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Esta é a história da mais bela moça maraguá que já existiu. Seu nome era Cereçá-purãga, que significa "meus olhos bonitos". Ela era filha do pajé Apinayé´ranga, lendário curandeiro da região do rio Urariá.
Naquele tempo, os Maraguá estavam em guerra com os Munduruku. Os dois povos viviam acusando um ao outro de ter invadido seu território. Seus chefes e suas famílias só entravam em contato quando se tratava de declarar guerra. O território maraguá incluía o rio Arapium, no baixo Tapajós, e recomeçava no paraná* do Urariá, estendendo-se até o rio Abacaxis, ao sul da ilha Tupinamba'rana. Aí começava o território dos inimigos, disputado pelos dois povos. Seus guerreiros viviam em alerta, a qualquer sinal de perigo saíam em defesa de seu território.
Cereçá-purãga era de uma beleza perfeita. Dava gosto vê-la andar, graciosa, pela aldeia. Todos os jovens maraguá ansiavam por namorá-la depois que ela saísse da Piãruka, a casa de reclusão onde seria preparada para a vida de mulher adulta. A fama de beleza tinha atravessado as fronteiras de seu povo, chegando ao conhecimento até de guerreiros e futuros chefes inimigos.
Entre os guerreiros maraguá, havia um que se destacava. Seu nome era Guiraeté e era tuxawaray, isto é, herdeiro do chefe. Seu pai era Guirapó, tuxa-wa-geral da nação Maraguá.
Depois de passar pelo ritual de sua primeira menstruação, Cereçá-purãga saiu da casa de reclusão e foi proclamada "mulher virgem". Então seu pai, o pajé Apinayé´ranga, atendendo ao pedido do tuxa-wa-geral, a fez tornar-se noiva de Guiraeté. O tuxawaray ficou radiante. Seus amigos o felicitavam, e os rapazes mais belos e sedutores o invejavam por ter se tornado noivo daquela moça tão linda e cobiçada.
No dia do noivado, o debukiry* de peixes e caças foi estendido nas mesas por todo o terreiro da tawa* principal. Além das pessoas da aldeia, muita gente veio de longe, de outras tawa*, para assistir ao ritual do noivado. Por isso ninguém reparou na presença de um rapaz estranho no meio da multidão.
Num momento de distração, a noiva olhou para aquele jovem e na mesma hora se apaixonou por ele. Apesar de seu noivo ser filho do chefe, um jovem poderoso com quem qualquer moça gostaria de se casar, Cereçá percebeu que o dono de seu coração era outro. Acontece que, além de ser um desconhecido, aquele rapaz era inimigo de seu povo. Mas isso Cereçá ainda não sabia.
Alguns dias depois, o desconhecido estava escondido na floresta para observar Cereçá. Quando ela passou para ir trabalhar na roça de sua mãe, ele a chamou. Çereçá aproveitou um momento em que as amigas que estavam com ela tinham se afastado e correu ao encontro do amado. Então, apesar do medo de ser descoberta, lançou-se em seus braços e o beijou apaixonadamente. Então lhe perguntou quem ele era e de que aldeia ele vinha. O rapaz não escondeu nada.
- Meus lindos olhos meigos, sou um Samurá. Mas, por piedade, não vá embora.
Cereçá-purãga soube então que tinha se apaixonado por Oderu-obóri, herdeiro do povo Munduruku, inimigo de seu povo. Assustada, a moça se soltou dos braços do rapaz e voltou correndo para perto das amigas que a esperavam. Ao vê-la tão perturbada, elas perguntaram o que tinha acontecido. Cereçá não dizia nada, só chorava muito, pedindo aos deuses que a levassem e protegessem seu povo daquela tragédia tão grande. Sentia que aquele amor era uma traição à sua gente, precisava esquecê-lo de todo jeito.
