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"A parasita azul" e um professor cassado

"A parasita azul" e um professor cassado

texto - Miltom Hatoum; ilustração - Criss de Paulo

11 de agosto de 2023

Todas as vozes escrevendo um novo futuro

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Miltom Hatoum

 

Para Oscar Pilagallo e Josélia Aguiar

Para vários dos escritores, as origens de suas narrativas estão na infância e juventude, cujo mundo é uma promessa de um futuro livro. A memória incerta e nebulosa do passado acende o fogo de uma ficção no tempo presente.   

Cada escritor elege seu paraíso. E a infância, um paraíso perdido para sempre, pode ser reinventada pela literatura e a arte. Mas há também vestígios do inferno no passado, e isso também interessa ao escritor. Traumas, decepções, desilusões e conflitos alimentam trançados de eventos, tramas sutis ou escabrosas, veladas ou escancaradas. Cenas e conversas que presenciamos – ou que foram narradas por amigos e parentes – permanecem na nossa memória com a força de algo verdadeiro, que nos toca e inquieta. A infância, com seus sonhos e pesadelos, é prato cheio para a psicanálise, mas também para a literatura. No entanto, para quem almeja ser um escritor, há algo mais: a leitura.

Alguns jovens tiveram a sorte de conviver com um bom professor de literatura; outros, que estudaram em escolas precárias, conheceram um leitor em sua casa: um desses leitores que nos oferecem um livro decisivo, capaz de mudar nossa vida. E há ainda casos do acaso: você entra numa biblioteca da província ou da metrópole e se depara com um livro desconhecido, que pede para ser lido. O acaso, que é um motivo tão recorrente na literatura, pode formar um leitor.   

Dois acasos foram decisivos na minha juventude: o primeiro me conduziu à obra de Machado de Assis; o segundo, a uma biblioteca vasta e sombria, escondida numa sala subterrânea.

Na tarde de um sábado de 1965, um homem alto e esquálido entrou no pátio de minha casa manauara e bateu palmas. Carregava uma maleta, e parecia prostrado pelo calor; quando olhei o rosto dele, pensei que chorava aos prantos, mas foi uma falsa impressão: os olhos estavam encharcados de suor. Abriu a maleta e mostrou à minha mãe as obras completas do Bruxo do Cosme Velho. Surpreso e aliviado, o homem foi embora com a mala vazia. Era um vendedor de enciclopédias e livros de literatura, um humilde mercador de palavras sob o sol abrasador da cidade equatorial. Ao acaso, escolhi um dos livros de capa azul-turquesa e dei de cara com um título enigmático e atraente: Histórias da meia-noite. Não menos misterioso e sedutor foi o primeiro conto que li do grande escritor: “A parasita azul”. Gostei do enredo, pois aos treze anos de idade eu não podia entender as filigranas do jogo social e simbólico, movido pela terrível ironia machadiana. Li a narrativa como um leitor ingênuo, percebendo apenas o movimento da trama na superfície do texto, sem captar outras mensagens e alusões simbólicas e históricas. Mas, para um jovem, até mesmo a leitura superficial é importante, porque revela traços do estilo, da forma com que o autor organiza a narrativa e constrói personagens. E, quando isso agrada, a leitura flui e o leitor se interessa por outros livros do autor.

“A parasita azul” narra um dos tantos triângulos amorosos machadianos, mas a aparição da flor azul e seca desfaz o triângulo e traz novos elementos ao enredo, como as jogadas politiqueiras e uma conjunção surpreendente de lugares e sociedades díspares: Paris e o interior de Goiás. Ou seja, a capital do mundo em contraste com um grotão da periferia desta América. A meu ver, é um dos primeiros contos que tratam dos disparates da sociedade brasileira, embora seja eivado de imaginação romântica e traços romanescos, como a paixão do protagonista Camilo por uma princesa moscovita e outras peripécias parisienses. Em algum momento o narrador se refere ao sonho do rival de Camilo como um “melodrama fantástico”, e isso, de algum modo, define o conto. Mas menciona também o “falar oblíquo e disfarçado”, e isso define a genialidade de Machado.

