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Do letramento da letra aos letramentos digitais no ensino de Língua Portuguesa
Do letramento da letra aos letramentos digitais no ensino de Língua Portuguesa
texto - Jordana Thadei; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Como será o amanhã: (re) descobrir, juntos os caminhos possíveis
Jordana Thadei é mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, formadora do curso “Caminhos da Escrita”, do Programa Escrevendo o Futuro, e professora do Instituto Singularidades.
Sentou-se à frente do computador, câmera, microfone de mesa, caixa de som... Aos 90 anos, soube que a tecnologia já permitia ver e falar com a pessoa. Atreveu-se a aliviar a saudade, usando esses recursos tecnológicos.
Um suspirinho de espanto, exclamações de maravilhamento, dois minutos de prosa empolgada e o neto, apoio tecnológico do evento, interrompe: — espera aí, que a vó tá emocionada.
— Emocionada, vó? De falar comigo ou por causa da tecnologia? — Brinca a neta.
— Com a tecnologia, minha filha — voz embargada, risinho nervoso — Quando eu e seu avô casamos e fomos pra Formosa, a saudade dos meus pais e dos meus irmãos era tanta, que eu desejava, todo dia, que alguém inventasse uma máquina pra gente poder ver e falar com a pessoa. Tô emocionada, porque... Eu vivi para ver isso!
Depoimento familiar.
A passagem mostra um desejo, em 1940, antecipando a interação pela tecnologia. Anos depois, essa tecnologia encurta distâncias e aproxima gerações. Mas, às portas da terceira década do século, falar dessas interações soa redundante, pois são inúmeros os usos tecnológicos contemporâneos.
Acessar e baixar músicas e vídeos; reagir a postagens ou comentá-las; participar de redes sociais como WhatsApp, Facebook, Instagram, Twitter, Snapchat, YouTube e TikTok; checar quem leu/visualizou/escutou a mensagem; usar serviços de delivery ou aplicativos de transporte e avaliá-los; buscar informações; criar ou compartilhar memes, vídeo-minuto, blogs e podcasts; comprar; reclamar direitos; denunciar publicações falsas ou preconceituosas são algumas das práticas realizadas, muitas delas pelos estudantes do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio.
Mas, se os estudantes já participam de algumas dessas e de outras práticas, no contexto digital, qual o papel da escola e do ensino de Língua Portuguesa diante das tecnologias?
Aproximações entre os novos letramentos e o ensino de Língua Portuguesa
Os textos oriundos das práticas letradas em contexto digital valem-se da diversidade de linguagens ampliada pela tecnologia. Além da linguagem verbal, eles são constituídos por sons, imagens estáticas e em movimento, ícones etc. São textos multimodais ou multissemitóticos, para os quais a leitura do componente verbal, apenas, não é mais suficiente.
Os avanços tecnológicos favorecem novos textos, gêneros, combinações de linguagens e formas de interagir, de se relacionar, de exercer a cidadania, de aprender etc., que colocam em jogo multi e novos letramentos. Assim, os letramentos de hoje, embora muito relevantes, podem não ser suficientes para um futuro próximo. Não se trata, porém, de abandonar os letramentos da letra e do impresso. Mas de associá-los a outros do contexto digital, a fim de explorá-los de modo eficiente, aproveitando o potencial que nos apresentam.
De olho na prática 1
Fábio Rosa Souza, professor de Língua Portuguesa na região de Jundiaí (SP), cursista do “Caminhos da Escrita”¹ (Turma 177), abordou um gênero típico da cultura juvenil – o meme. Trazendo uma prática de letramento já presente na vida dos estudantes do 9º- ano, o professor explorou as linguagens nos memes, a comicidade do texto criada pela confluência das linguagens, a crítica envolvida e a relação intertextual com o texto ou fato que os originou, fundamental para a compreensão do meme. Ele propôs que os estudantes analisassem fatos recentes ou textos em gêneros diversos e os possíveis memes que eles suscitariam, para então, passar à produção e à exploração de aplicativos específicos para isso.
A produção dos memes é, tecnologicamente, simples, utilizando-se de aplicativos da internet. Porém, por ser um gênero altamente inferencial, requer a construção de pistas para o leitor. Envolve saber ler e escrever nas entrelinhas, relacionando as diferentes linguagens, o que garante a sua complexidade e justifica sua abordagem na sala de aula.
Os textos híbridos de linguagens e, geralmente, menos lineares têm a tela como suporte. Nesse novo suporte, saber ler é muito importante, mas saber navegar também, pois o hipertexto predomina nos ambientes da web. Na definição de Gomes (2011), o hipertexto é um texto exclusivamente virtual², que apresenta links que levam a outros textos, constituídos de palavras, imagens, sons... e permite ao leitor escolher o percurso de leitura, na busca dos seus propósitos.