Um dia antes do casamento de Çereçá, Oderu-obóri a procurou e insistiu que ela fugisse com ele. Diante da recusa da moça, seu amado disse-lhe que, nesse caso, ele voltaria para o território de seu povo. Com medo de perdê-lo para sempre, Çereçá propôs:
- Fique escondido perto da aldeia. À tardinha vou dar um jeito de ir ao seu encontro. Meu corpo será seu e seremos felizes para sempre.
Mesmo sabendo que estava correndo perigo, o rapaz aceitou fazer a vontade de sua amada. Só que nem deu tempo para a moça se deitar com seu amado proibido. Naquele mesmo dia, Guiraeté e outros guerreiros maraguá, andando pelos arredores da aldeia, prenderam seis guerreiros inimigos, entre eles Oderu-obóri. Da maloca de seus pais, com os olhos cheios de lágrimas, Çereçá via o amado no pátio da aldeia, sendo interrogado pela multidão. Todos queriam saber o que ele fazia nas vizinhanças. Guiraeté fazia um discurso inflamado, acusando o inimigo de querer aprisionar algum maraguá ou roubar alguma virgem, talvez até sua própria noiva. Então Çereçá não aguentou. Não suportava ver seu grande amor ser insultado e maltratado. Saiu da maloca, foi até o meio da multidão e falou:
- Meu pai e senhor chefe dos grandes Maraguá, me perdoem. Fiz um mal terrível a meu povo, mas não me arrependo. Há algum tempo venho amando em silêncio O jovem guerreiro que vocês prenderam, filho do tuxawa* de nossos inimigos. Por amor de nossos antepassados, peço que me matem em seu lugar. Não sou digna de ser mulher de Guiraeté.
O povo inteiro se surpreendeu, mas Guiraeté fingiu não ter ouvido e ordenou que levassem sua noiva de volta para casa. Aquela noite, ao saber da prisão do filho de seu chefe, os Munduruku invadiram a aldeia inimiga para resgatá-lo. Foi uma guerra arrasadora, que provocou muitas mortes de ambos os lados. Muitos Munduruku eram mortos ao tentar chegar à maloca em que Oderu-obóri estava preso,vigiado por dois guardas.
A vitória dos Maraguá parecia próxima. Quando seu chefe, Guarapó, abriu os braços para comemorá-la, uma lança inimiga se cravou em seu peito e ele morreu. Ao saber da morte do pai, Guraeté deixou o campo de batalha e voltou para a aldeia, angustiado. Cereçá-purãga, então, temendo que o noivo matasse seu amado, saiu escondida e conseguiu entrar na maloca em que Oderu-obóri estava preso. Livrando-o das amarras, a moça entregou-se para ele, que lhe tirou a virgindade.
Quando Guiraeté chegou à porta, Çereçá correu para ele, dando tempo para que seu amado fugisse. Em seguida, ela pegou um punhal e se suicidou.
Oderu-obóri voltou para a aldeia dos Munduruku e nunca mais foi encontrado pelos Maraguá.
Na manhã seguinte, cada povo enterrou seus mortos. Entre os corpos estava o de Çereçá-purãga, "meus olhos bonitos", a moça que se entregou ao inimigo de seu povo e o livrou das mãos do noivo que ela nunca havia amado.
In: Yaguarê Yamã. Murũgawa: mitos, contos e fábulas do povo Maraguá. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
Glossário
A língua dos termos indígenas e regionalismos deste glossário foi estabelecida pelo autor. Algumas dessas palavras constam dos dicionários de língua portuguesa, às vezes, escritas de maneira diferente. Nesses casos, no final do verbete está indicada entre colchetes a grafia registrada dos dicionários.
debukiry - festa, banquete, reunião.
paraná - rio, braço de rio.
tawa - aldeia indígena [taba].
tuxawa - governante, líder mawé [tuxaua].
Sobre o autor
Yaguarê Yamã é natural da região do rio Paraná Urariá, Amazonas, e pertence aos povos Maraguá e Saterê-Mawé. É escritor, artista plástico, ilustrador, palestrante e professor.
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