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A gênese maraguá e a origem do mundo

A gênese maraguá e a origem do mundo

texto - Yaguarê Yamã; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Como será o amanhã: (re) descobrir, juntos os caminhos possíveis

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Monãg fez Za’àpĩg, o Universo, e Guakap, o mundo, e os deixou sem habitantes. Apenas modelou Guakap com as montanhas e as planícies, e o deixou assim. Wasiry, filho de Monãg, vendo que o pai tinha feito apenas a parte sólida do mundo, desceu para a Terra e aqui criou todos os vegetais.

Wasiry fez isso porque queria morar no mundo. Depois de fazer todas as florestas e os campos com parte de seus cabelos, ele pegou um galho de pau-d’arco e começou a riscar o chão. Onde ele ia riscando, ia brotando água. Essa água saía de Piãguap, um mar subterrâneo onde morava Anhãga, todo-poderoso senhor do mal, que não gostava de Monãg nem de seu filho.

Por falha de Wasiry, algumas águas encantadas que faziam parte do aposento de Anhãga vieram à tona e deram origem ao lago encantado Waruã. Esse lago pode estar em todo lugar. Ninguém sabe quando e onde Waruã irá surgir, e ele nunca fica dois dias no mesmo local. E todos os que já foram até esse lago nunca mais voltaram, desapareceram para sempre em suas águas escuras, nas quais flutuam a maldade e a força de Anhãga.

Depois de criadas as florestas, o filho de Monãg pensou: “Não pode haver só vegetais. Agora vou criar os animais”.

Então ele foi até o lago e encheu uma cuia com água. Nessa água ele foi misturando barro amarelo, enquanto dizia:

— Saiam daqui os animais quadrúpedes e de caça!

Logo apareceram a anta, o macaco, a cutia, a capivara, o veado e a paca, que saíram correndo e foram habitar a parte enxuta da floresta. Wasiry encheu mais uma cuia com água, que dessa vez ele misturou com barro vermelho, dizendo:

— Saiam daqui as espécies de animais que habitarão os charcos e ygapós!

Assim apareceram o jacaré, o sapo e a cobra. Wasiry encheu outra cuia com água, à qual misturou barro preto. Dessa mistura nasceram os peixes que foram habitar os lagos e rios.

Wasiry foi então até o meio da floresta, fez um fogo com casca de sarakura’mirá. Apanhou com as mãos pedacinhos de nuvens e jogou-os no fogo, ordenando:

— Saiam daqui aves pretas, brancas e coloridas para embelezar o céu!

No mesmo instante, pássaros de todos os tipos e cores saíram voando do meio do fogo. Só que, quando a galinha, a saracura e a seriema quiseram levantar voo, Wasiry as impediu com as mãos e elas saíram correndo para o meio do mato.

Assim Wasiry criou os animais e a cada um deu uma serventia na natureza. E a alguns deu a sua bênção para lhe servirem de alimento. Daí em diante, então, seus alimentos foram o veado, os peixes e a makukawa.

Depois disso, Wasiry quis descansar. Fez uma casa de folhas de karanã”, amarrou sua rede e dormiu por muitos anos.

Wasiry acordou descansado e viu que tinha feito tudo conforme o pai tinha pensado. Passou a viver no meio dos animais, mas ainda não estava satisfeito. Um dia, sentindo-se sozinho, pegou muitas sororinas e muitos jacamins, reuniu-os na margem do paraná do Urariá e os transformou em gente. As sororinas transformaram-se em mulheres e os jacamins em homens. Assim surgiu a raça humana. Então Wasiry ficou muito feliz.

Com o tempo essas pessoas foram se modificando e se juntando em grupos para povoar a Terra. Dos irmãos Yakumā, Ukumā-wató e Anhyã-muasawê, surgiu o povo Mawé; de Hairu e Karu-sakaibê surgiu o povo Munduruku; de Baíra surgiu o povo Parintintim e outros povos, como os Arara e os Arapium. Muita gente saiu pelo mundo para morar em lugares longínquos, como os Karaywa, os brancos, e os Tapaiwna, os negros.

Mas Wasiry não queria ficar sozinho de novo. Juntou-se com uma moça muito bonita que tinha acabado de surgir, levou-a para casa, cobriu-a de pinturas e a desposou. Dessa união nasceram Ebenzekê, Tuazep, Gwapek e Mazoap. Foram esses os ancestrais do povo Maraguá e deles descendem seus quatro clãs maiores.

Os Maraguá, portanto, são filhos legítimos de Wasiry. Falam o idioma ensinado por ele e sua cultura é a que Wasiry trouxe do céu, onde morava com seu pai Monãg. Entre as tradições que Wasiry deu a seu povo estão a arte de fabricar vasilhas de cerâmica de formas muito bonitas, as pinturas corporais como as que fez em sua esposa, o costume de apontar os dentes, deixando os como os da piranha, para melhor mastigar os peixes, os hábitos alimentares e o rito de passagem para a idade adulta. Nesse rito, a criança deve desafiar o animal que é filho do espírito inimigo de seu protetor. Se conseguir matá-lo, provará sua valentia e sua capacidade de ser um grande guerreiro.