Depois de devorar as páginas das Histórias da meia-noite, a leitura de Coelho Neto e José Américo de Almeida foi um exercício tedioso, e, às vezes, uma flagelação da alma. Para um jovem, a leitura obrigatória de uma narrativa construída com uma linguagem extremamente rebuscada e cheia de adornos pode significar um rompimento radical com o prazer da leitura. E o prazer, que se irmana à curiosidade e ao conhecimento, é essencial para o leitor. Aliás, essencial para a vida.   

Digo isso porque o segundo acaso, que me conduziu a uma biblioteca, começou com um desprazer: uma punição infligida por um professor de português no ginásio amazonense Pedro II. O castigo consistia em ler e fichar trechos d’Os sertões, de Euclides da Cunha. Diante de um texto tão complexo, recorri a um leitor bem mais velho do que eu, a fim de que me ajudasse a decifrar uma obra encharcada de história, geografia e também de humanidade trágica: a guerra fratricida no sertão da Bahia. Fui atrás de uma explicação e me deparei com uma grande biblioteca numa sala escavada. No porão sombrio do sobrado antigo e malconservado, apenas uma escrivaninha era aclarada por uma luz forte. Com uma lanterna, o professor focava as estantes de madeira, mostrando clássicos de várias épocas, inclusive edições raras, adquiridas em sebos do centro do Rio. Na catacumba de papel, vi romances e livros de poesia que desconhecia, e toda a coleção de literatura publicada pela antiga Livraria do Globo, de Porto Alegre. Lembro que lhe perguntei por que não iluminava o porão.

“Não tenho dinheiro”, disse o professor. “Mal consigo comer e manter a casa.”

Depois soube que ele fora cassado e banido da vida pública pelos militares, e vivia num ostracismo de dar dó. Na verdade, vivia numa prisão domiciliar, cuidando da mãe cega e quase centenária, ganhando uns tostões com aulas particulares.

Eu e um colega ginasiano passamos tardes inteiras assistindo às lições sobre a obra de Euclides. Descobrimos outro Brasil, tão diferente do Amazonas, e ao mesmo tempo profundamente ligado à região onde nasci e cresci, pois já na década de 1870 milhares de nordestinos haviam migrado para a Amazônia. Lembro com nitidez a voz rouca sentenciar que Os sertões era um grande compêndio sobre a sociedade brasileira, mas não um romance. Uma tosse de desesperado cortava-lhe a fala e ecoava na biblioteca. Mesmo assim, não tirava da boca o cigarro aceso, que piscava como um vaga-lume numa catacumba. Às vezes ele intuía um chamado de sua mãe, subia às pressas e só retornava meia hora depois. Nunca vi essa mulher. E ele nunca me convidou a entrar na sala da casa, ignorando minha curiosidade insaciável. Cheguei a pensar que essa mãe muito idosa era uma invenção para mitigar uma vida tão solitária.

Voltei várias vezes ao subsolo daquele sobrado para ler Os sertões, e saía de lá com livros que o professor me emprestava e depois comentava com paixão. E, três décadas depois, voltei para lá como um viajante imaginário, pois esse professor foi uma das fontes de um personagem de romance.

Hoje sei que o conto de Machado e o encontro com o mestre da província foram obras do acaso. Mas o acaso e o imprevisível não são igualmente importantes para a escrita e para o destino de um escritor?

    

 

Texto publicado no livro de Milton Hatoum. Um solitário a espreita – Crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pp. 180-183.

 

   

Milton Hatoum é filho de imigrantes libaneses, nasceu em Manaus, em 1952, e mudou-se sozinho para Brasília aos 15 anos. Formado em arquitetura e urbanismo pela FAU-USP, consagrou-se como escritor com os livros Relato de um certo oriente (1989) e Dois irmãos (2000), nos quais revelou uma construção literária baseada em memórias familiares. Viveu na Espanha e na França antes de mudar-se definitivamente para São Paulo, em 1998. Em seu romance Cinzas do norte (2005), ganhador do prêmio Jabuti na categoria Livro do Ano, expõe sua visão íntima da geração que viveu sob a ditadura dos anos 1970. Com obras traduzidas em doze idiomas, está entre os autores brasileiros mais lidos no exterior.

 

   

Revista Na Ponta do Lápis
Ano IX
Número 23
dezembro de 2013

   

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