Na tela, o hipertexto dribla as limitações do tamanho e do peso dos textos correlacionados. Mas impõe habilidades de leitura específicas ao hipertexto digital. Saber ler a forma ou o visual de hiperlinks (palavras, ícones), sua localização no documento (no menu ou embutido no texto), sua função (explicar, exemplificar, ampliar informações ou direcionar a navegação), entre outros, é parte do ensino da leitura em ambientes digitais. Como fazer isso na aula de Língua Portuguesa?
De olho na prática 2
Os textos reivindicatórios (carta de solicitação ou de reclamação), essenciais à atuação na vida pública, estão nas salas de aula. Mas, muitas vezes, sua abordagem vai até a produção e envio da carta. Relacionando a formação para a atuação na vida pública por meio das tecnologias digitais, o letramento da letra (que a escola já faz) e o letramento digital, navegar no site da empresa sobre a qual se reclama, pode ser uma rica situação contextualizada de ensino da leitura de hipertextos.
Compreender os efeitos de sentido produzidos pelos tipos de links pelos quais o consumidor “fala” com a empresa é parte do aprendizado dessa leitura. Há diferenças entre um link visível na página inicial do site ou acessado dentro de um menu? Há diferenças entre o link ser textual (em palavras) ou gráfico (ícones, botões, imagens, símbolos)? No caso de link gráfico, a imagem ou ícone facilita a identificação da sua função? O link pode ser acessado diretamente (não linear), sem que se tenha que passar por outros, sequencialmente (linear)? O que isso implica para a leitura do hipertexto e para a interação do leitor com a empresa? Estas são algumas das questões que precisam fazer parte da leitura do hipertexto. É provável que o estudante domine aspectos da navegação, mas não saiba ler criticamente ou reconhecer os sentidos que os tipos de links constituem nos hipertextos.
Rojo e Barbosa (2015) discorrem sobre as “gerações” da web e seus funcionamentos. Segundo elas, a web 1.0 apresentava informação unidirecional – de um para muitos – semelhante à cultura de massa (TV, rádio). A web 2.0 coloca em cena sites interativos, dos quais os sujeitos participam comentando, compartilhando e publicando. O internauta deixa de ser mero consumidor de conteúdo da web e passa a ser, também, produtor, rompendo a cisão entre autor/produtor e leitor/consumidor, o que Rojo (2013) denomina “lautor” (fusão de leitor e autor). De que maneira isso se relaciona ao ensino de Língua Portuguesa?
De olho na prática 3
Combinando tecnologia e literatura, a curitibana Luciane Vilain abordou, como projeto do curso “Caminhos da Escrita” (Turma 212), a produção das fanfictions ou fanfics³, prática letrada bastante presente entre os jovens, em contextos extraescolares.
Ela constatou que as fanfics conquistam leitores assíduos tanto das obras originais, quanto das produções dos fanfiqueiros. Em sala de aula, favorecem o protagonismo dos estudantes desde a escolha da obra original até a produção de novos e complexos enredos.
Além da produção e publicação da fanfic, o projeto envolveu outras práticas letradas, como resposta à enquete on-line, para escolha da obra-base e seu gênero literário (aventura, comédia, drama etc.) e verificação da possibilidade de crossover (mistura de mais de uma obra-base); debates, para a tomada de decisões; escrita colaborativa no Google Docs e postagem de comentários sobre as produções; elaboração de ficha técnica da fanfic e produção de sinopse. Luciane relatou, ainda, o caráter interdisciplinar do projeto, que envolveu pesquisas nas áreas de História e Geografia, para a construção das personagens e verossimilhança da narrativa.
Os gêneros textuais que corroboram para a produção e divulgação das fanfics são mobilizados em contextos reais de uso. O remix de um texto existente e a divulgação em contexto digital evidenciam a atuação do lautor, descrito por Rojo (2013). O projeto demonstra, ainda, que práticas letradas digitais e extraescolares podem ser incorporadas a diferentes eixos de ensino da Língua Portuguesa, geralmente abordados apenas no texto impresso.
Retomando a discussão de Rojo e Barbosa (2015), a possibilidade de os sujeitos usuários da web 2.0 atuarem como lautores favoreceu o mapeamento de interesses, necessidades, preferências e rejeições dos internautas. Por que vemos determinados anúncios ou postagens em uma rede social? Por que um tema ou produto pesquisado aparece (“coincidentemente”) na tela? Estamos diante da web 3.0 – a chamada “internet inteligente”.
