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Entrevista: Jeferson Tenório
Entrevista: Jeferson Tenório
Da literatura em sala de aula à sala de aula na literatura
Da literatura em sala de aula à sala de aula na literatura
texto - Camila Prado; ilustração - Valentina Fraiz
01 de novembro de 2022
Sonhar um sonho tão bonito
Nasceu cedo em Jeferson Tenório a vontade de escrever por necessidade, mas demorou para que chegasse à literatura guiado pelo desejo. Muitas vezes, esteve perto de desistir de estudar. No entanto, insistiu: seguiu a intuição da mãe, a trilha dos Racionais, a paixão do professor Jorge Fróes pelos livros, as linhas de Rubem Fonseca, entre outros caminhos abertos pela consciência e pela sorte. Sorte a nossa também em compartilhar aqui a conversa sobre o percurso, os vinte anos em sala de aula e a obra desse contador de histórias, que escapou por pouco da carreira em uma pizzaria para alargar nossos horizontes com sua literatura. Seu terceiro romance, O avesso da pele, recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 2021.
Em Na Ponta do Lápis, costumamos sempre revisitar um pouquinho os primeiros passos de leitura e escrita da(o) entrevistada(o). Pode nos contar sobre esse percurso?
Eu demorei bastante tempo para gostar de ler, mas a escrita estava bastante presente. Ela chega primeiro que a leitura. Lembro de começar a escrever, lá pelos meus 10, 11 anos, em diários que têm a ver com as coisas que eu passava naquele momento. Questões familiares, da escola, do judô – relatava sobre lutas, campeonatos, quando passava de faixa. Eu não tinha aquela preocupação em criar histórias. Era só a necessidade de contar alguma coisa minha. A escrita veio mais como uma espécie de confissão. Começo a criar histórias mesmo a partir dos meus 18 anos, mas ainda hoje conservo essa rotina de escrever diários; tenho pelo menos uns 35 cadernos.
O que os livros significavam para você na infância?
Na infância, eram um objeto qualquer da casa, não era um hábito que a gente lesse os livros. Mas lembro de que gostava da imagem do leitor: uma pessoa deitada no sofá lendo um livro. Acho que isso tinha a ver com as muitas mudanças na minha infância. A gente nunca tinha uma casa que era nossa, estava sempre na dos outros. Essa visão de você ter um lugar confortável, pegando um livro, era uma coisa que me chamava atenção.
Quando você se torna um leitor literário?
Na escola, começo a ter algum contato com a literatura, principalmente com aquela série Vaga-lume. Era o que os professores pediam. Levava para casa, mas lia uma ou outra página. Depois vieram as leituras obrigatórias, ainda no Ensino Médio, geralmente do Romantismo, José de Alencar, que eu também não chegava a ler. Não tinha interesse nesses livros. Eu só chego na literatura por desejo aos vinte e quatro anos, num cursinho para vestibular. Aí sim vou ler o meu primeiro livro inteiro. Um livro de contos, Feliz Ano Novo, do Rubem Fonseca. A partir desse livro que vou me tornar um leitor literário. Esse professor do cursinho queria nos mostrar que a literatura era algo muito diferente daquilo que a gente tinha visto na escola. E ele foi muito certeiro, porque muita gente começou a se interessar por literatura a partir daí. Tê-lo encontrado foi a grande virada da minha vida. É um grande amigo hoje, Jorge Fróes. Um grande poeta. Mas ele se acha mais professor do que escritor.
LESSE OS LIVROS. MAS LEMBRO
DE QUE GOSTAVA DA IMAGEM
DO LEITOR: UMA PESSOA DEITADA
NO SOFÁ LENDO UM LIVRO”
A entrada da poesia em sua vida também tem a ver com música, especialmente o rap, não é? Conte um pouco sobre isso.
Na verdade, eu chego no hip-hop por outra via. Eu tinha uns 15 anos e um amigo mais ligado nas músicas um dia me perguntou se eu já tinha ouvido Legião Urbana. Começamos a escutar Tempo Perdido e essas músicas clássicas do Legião. Eram de conscientização, de protesto. Para chegar no hip-hop, foi muito fácil. Foi aí que um amigo me apresentou os Racionais. Comecei a escutar. Não sabia na época que também se tratava de poesia. De tanto escutar, cheguei a escrever algumas letras de rap. Foi assim que se deu esse letramento estético que veio pela música.
A evasão escolar é uma grande questão no Brasil. O que o ajudou a persistir diante das dificuldades que enfrentou?
