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Entrevista: Adélia Prado

Entrevista: Adélia Prado

“Você sente que algo ‘pede’ expressão. É o momento do trabalho concreto de escrever.”

“Você sente que algo ‘pede’ expressão. É o momento do trabalho concreto de escrever.”

Luiz Henrique Gurgel

20 de dezembro de 2010

Gente é para brilhar!

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“Você sente que algo ‘pede’ expressão.
É o momento do trabalho concreto de escrever.”

A “conversa” foi por e-mail. Depois de várias tentativas, Adélia Prado, quando soube tratar-se de uma Olimpíada de Língua Portuguesa voltada a professores e estudantes de escolas públicas, aceitou responder às nossas perguntas: “Esta entrevista me anima. Há muita gente boa preocupada em melhorar a qualidade da vida e do ensino de nossas crianças. Longa vida aos que levam a sério a tarefa de fazer do nosso país uma nação”. Mas o assunto principal foi mesmo o ofício de poeta e o ato de escrever: “Poesia é essa radiação que as coisas têm e que é percebida por meio da arte. Essa radiação é como se fosse o brilho da realidade”.

 

■ Poeta nasce poeta ou se constrói como poeta?

O poeta, como qualquer outro artista, nasce como nascem os cantores, já de posse do seu dom. O que se constrói nele é a vida, que segue o processo natural em toda pessoa, artista ou não, visando seu amadurecimento. Tal processo se reflete inevitavelmente na obra. Rigorosamente falando, uma oficina literária não “cria” um escritor, mas pode descobri-lo, como uma escola de música descobre um virtuoso.

A poesia não é uma descrição de alguma coisa, não é um comentário a respeito de nada. É uma expressão. Toda arte verdadeira só tem um objeto: a poesia. A obra de um artista, quando verdadeira, seja de que arte for, tem o poder de revelar a poesia contida no ser das coisas. Eu não dou conta de pegar o ser de uma rosa, de um rio, de uma passagem, de um rosto. Só quem consegue revelar esse ser das coisas é a arte, que nos mostra a beleza suprema delas.

Nesse sentido, a arte me abre para a realidade. A maravilha dela é isso. É uma epifania. Isso em qualquer tipo de arte, como o teatro, a música, o cinema, a dança, a escultura. A poesia é essa radiação que as coisas têm e que é percebida por meio da arte. Essa radiação é como se fosse o brilho da realidade.

■ Como nasceu sua vontade de escrever? É uma necessidade? Conseguiria viver sem escrever?

Ainda menina, descobri o poder e o prazer da palavra. Escrevo desde os catorze anos, quando fiz meu primeiro soneto. Tudo o que escrevi até Bagagem não tem nenhum valor literário. São coisas que têm importância, para mim, afetiva, de um bom tempo da minha vida. Agora, literatura, a entrega a um processo de escrita torrencial, eu comecei aos quarenta anos.

Eu é quem preciso do exercício de escrever. Vejo como um dever, uma fidelidade a Deus que me concede o dom. Qualquer pessoa, e infelizmente isso acontece muito, consegue viver fora de sua vocação, mas, com altíssimo custo para sua saúde e prejuízo para a comunidade humana, porque o exercício do dom é exigência desse mesmo dom.

■ Como funciona seu processo de escrita? Que tipo de sensação ou vontade vem primeiro no momento da construção de seus poemas?

Você sente que algo “pede” expressão. Então, é o momento do trabalho concreto de escrever, procurar como dizer aquilo que está pedindo expressão. Num primeiro momento, acredito na inspiração. É o estado e fruição poética que determinada coisa lhe provoca, com o desejo imediato de expressar aquilo. É uma necessidade fatal. O segundo, a escrita propriamente, considero momento de enorme prazer e alegria. É uma coisa fantástica escrever, descobrir sua própria voz. Quem escreve sabe disso.

■ Como foi o aparecimento do seu primeiro livro, Bagagem?

O livro apareceu em 1976. Eu comecei a escrevê-lo por volta de 1973. Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo, na felicidade da descoberta. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento. E os poemas praticamente irromperam, apareceram cargas e sobrecargas de poemas. Eu escrevia muito nesse período, e quando eu vi que o volume tinha uma unidade, que ele não era apenas uma coleção de poemas, pois tinha uma fala peculiar, dele próprio, entre outros títulos que me ocorreram, Bagagem era o que resumia, para mim, aquilo que não posso deixar ou esquecer em casa. A própria poesia.

■ Temas relacionados à mulher, à religiosidade, ao amor e ao desejo são predominantes em sua obra. Existem temas que são mais poéticos ou mais líricos que outros? Ou a poesia pode servir “a todas as fomes”?

A poesia não é assunto, não é enredo, não é tema. Poesia é forma, que se utiliza de tudo. Não há temas mais poéticos. O real é o grande tema. E nós temos o real no cotidiano, configurado no amor, na morte, nas virtudes e nas mais diversas paixões que nos habitam. Qualquer coisa é a casa da poesia. Ela alimenta, dá significação, sentido à vida. A poesia pousa onde lhe apraz. Tem o dom de espalhar humanidade.