Recursos como marcar amigos, ver reticências enquanto alguém digita, ser notificado sobre curtidas, postagens e menções são usados como forma de aumentar o tempo de conexão do usuário e de conhecer as suas ações na web, para oferecer o que lhe interessa: pessoas que pensam como ele, produtos, serviços, conteúdo. Assim funcionam os “Recomendados para você”. E o que o ensino de Língua Portuguesa tem a ver com isso?
De olho na prática 4
O oceano de informações que é a internet e as características da web 3.0 requerem atitudes críticas sobre o que se consome e o que se produz na web.
Notícias e reportagens também são gêneros muito presentes nas aulas de Língua Portuguesa, geralmente abordados no contexto do jornalismo impresso. Para além das possibilidades de navegação em sites jornalísticos e de leitura dos hipertextos (“De olho na prática 2”), outros aspectos específicos do contexto digital merecem e precisam ser abordados. Discutir a existência de blogs de jornalismo independente e seus impactos no acesso à informação livre e não subordinada aos grandes grupos editoriais é fundamental à formação de leitores críticos. Nesse sentido, também é importante abordar as possibilidades de participação (web 2.0) e interação nos sites jornalísticos, comentando, curtindo compartilhando.
Paralelamente, é preciso discutir os efeitos da web 3.0: Que posicionamentos são mais evidentes nos comentários de uma dada notícia? Quantos compartilhamentos foram realizados? E que motivos podem ter gerando esses compartilhamentos? Quais os impactos de uma notícia receber milhões de curtidas ou compartilhamentos? O que pode acontecer quando compartilhamos uma notícia sem lê-la integralmente ou sem refletir sobre ela? Que efeitos têm sobre o leitor a visualização das curtidas dos amigos de rede, em uma notícia ou reportagem?
Essas são algumas das reflexões que precisam perpassar a abordagem de textos jornalísticos em sala de aula. Ensinar Língua Portuguesa, atualmente, envolve abordar os recursos persuasivos que constituem o ambiente digital, para os quais o estudo no texto impresso, mais uma vez, não é suficiente. Entre outras coisas, é preciso compreender os efeitos produzidos pelas ações de curtir, compartilhar, comentar, publicar, rumo à construção de letramentos críticos.
Linkando a conversa
As práticas brevemente apresentadas partem do que ocorre nos diferentes eixos de ensino da Língua Portuguesa, na abordagem dos textos originalmente impressos, e evidenciam possibilidades de se atingir o contexto digital. Elas levam em conta as participações sociais dos estudantes no contexto digital, de modo que a relação entre os dois grandes tipos de letramento seja contextualizada e significativa. Como essas práticas mostram, não se trata de romper com os letramentos do impresso nem de abordar uma lista de gêneros da esfera digital, mas de aproximar e relacionar diferentes letramentos, necessários às demandas impostas pela sociedade tecnológica e da informação, viabilizando leitores críticos também no contexto digital.
1. Curso on-line, do Programa Escrevendo o Futuro, destinado a professores de todas as áreas e estudantes de cursos de docência, é oferecido semestralmente.
2. Essa exclusividade virtual não é consenso entre pesquisadores. Conforme Zacharias (2016), há aqueles que defendem que a hipertextualidade está também nos impressos (notas de rodapé, índices, citações).
3. Narrativas ficcionais produzidas por fãs de personagens, livros, histórias, séries, filmes, quadrinhos, grupos musicais etc. a partir de uma ou mais obras originais. As fanfics são divulgadas em blogs, sites e em plataformas específicas.
Referências bibliográficas
GOMES, L. F. Hipertexto no cotidiano escolar. São Paulo, Cortez: 2011. Coleção Trabalhando com... na escola, v. 1
ROJO, R.; BARBOSA, J. P. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros discursivos. São Paulo: Parábola Editorial, 2015, p. 150.
ROJO, R. “Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos”, in: ROJO, R. (org.). Escol@ conectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola Editorial, 2013, pp. 13-36.
SOUZA, F. R. “Memes”. Projeto apresentado no curso on-line “Caminhos da Escrita” — Programa Escrevendo o Futuro. São Paulo: CENPEC, 2018. Turma 177.
VILAIN, L. R. M. “Fanfics”. Projeto apresentado no curso on-line “Caminhos da Escrita” – Programa Escrevendo o Futuro. São Paulo: CENPEC, 2019. Turma 212.
ZACHARIAS, V. R. C. “Letramento digital: desafios e possibilidades para o ensino”, in: COSCARELLI, C. V. (org.). Tecnologias para aprender. São Paulo: Parábola Editorial, 2016, pp. 15-29.
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