"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Força flutuante
Força flutuante
texto - Geni Guimarães; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Palavra como antídoto escrevendo um mundo novo
Com o certificado na bolsa, saí para procurar emprego.
Consegui numa escola uma substituição para o ano todo: dar aulas numa classe de primeira série que “havia sobrado”, pois as professoras efetivas no cargo, já haviam optado por alunos maiores e em processo de alfabetização mais avançado.
No pátio do estabelecimento, tentando engolir o coração para fazê-lo voltar ao peito, suportei o olhar duvidoso da diretora e das mães, que, incrédulas cochichavam e me despiam com intenções veladas.
Só faltaram pedir-me o certificado de conclusão, “para simples conferência”.
Deram o sinal de entrada. E os meus pequerruchos entraram barulhentos, agitados.
Só uma menina clara, linda, terna empacou na porta e se pôs a chorar baixinho. Corri para ver se conseguia colocá-la na sala de aulas.
— Eu tenho medo de professora preta — disse-me ela, simples e puramente.
Tanto medo e doce, misturados desarmou-me. Procurei argumentos:
— Vou contar pra você histórias de fadas e...
— O que aconteceu? — Era a diretora, que devido ao policiamento chegou na hora h.
Contei-lhe o ocorrido e ela prontamente achou a solução:
— Não faz mal. Eu a coloco na classe de outra professora de primeira.
Reagi imediatamente. Acalmei-me e socorri-me:
— Por favor. Deixe que nós nos possamos conhecer. Se até a hora da saída ela não entrar, amanhã a senhora pode levá-la.
A diretora aceitou minha proposta e saiu apressada.
Vi, então, que era muito pouco tempo para aprovar a tão nova gente minha igualdade, competência. Mas algum jeito deveria existir.
Eu precisava. Precisava por mim e por ela.
Os outros aluninhos se impacientaram e eu comecei meu trabalho, com a pessoinha ali em pé na porta, me analisando, coagindo, com os olhinhos lacrimosos, vivos, atentos. Pedia explicações, punha prelo e tinha pressa.
Assim prensada, fui até a hora do intervalo para o lanche, falando. Olhava para a classe, mas falava para ela. Inventei o primeiro dia de aula sonhando na minha infância conturbada.
Alegria de aprender, desenhar. Sabores gostosos dos lanches, brincadeiras e cantos brincados nas mentiras inocentes, quando sonhar era pensar que acontecia.
Na hora do recreio, enquanto os outros professores tomavam o cafezinho e comentavam o andamento das aulas, eu fiquei no pátio.
Talvez ali se me apresentasse alguma ideia.
Vi-a entre as outras crianças. Aproximei-me e pedi a ela um pedaço do lanche. Deu-me indecisa, meio espantada.
Resolvi dar mais um passo.
— Gostaria que você entrasse na classe depois. Assim você senta na minha cadeira e toma conta da minha bolsa enquanto eu trabalho.
Saí sem esperar resposta. Medo.
Logo mais retornamos à sala de aulas.
Ela sentou-se na minha cadeira, seu material ao lado do meu. “Precisei” de uma caneta. Pedi-lhe. Abriu minha bolsa como se arrombasse cofre, pegou e entregou-me a caneta solicitada. Meio riso na boca.
Durante a aula, pedi que levantasse a mão quem soubesse desenhar.
Todos levantaram as mãozinhas. Constatei. Ela também sabia.
Desenhou um cachorro retangular e sem rabo.
— Seu cachorro é uma graça — disse-lhe rindo. — Ele não tem rabo?
— Não é meu. É da minha avó. Quando meu avô bebe e fica bravo, ele corre e enfia o rabo no meio da perna.
Baixou a cabeça e pintou o cachorro de azul.
Ao término das aulas, arrumou o material sem pressa. Percebi-a amarrando os passos e tentando ficar afastada das outras crianças.
Alguma coisa tinha para me dizer. Impacientei-me. Sabia que, fosse o que fosse, eram respostas às minhas perguntas indiretas.
Decidiu a hora, segurou na minha saia e pediu:
— Amanhã você deixa eu sentar perto da minha prima Gisele? De lá mesmo, eu cuido da bolsa da senhora. Amanhã eu vou trazer de lanche pão com manteiga de avião, a senhora gosta de lanche com manteiga de avião na lata?
— Adoro.
— Vou dar um pedaço grandão pra senhora, tá?
— Obrigada.
Combinamos.
— Até amanhã! — eu.
— Até amanhã! — ela.
In: Geni Guimarães. Leite do peito: contos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2001, pp. 99-104.
Geni Mariano Guimarães é professora, poeta e escritora. Nasceu no município de São Manuel (SP), em 8 de setembro de 1947. Iniciou a carreira literária escrevendo para jornais no interior paulista, onde envolveu-se com questões socioculturais do campo e começou sua reflexão em torno da literatura negra. Escreveu vários livros, entre eles: Terceiro filho (poemas), Balé das emoções (poemas), A dona das folhas (infantil), A cor da ternura (contos), Leite do peito (contos), O rádio de Gabriel (infantil), Aquilo que a mãe não quer (infantil), O pênalti (infantil) e Poemas do regresso (poemas). Também publicou na série Cadernos Negros e participou de algumas antologias.
Explore edições recentes
"Centenas de povos indígenas e suas línguas habitam, cultivam e preservam o território multicultural do nosso país."
"Como repensar as questões étnico-raciais na educação"
"Palavra de educador(a): viver para contar e contar para viver. Experiências da 7ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa"
Comentários
Ninguém comentou ainda, seja o primeiro!
Ver mais comentáriosDeixe uma resposta
Olá, visitante. Para fazer comentários e respondê-los você precisa estar autenticado.