"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Beleza, professora!
Beleza, professora!
texto - Flaviana Fagotti Bonifácio; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Palavra como antídoto escrevendo um mundo novo
Passado o primeiro momento de incertezas diante da necessidade de distanciamento social em função da Pandemia de Covid-19, provocada pelo Novo Coronavírus, todos trataram de tentar, de alguma maneira, organizar o cotidiano para que, minimamente, fosse possível sobreviver no chamado “novo normal”.
Com as escolas não foi diferente: aulas gravadas, assíncronas, por plataformas distintas; ou de forma síncrona, no improviso, os professores trataram de tornar possível o diálogo com os mais de 47 milhões de alunos da Educação Básica no Brasil. Tratou-se também de um momento de parceria e solidariedade entre docentes e discentes que, à medida que iam precisando de recursos, contaram com a ajuda de colegas no compartilhamento de instruções, tutoriais e outras formas de ajudar quem pedia socorro.
Apesar das condições adversas enfrentadas por muitos docentes da rede pública, no Colégio Técnico de Limeira – uma escola de Ensino Médio e Técnico, mantida pela Unicamp, as dinâmicas que se estabeleceram foram bastante produtivas, pois os alunos, no geral, têm acesso a computadores e à internet, facilitando muito o trabalho desde o início da pandemia. Para os vários casos de alunos com carência de recursos, o Colégio, com apoio da Universidade, fez o empréstimo de notebooks e tablets, e cedeu pen drives com dados. Esse tratamento cuidadoso permitiu que houvesse condições para que as aulas continuassem a ser ministradas, sem que se ampliassem as desigualdades existentes dentro e fora da escola.
Como professora de redação, no entanto, uma das minhas primeiras dúvidas, quando o aparato tecnológico foi organizado, dizia respeito à interação necessária no processo de construção de um texto. Com certo incômodo, eu pensava: como adaptar nossas dinâmicas para o formato remoto? Como interferir no processo, se estou longe dos alunos? De que forma vou dar retorno às produções de todas as turmas, chegando de fato a todos?
Pensando no desejo que nossos alunos têm de ingressar em uma universidade pública, principalmente pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), tratamos de, em comum acordo, concentrar nossos esforços na produção da dissertação argumentativa, esse gênero textual exigido nos principais exames e que, no entanto, demanda trabalho de longo prazo e coloca os alunos ansiosos por dominá-lo. Pelo chat, as mensagens traziam a ansiedade reveladora de um caminho a ser seguido: “Flavi, a gente vai estudar a redação do Enem?”, “Professora, eu preciso arrasar no Enem. É quase impossível tirar 1000 pontos na redação, não é?”, “Olha, eu prestei o Enem no ano passado e não fui bem. Preciso melhorar muito!”.
Percebi que se tratava, na verdade, de instrumentalizá-los para se apropriarem de competências na escrita de um texto cujos resultados teriam enorme impacto social para eles. Para a quase totalidade, é a única forma de realizarem um sonho, de garantirem o acesso à universidade pública, gratuita, de qualidade.
Assim, é preciso considerar: o que pode dar errado se há motivação mais que necessária para aprender? Se as ferramentas tecnológicas estão disponíveis, não se trata de usá-las, adaptá-las e explorar seus melhores recursos?
Em vídeos gravados, disponibilizados pela plataforma Classroom, e em aulas síncronas pelo Google Meet, projetando material e dialogando com eles, que respondiam por áudio e chat, comecei a apresentar a prova de redação e os critérios de correção, explicando a pontuação de cada competência e o que diferencia um nível de avaliação do outro. Defendi a ideia de que o primeiro avaliador do texto é o próprio autor e que, por isso, eles precisavam saber como organizar o texto, como não fugir do tema, como explorar melhor os argumentos e os recursos coesivos, como enxergar as próprias falhas ainda a tempo de corrigi-las.
Cada sala escolheu um dos temas anteriormente utilizados no Enem e, a partir da discussão da proposta, passamos ao trabalho de escrita da dissertação. Aliando teoria e prática, estudamos tipos de introdução – diversas possibilidades de apresentar o tema –, delimitando a tese e já pensando no projeto de texto a ser executado. Estudamos a organização dos parágrafos para o desenvolvimento do texto, os argumentos e sua relação com a introdução na defesa de uma tese; e a conclusão no formato da proposta de intervenção.