Foi um misto de sorte e de pessoas que apareceram no meu caminho, principalmente professores. E acho que a intuição da minha mãe, que sempre batia nessa tecla, de que a gente tinha que estudar, de que o caminho era esse. Estive muito perto de desistir. Muitas vezes. Quando terminei o Ensino Médio, disse para minha mãe que não queria fazer faculdade. Na época eu trabalhava como pizzaiolo. A ideia era eu me tornar gerente. Esse era o meu horizonte. Isso diz muito da população negra. Se você for perguntar para uma família negra, pobre, periférica, provavelmente ela vai ter uma perspectiva de futuro de uma dois anos. Ela não vislumbra algo daqui a dez, quinze anos porque as demandas do dia a dia se impõem.
Em 2022 a Lei de Cotas (nº 12.711/2012) completa 10 anos e você foi o primeiro cotista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS). Pode nos contar sobre isso?
Havia poucos alunos negros. Parecia que havia um movimento quase de vergonha de buscar a implantação das cotas, mas, mesmo assim, a gente conseguiu se mobilizar, junto com alunos brancos, com o diretório acadêmico. Lembro de ter ocupado a reitoria por dois dias em 2007. Em 2008, ela foi implantada na UFRGS. Eu já era aluno no bacharelado em Letras, mas precisava fazer o vestibular de novo para a Licenciatura e poder dar aula de Língua Portuguesa. O processo de implantação foi bastante difícil. Havia um discurso muito preconceituoso, racista, dos próprios professores universitários e dos colegas, de que a universidade iria decair, o curso perderia pontos, os profissionais sairiam ruins e assim por diante. E aí eu entro e me torno esse primeiro cotista negro a me formar em 2010.
Na faculdade você teve contato com autoras(os) negras(os) contemporâneas(os)? Como você enxerga essa literatura dentro do mercado editorial atual?
Na minha graduação não tive muito contato com autores negros. Não conhecia Carolina Maria de Jesus, não sabia que Machado de Assis era negro, tinha lido pouca coisa do Lima Barreto. Tive uma formação bastante eurocêntrica, branca, colonial. No final do mestrado, em 2013, começa uma discussão mais forte sobre a produção negra no Brasil. Essa demanda acadêmica por novas bibliografias, por uma revisão bibliográfica e epistemológica, também se dá pela entrada de pessoas negras a partir das cotas raciais. Há uma mudança de mentalidade. As grandes editoras, que também têm interesse de mercado, mas não só, entendem que determinado tipo de narrativa foi esgotado e que se busca outras formas, outros pontos de vista de contar a história do Brasil pela Literatura. E o avanço do fascismo no Brasil faz com que haja uma reação. E essa reação vê em obras como a minha, a do Itamar [Vieira Júnior], da Conceição[Evaristo], também formas de dizer não a esse fascismo.
POR NOVAS BIBLIOGRAFIAS,
POR UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
E EPISTEMOLÓGICA, TAMBÉM SE DÁ
PELA ENTRADA DE PESSOAS NEGRAS
A PARTIR DAS COTAS RACIAIS.”
O que despertou em você a vontade de ser professor?
Eu tinha impressão que era a única coisa que eu saberia fazer. Não me sentia à vontade numa lanchonete, sendo office boy, trabalhando como telemarketing. A minha carteira de trabalho é um repertório de carimbos. Pagavam mal, eu era explorado, e na época eu não tinha essa consciência. Quando vi a possibilidade de ser professor, muito me espelhando no Jorge Fróes, na paixão dele ao falar de literatura, pensei “Puxa, ele está ganhando para falar de livros com as pessoas. É isso que quero fazer”.
Como você, que ficou 20 anos em sala de aula, despertava o interesse das(os) suas(seus) alunas(os)?
Eu tive sorte de dar aula enquanto estava no 5º ou 6º semestre de Letras, estudando teoria pedagógica. Eu tentava colocar em prática e via que tinham algumas incongruências coma realidade em sala de aula, o que me obrigou a criar algumas estratégias. Acabei me tornando um contador de histórias. Percebi muito rapidamente que contar histórias em sala de aula era uma questão de sobrevivência para você conseguir ser escutado pelos alunos. Eu fazia umas maluquices...Isso porque eu sou uma pessoa bastante tímida, mas na aula vestia um personagem. Dizia “Fechem as cortinas, apaguem a luz”. E começava contar uma história de terror, do Gato Preto. Contava como se fosse eu vivendo aquela história do Edgar Allan Poe. Porque a sala de aula é um ensaio para a vida, mas ela também é a vida. Fui desenvolvendo meu método, trabalhava muito com teatro, como corpo. Entendi que tanto a leitura como a escrita passavam pelo corpo, principalmente com crianças. Levava-as para o pátio, para descrever o ambiente, ensinava a jogar xadrez, fazia uma roda e líamos o livro todo juntos, em voz alta. Meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) foi sobre Contação de Histórias em Sala de Aula. Inclusive, numa das escolas, fui questionado se aquele era um método de aprendizado. Na época, não se entendia o ato de contar histórias como conteúdo.
