas. Muitas enfrentaram as transformações físicas da passagem da infância para a adolescência sem terem com quem conversar e, uma grande parte delas, em condições precárias de moradia, sem privacidade e sem condições adequadas para a higiene pessoal.

“Ainda estamos tentando sobreviver à violência que chegou nas escolas com tudo. Estamos gastando tempo com a violência que eles sofreram, e que estão propagando no retorno, a violência nas redes sociais, a violência física, as famílias que estão mais agressivas, pais que querem agredir crianças que tiveram desavenças com seus filhos”, desabafa Caio Ferraro, assistente de direção da EMEF Prof. Enzo Antonio Silvestrin, do Jardim Pirituba, região noroeste de São Paulo.

A retomada do ensino presencial após o período mais crítico da pandemia se insere em uma complexa teia de desafios que vão muito além do aprendizado de conteúdos curriculares específicos.

Escuta atenta, diálogo sincero e currículo vivo

Na rede municipal de Várzea Grande (MT), cidade colada à capital Cuiabá, além de alunas(os) do 7º e 8º ano ainda com leitura silabada, sem condições de interpretação de texto, o professor de Língua Portuguesa Ataíde da Costa Júnior notou mais pobreza após a pandemia. Muitas crianças passaram a frequentar a escola em condições precárias, sem comer, sem higiene básica e sem material escolar. A situação é mais grave entre estudantes negras(os), em quem ele observa autoestima muito baixa. “As meninas dizem que são feias porque têm cabelo ‘ruim’”. Embora algumas escolas façam ações específicas no Dia da Consciência Negra, a Secretaria Municipal de Educação estimula que o trabalho de valorização da cultura negra seja realizado ao longo do ano, algo que se iniciou em 2022 e ainda será avaliado.

“Tendo por base o compromisso da escola de propiciar uma formação integral, balizada pelos direitos humanos e princípios democráticos, é preciso considerar a necessidade de desnaturalizar qualquer forma de violência nas sociedades contemporâneas, incluindo a violência simbólica de grupos sociais que impõem normas, valores e conhecimentos tidos como universais e que não estabelecem diálogo entre as diferentes culturas presentes na comunidade e na escola.”

BNCC (Base Nacional Comum Curricular), tópico introdutório aos anos finais do ensino fundamental.

Nas escolas estaduais Júlia Seffer e Cruzeiro do Sul, respectivamente em Ananindeua (PA), e no distrito de Icoaraci, região de Belém (PA), está difícil reconstruir a rotina escolar que se perdeu com a pandemia. O problema se agrava porque as duas unidades estão sendo reformadas e cada turma frequenta semanas alternadas. O professor de Língua Portuguesa e Literatura Felipe Hilan Guimarães Santos conta que a maioria de suas(seus) alunas(os) de 8º e 9º anos apresenta problemas de ortografia e outras dificuldades de escrita mesmo em textos curtos. “Isso mexe demais com a questão emocional, eles têm muita vergonha, pois já são adolescentes”, diz Ernanda Antunes de Araújo Silva, professora de Língua Portuguesa na escola Joaquim Horácio Ribeiro, na zona rural de São Raimundo Nonato (PI), onde enfrenta o mesmo tipo de situação.

Diante de todas as adversidades, Felipe tem desenvolvido projetos especiais, com bons resultados. No 1º semestre de 2022, as atividades desenvolvidas com o gênero textual conto com uma turma de 9º ano rendeu a publicação de um livro que teve a participação de 33 dos 35 alunas(os) da sala, com direito a lançamento e autógrafos. Cada estudante escreveu um miniconto e juntas(os) propuseram os títulos, ilustraram, participaram de toda a produção e fizeram as artes de divulgação nas mídias sociais.

Na EMEF Anna Silveira Pedreira, no Jardim Novo Santo Amaro, na zona sul paulistana, as professoras de Língua Portuguesa trabalham com autorias, temas, personagens e conteúdos que têm conexão com a vida das(os) estudantes. No 2º semestre de 2021, a professora Lidiane Pereira da Silva Lima notou que suas turmas de 9º ano estavam ansiosas, sem ânimo, sem ritmo, pareciam ter esquecido a dinâmica escolar. Diante disso, ela propôs que as(os) alunas(os) escrevessem cartas falando de temas ou situações que as(os) tivessem angustiando – uma estudante revelou que não se sentia uma menina; outro aluno pediu para falar sobre homossexualidade, pois seu pai não o aceitava. A professora decidiu ensinar os gêneros discursivos artigo de opinião e debate tendo como pano de fundo questões relacionadas a identidade de gênero e orientação sexual. Ela utilizou como exemplos gravações de debates eleitorais e convidou uma mulher trans para participar de uma das aulas como debatedora. O projeto mobilizou as turmas, que só então passaram a demonstrar interesse pelas aulas.

No 1º semestre desse ano, para ensinar o recurso estilístico da rima, a professora Ariana Oliveira da Costa deixou o livro didático de lado e mostrou à sua turma do 8º B uma edição do Jornal Joca (Jornal para jovens e crianças), que apresentava a vida e a obra da escritora Carolina Maria de Jesus. Logo a turma demonstrou interesse, pois além da obra de Carolina tratar de temas muito atuais e presentes no cotidiano daquele território, muitas(os) identificaram a escritora com suas avós. Foi criado o projeto “Rima Carolina”. Elas(es) fizeram pesquisas no celular e produziram juntas(os) um cordel sobre a biografia da escritora. Como tarefa individual, cada estudante tinha de criar um poema visual sobre seu próprio nome, o que engajou até mesmo as(os) alunas(os) mais desinteressadas(os).