Fizemos leitura de redações exemplares publicadas na internet e utilizamos vários fragmentos da Cartilha do Participante, publicada pela Diretoria de Avaliação da Educação Básica (Daeb), e de textos dos participantes do Enem 2019 que constam do Manual para Avaliadores, que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep) tornou público no intuito de ajudar alunos e professores em um ano tão atípico. Nessas ocasiões, observava os alunos se apropriando de termos, como: “texto motivador”, “adequação temática”, “repertório sociocultural”, “proposta de intervenção” etc., um sinal de que nosso trabalho tomava corpo.
No entanto, durante esse percurso, quando havia uma etapa ou aspecto do texto a ser avaliado, eu solicitava: “Quem pode projetar a introdução que escreveu pra que a gente possa analisar?”, “Quais operadores argumentativos vocês usaram?, Alguém compartilha o texto aqui para todos verem?”. Como resposta, havia o silêncio, a resistência. Mas, escolhendo então fragmentos do que haviam encaminhado nas tarefas solicitadas, eu dizia: “Vamos olhar então este exemplo aqui de um colega da outra classe, mas que não está identificado”. Dessa forma, fazíamos a análise, a reescrita de trechos inadequados, as adequações necessárias.
Aos poucos, essa dinâmica foi sendo percebida como um exercício importante, respeitando o texto de cada um, com parceria e a contribuição de muitas vozes em um processo de construção e apropriação daquilo que todos precisavam contemplar em seus próprios escritos. Mas, individualmente, incomodava ainda o silêncio de uma parcela a quem eu tinha que ouvir, com quem eu precisava falar, como quando a gente se aproxima da carteira e puxa para uma conversa.
Produzir longos e detalhados recados escritos, com orientações específicas, tornou-se extremamente improdutivo diante do grande número de alunos. E foi a partir desse desafio que passamos a explorar um recurso absolutamente disponível a todos: o WhatsApp. Assim, formamos grupos de cada sala e, um a um, os alunos foram se identificando, de forma que pudessem ser chamados para uma conversa privada por meio de trocas de áudios, o que acabou por agilizar e transformar nossa comunicação. À medida que lia as dissertações enviadas, gravava áudios comentando e sugerindo, questionando, ouvindo-os e retornando, em uma infinidade de mensagens e falatórios tão ricos quanto promissores. A cada áudio ou sequência de áudios, eles respondiam: “Beleza, professora!”.
Com o tempo, isso refletiu também nas aulas, e o que era vergonha, timidez, transformou-se em confiança, autonomia, segurança, em um diálogo franco e absolutamente parceiro. Assim, quando perguntava quem queria compartilhar o que escreveu, passei a lidar com a fila de alunos querendo se expor: “Projeta o meu, Flavi!”, “Beleza, professora! Pode mostrar o meu!”, “Não sei se o meu está bacana, mas posso projetar?”.
Ao final do ano, eles se formaram. Seguindo as restrições, enfrentaram a prova do Enem, depositando nela expectativas de um futuro, do sonho de serem admitidos em uma universidade pública. Eles, que receberam toda a estrutura de que precisavam para chegar ali, sonharam com a possibilidade de continuar.
Alguns se lembraram de voltar, de reestabelecer o diálogo do ponto em que paramos, com o mesmo dispositivo pelo qual tantas vezes conversamos sobre a escrita, mas agora para dar retorno, para confirmar que podemos continuar a investir nesses atalhos usados para encurtar a distância. Eles voltaram para mostrar aonde chegaram: “Prof, só queria te dizer que tirei 920 na redação do Enem!”, “Eu fui muito bem na redação, nem acredito ainda! Tirei 960. Muito obrigado por tudo!”, “Com minha nota no Enem, passei em Engenharia da Computação. Beleza, professora!”.
Agora é tempo de insistir: o ensino remoto continua, as ferramentas estão novamente à disposição e novos grupos de WhatsApp se formam: novas turmas renovam um sonho possível.
Para saber mais, consulte os sites:
<http://inep.gov.br/web/guest/enem-outros-documentos>.
Flaviana Fagotti Bonifácio é professora de literatura, gramática e produção de textos em Língua Portuguesa. Formada em Letras pela Unimep, com especialização em Psicopedagogia Institucional, pela Universidade São Luís e especialização em Educação de Jovens e Adultos pela UnB. Professora de Língua Portuguesa do Cotil/Unicamp – Colégio Técnico de Limeira/SP; professora mediadora dos cursos da Olimpíada da Língua Portuguesa; e avaliadora de redação do Enem.
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