Como foi o início de sua produção literária? Ser professor o inspirou a ser escritor?
Aos 18 anos, escrevi uma novela de umas 200 páginas. Não tinha computador nem máquina de escrever, escrevi tudo à mão. Foi meu primeiro projeto de escrita longa. Quando comecei a ler literatura, Clarice Lispector ,Guimarães Rosa, não consegui mais escrever. Mas depois, quando entro em sala de aula nas periferias, em escolas com uma estrutura muito precária, ali vou ter uma série de relatos, de alunos, de pais, de professores, e esse ambiente propiciou que eu começasse a entender que aquele universo também servia para fazer literatura.
Quem já viveu na escola públicas e reconhece muito nos seus personagens.
O Beijo na parede foi meu primeiro romance e foi adotado nas escolas um ou dois anos depois. Uma coisa muito curiosa porque quando eu estava construindo, não achava que estava escrevendo para adolescentes. Até porque os temas que estão ali são muito pesados. Causou-me uma surpresa o livro ser adotado com tanta rapidez e ser lido. Acho que se eu tivesse pensado em escrever para adolescente se crianças não teria feito o livro desse jeito. Foi bom eu ter pensado que era para adultos.
O beijo na parede ganhou as salas de aula e O avesso da pele ganhou o mundo. Brilhando no meio do caminho, tem Estela sem Deus. Há algo que alinhava essas três obras?
O que eu consigo ver, se eu fosse ligar os três, acho que tem a ver com a linguagem que escolhi. É uma linguagem fluente, sem barreiras linguísticas. Mesmo o Avesso tendo uma estrutura mais complexa, ainda assim ele é um livro fluente. Não tenho ali grandes inversões sintáticas, nem um vocabulário erudito. Isso é uma escolha. Eu sempre acreditei que a literatura tem o papel de formar leitores e não oferecer dificuldade linguística é um modo de você formar leitores. De certo modo, eu escrevi livros que eu queria ter lido na minha infância e na minha adolescência. Eu não encontrei esses livros que eu queria. Então foi um modo de poder me vingar da vida por não ter sido apresentado. Esses livros existiam, mas não me foram apresentados...
Apesar da linguagem muito clara, O avesso da pele traz uma sofisticação na construção do narrador.
Sim. A utilização do “você” é fruto da minha pesquisa de tipos de narradores, tanto do mestrado quanto do doutorado. Tendo consciência da estrutura mais tradicional, achei que era o momento de transgredir, quebrando um pouco com algumas regras da teoria literária. E aí me senti seguro para propor um narrador que transita entre várias vozes narrativas. E acho que era o único modo também de contar essa história. Talvez o maior desafio do escritor seja esse– encontrar uma única voz possível para contar uma determinada história.
“De volta a São Petersburgo” é um capítulo de O avesso da pele. Conte um pouco sobre essa referência e sua relação com a literatura.
Esse capítulo é bastante significativo porque é o momento em que Henrique, o professor, vai levar Crime e Castigo para a sala de aula, vai tentar de algum modo mobilizar aquela turma. Colocar esse título [no capítulo]é um modo de dizer que eles escolheram a literatura, escolheram o mundo dos livros. O voltar a São Petersburgo é voltar a Dostoievsky, é voltar ao Crime e Castigo. O avesso da pele pode ser um livro que fala sobre racismo, mas, para mim, ele é uma declaração de amor aos livros, à literatura, ao conhecimento, à arte. Eu quis trazer essas referências literárias que estão muito presentes no Avesso. Dostoievsky e outros textos que vão aparecendo ali também. É uma homenagem também a esses autores e artistas que me deram tanta coisa. E eu não posso dizer isso para eles. Eles já se foram. Meu modo de retribuir tudo o que eles me deram é transformando-os em literatura também.
Sobre a autora
Camila Prado é jornalista desde 2001 e atua como editora, repórter e redatora em projetos ligados à educação, cultura, memória e meio ambiente. É colaboradora da revista Na Ponta do Lápis desde a edição 28, bem como de outros materiais do programa Escrevendo o Futuro.
Sobre o entrevistado
Jeferson Tenório é doutor em teoria literária pela PUC-RS, escritor e autor dos livros O Beijo na Parede (Sulina), Estela sem Deus (Zouk) e O Avesso da Pele (Companhia das Letras), sendo este último vencedor do prêmio Jabuti. Atualmente é professor visitante da Brown University e colunista nos jornais digitais GZH e UOL Notícia.
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