Wasiry viveu feliz por muito tempo. Depois de longos anos, sua esposa, que era mortal, faleceu. Muito triste, Wasiry atravessou o portal do Angaretama, o mundo superior em que então morava seu pai, Monãg. Mas ele deixou para seus descendentes toda a beleza e a arte divinas para que eles continuassem construindo a cultura maraguá.

O território dos Maraguá fica na região do médio Abacaxis, do rio Mamuru e do paraná do Urariá. Antigamente, voavam por esse território homens-morcegos, os Zorak, que os brancos chamam de Morceganjos. Eram criaturas visajentas de Anhãga, senhor do mal, a quem obedeciam, prestando-lhe serviços malignos. Os Morceganjos tinham forma de gente, mas sua parte de cima mais grossa e a de baixo mais fina. Não tinham mãos, mas tinham asas no meio das costas. Seus dentes eram pontiagudos e sua língua parecia uma cobra. Moravam ao redor do lago perdido Waruã, de onde ninguém voltava.

Nesse lago sagrado havia centenas de cavernas escuras. Nelas moravam esses demônios, que estavam sempre saindo para espiar se havia humanos por perto.

Certa vez, Ebenzekê, Parket e Ezayerê, jovens heróis maraguá, decidiram fazer alguma coisa para livrar seu povo desses homens-morcegos, que devoravam gente. Então os três rumaram para o lago Waruā. Quando chegaram, um inambu saiu voando e foi pousar bem na porta de uma das cavernas. O homem-morcego que morava nela saiu, olhou, mas não viu nada, pois os rapazes deitaram-se no chão. Depois que o demônio entrou de novo na caverna, os heróis tornaram a avançar. Outro pássaro voou até a porta da caverna. O homem-morcego, que era o vigia Ysarabiá, tornou a sair, e mais uma vez não viu nada. Assim, os três jovens maraguá continuaram avançando, e, depois, ficaram esperando anoitecer. Quando finalmente escureceu, eles entraram na caverna, que estava cheia de homens-morcegos, todos deitados em redes, uns por cima dos outros. O chefe deles estava dormindo de cabeça para baixo, pendurado na cumeeira. Os heróis acenderam uma tocha, pegaram seus porretes e foram derrubando um por um. Depois correram para fora e ficaram esperando. Logo os homens-morcegos começaram a sair, muito zangados, e os três rapazes foram matando cada um que passava pela porta. O único que não morreu foi Ezamume, o chefe dos Morceganjos. Ele escapou, voando para a parte mais profunda da caverna, de onde nunca mais voltou. Mas essa é a versão de alguns pajés, pois outros acreditam que ele continua voando por aí, vingando-se dos humanos.

Quanto a Monãg, ele é o deus todo-poderoso, senhor dos mistérios de Angaretama, mundo dos espíritos e das entidades superiores. Lá é seu novo lar, para onde ele se mudou quando seu filho o deixou para vir para o mundo. De lá, Monãg olha por seus netos, filhos de Wasiry. Ele ordena que o sol aqueça os dias frios e que a lua ilumine as noites escuras. Está sempre acompanhado de sua ajudante, uma ariranha muito astuta, que consegue expulsar os Morceganjos quando eles atacam as aldeias dos Maraguá.

Wasiry é considerado o Primeiro Pajé. Ele criou os curandeiros e ajuda seu pai a proteger as florestas e os segredos do Universo escondidos no cume das montanhas.

 

In: Yaguarê Yamã. Murũgawa: mitos, contos e fábulas do povo Maraguá. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, pp. 5-10.


Yaguarê Yamã é natural da região do rio Paraná Urariá, Amazonas, e pertence aos povos Maraguá e Saterê-Mawé. É escritor, artista plástico, ilustrador, palestrante e professor.


pau-d’arco – ipê.

charco – porção de água estagnada, de pouca profundidade.

ygapó – pântano, floresta alagada

sarakura’mirá – árvore cuja casca os Maraguá usam para fazer remédios.

makukawa – ave preta e branca, da família dos galináceos.

karanã – vegetal parecido com a cana, muito comum nas várzeas da Amazônia.

sororina – ave galinácea não domesticável da Amazônia.

jacamim – árvore nativa da floresta Amazônica.

paraná – rio, braço de rio.

visajento – propenso à manifestação do demônio, mal-assombrado, que pode se transformar em assombração ou demônio.

inambu – tipo de ave robusta, de pernas grossas e cauda pequena ou inexistente.

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