■ Existe uma poesia “feminina” e outra “masculina”?

Poesia feminina é uma tristeza tão grande quanto poesia masculina. Como não tem assunto, a poesia também não tem gênero. É hermafrodita. A poesia é fraterna, solidária, chama tudo a um centro humano divino. É sempre comunhão.

■ O que dá mais trabalho, ficção ou poesia?

Os dois dão a mesma alegria. A ficção tem feitura mais trabalhosa. Se pudesse escolher, seria só poesia.

■ Quais são os autores decisivos para sua formação literária?

Dos autores do meu curso primário, cito alguns: Olavo Bilac, Cecília Meireles, Martins Fontes, Castro Alves têm minha perene gratidão. Adulta, conheci nossos grandes: Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e outros maravilhosos autores, incluindo muitos estrangeiros, foram e são importantes, porque me fazem ver o que é literatura, a diferença crucial entre versos bonitos e um poema verdadeiro.

■ Em que medida eles foram fundamentais?

Por meio das obras deles eu vi espelhada a minha humanidade. Eu falei: “Sou um igual”. Eu me vi reconhecida, me vi refletida, e eles confirmaram a minha humanidade. Gostam do que eu gosto. Minha felicidade foi imensa. Continuava a escrever, mas enfadara- me do meu próprio tom, haurido de fontes que não a minha. Até que um dia, após a morte de meu pai, começo a escrever incessantemente e percebo uma fala minha, diversa da dos autores que amava. É isso, é a minha fala. Isso me deu um descanso, me deu alegria.

■ Nossa publicação é voltada a professores de escolas públicas do Brasil. Conte-nos um pouco de sua longa experiência como professora. Sendo poeta e escritora, como lidava com o trabalho de leitura e escrita de seus alunos?

Não tem segredo. Fui professora antes de publicar meu primeiro livro. Se ofereço bons autores aos alunos e os deixo ler sem o castigo de “tirar a mensagem do autor”, descobrirão a maravilha do universo que um livro pode oferecer. A literatura trata da experiência humana. O leitor se apropria do texto porque o texto se torna dele. Se a escola parar de tratar a literatura como matéria de vestibular e incluí-la no feijão com arroz de sua atividade pedagógica, o resto acontecerá sozinho e melhor: sem esforço. E, melhor ainda, com imensa alegria. Acabei de escrever meu segundo livro infantil: Carmela vai à escola. E coincidentemente lá está a melhor resposta que poderia oferecer à sua pergunta.

■ Os professores que participam da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro trabalham em sala de aula com a leitura e a escrita de gêneros textuais, entre eles a poesia. Na opinião da senhora, que tipo de postura um professor pode ter na hora de trabalhar poesia com crianças e adolescentes?

A melhor postura é a de mostrar que ele mesmo, professor, ama a leitura, contagiar os alunos através da ficção e da poesia com seu entusiasmo sobre nossa maravilhosa língua portuguesa. Sem isso não tem nem como começar a falar do assunto. Não há congresso pedagógico que dê jeito nessa miséria, professores que se gabam de não gostar de ler. Mas esta entrevista me anima. Há muita gente boa preocupada em melhorar a qualidade da vida e do ensino de nossas crianças. Longa vida aos que levam a sério a tarefa de fazer do nosso país uma nação.


Referências

Adélia Luzia Prado Freitas (13/12/1935), professora, poeta, romancista e contista, nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, filha do ferroviário João do Prado Filho e da dona de casa Ana Clotilde Corrêa. Aos quinze anos, abalada pela morte da mãe, começa a escrever e em 1969 publica, em parceria com o escritor Lázaro Barreto (1934), A Lapinha de Jesus. Quatro anos depois, envia alguns de seus poemas ao poeta Affonso Romano de Sant’Anna (1937), que os submete à apreciação do escritor Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Entusiasmado, Drummond sugere a publicação do que viria ser o livro de estreia de Adélia Prado, Bagagem, em 1976. O primeiro livro de prosa, a coletânea de contos Solte os cachorros, ela lança em 1979, e, no ano seguinte, o primeiro romance, Cacos para um vitral. Em 2006, publica Quando eu era pequena, primeiro trabalho dedicado ao público infantojuvenil. Em 2010, um novo livro, A duração do dia, uma coletânea de 71 poemas inéditos. Com um estilo que contrasta a leveza das palavras com a força dos sentimentos, seu olhar único sobre as coisas aparentemente desimportantes do cotidiano revela a perplexidade e o encantamento da vida. Sua obra, que contém fortes elementos do catolicismo, remete à paisagem e ao cotidiano de Minas Gerais, com uma abordagem inovadora da sexualidade feminina. Adélia vive em sua cidade natal, dedicada a questões ligadas à educação e cultura públicas.

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