Entretanto, algumas famílias consideram que certos temas não devem ser tratados pela escola. No 1º semestre de 2022, a professora Angela Maria Patrocínio trabalhou com o 6º ano o gênero textual diário, utilizando textos como os de Carolina Maria de Jesus e Anne Frank, presentes no livro didático. Os textos e as atividades desenvolvidas geraram bastante envolvimento da turma, que, por iniciativa própria, fez associações com a Guerra da Ucrânia. A professora recebeu um bilhete da mãe de um aluno argumentando que, diante de tantos problemas, na escola o aprendizado deveria ser voltado ao sucesso. Após diálogos entre mãe, docente e a equipe da gestão escolar, a família retirou o garoto daquela unidade.

Em casos como esses, é fundamental o papel da equipe gestora no diálogo com as famílias, em aproximá-las da proposta pedagógica da escola e, a propósito, no cuidado para que a menção ao tratamento de temas da realidade conste no documento do projeto pedagógico, em consonância com a legislação nacional, como o trecho destacado.

Em suma…

As experiências relatadas mostram que, em termos de ensino de língua portuguesa, no processo de retorno presencial às escolas, as(os) professoras( es) utilizam estratégias com pelo menos duas características. A primeira é associar um tópico específico do currículo a temáticas que façam parte da vida, da realidade ou dos interesses das(os) alunas(os). A segunda é propor atividades que envolvam produção de textos que possuam teor comunicativo real, possibilitando às(aos) estudantes a experiência de se constituírem em interlocutoras(es) autênticas(os).

Nada disso é novo. Desde pelo menos o começo do século XX grandes educadoras(es) propunham a renovação dos currículos pela incorporação de temáticas “vivas” para as(os) estudantes. O educador inglês Alfred North Whitehead, por exemplo, postulava que aproximar o conhecimento da(o) aluna(o), associando o passado ao presente ou o distante ao local, constituía o problema central do ato educativo, pois só assim seria possível conservar vivo o conhecimento. “É preciso passar tudo pela experiência da vida”, dizia o educador francês Célestin Freinet.

Isso não significa que se deva desprezar o passado, o conhecimento acumulado pela humanidade. Ao contrário, deve-se buscar mostrar às(aos) estudantes as conexões entre o conhecimento e a cultura até então produzidos pela humanidade com sua vida presente, capacitando-as(os) para que os interroguem, os ressignifiquem e criem novas possibilidades de conhecer e fazer o mundo Paulo Freire foi incansável em defender que era necessário partir do conhecimento da(o) aluna( o), o que não significava ficar parado nele, mas partir dele para ampliá-lo. Por sua vez, a produção de textos comunicativos (livro, debate, poema visual, para ficar nos exemplos aqui relatados) obedece à compreensão de texto como produto de uma atividade discursiva autêntica, em que, nas palavras do linguista João Wanderley Geraldi, “alguém diz algo a alguém”.

Assim, se a pandemia escancarou as históricas desigualdades da sociedade brasileira e se forçou o professorado a utilizar recursos digitais, por outro lado mostrou a importância de se retomar princípios educativos que talvez estivessem em desuso. Também veio reforçar a necessidade de se superar a tendência de culpabilizar estudantes e suas famílias pelo fracasso escolar, a qual foi denunciada e desautorizada no Brasil pela crucial pesquisa de Maria Helena Souza Patto.

Ao mesmo tempo, as escolas necessitam de apoio do sistema educacional e das universidades para que possam construir soluções (ainda que provisórias e em constante avaliação) para problemas tão complexos. Tudo isso denuncia um modelo rígido e fragmentado de educação e de gestão educacional que não cabe mais. “A nossa escola a gente inventa”, diria o poeta!  

 

Sobre a autora

Iracema Santos do Nascimento é professora doutora na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Leciona na graduação e na pós-graduação. Seu projeto docente de ensino, pesquisa e extensão alia Gestão Democrática da Educação e Diferenças-Diversidade, com foco nas interseccionalidades de raça, classe e gênero, tendo a leitura literária como um dos eixos de atuação.


Referências

PARA PESQUISAR

 

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020.

FREINET, Célestin. A educação do trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1998. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

GERALDI, Joao Wanderley. Portos de passagem. 5a. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica. n. 41, 2019. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf>. Acesso em: 12 set. 2022.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10.ed. São Paulo: Ática, 2014.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016.

NASCIMENTO, Iracema Santos do; SANTOS, Patricia Cerqueira dos. A normalidade da desigualdade social e da exclusão educacional no Brasil. In: Caderno de Administração, v. 28, jun. 2020. Disponível em: <https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/CadAdm/article/view/53834>. Acesso em: 12 set. 2022.

OLIVEIRA, Dennis de. Racismo estrutural – uma perspectiva histórico-crítica. Sao Paulo, Editora Dandara, 2021.

PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Intermeios, 2015.

WHITEHEAD, Alfred North. Os fins da educação e outros ensaios. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1969.

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