Uma festa para os livros e para a leitura
literatura, formação leitora, feiras literárias, livros
O desafio foi colocado, eu não podia recuar. Afinal, nunca tinha deixado de escrever um texto. Meu lema ali naquele grupo sempre foi: “Tema dado é conto cumprido”. E vira e mexe vinham aqueles assuntos difíceis, contudo eu sempre tinha alguma inspiração e botava no papel. Mas dessa vez pegaram pesado demais, meu Cristo! Aprovaram o tema “espelho”. Na hora percebi que teria problemas. O que eu poderia escrever sobre esse assunto?
Nos primeiros três dias, fiquei caçando uma ideia em que pudesse investir. Como nada vinha, deixei a cabeça livre. Quem sabe se do nada não viria a bendita?
Não veio. Os dias foram se passando e o nosso encontro se aproximando. Resolvi então pedir ajuda. Perguntava a algumas pessoas:
– O que vem à sua cabeça quando eu digo a palavra “espelho”? Uma companheira de trabalho disse que essa palavra representa a verdade: “Aquela coisa de você olhar no espelho e ele te dizer tudo o que você é, sem falsidade, entende?”
Fiquei viajando nessa resposta e refleti sobre o nosso interior. Sim, porque o reflexo dessa verdade é somente externo, ele diz o que você é por fora. E por dentro?
Caramba! Fiquei todo contente por ter algo a escrever e não perdi tempo, fui transpirar na minha mesa de escrita. Iniciei o texto. Depois fiquei meia hora para dar continuidade ao primeiro parágrafo. Não saiu merda que prestasse para adubo. Odeio começar um texto sem saber como vai acabar, sem roteiro, sem um guia...
Então desencanei e investi na pergunta com outras pessoas: – E você, fulano, o que vem à sua cabeça quando eu falo a palavra “espelho”?
Não ouvi nada de original. Ou seja, não é que eu não tinha ideia e nem o que escrever, o tema é que é complexo demais para escrevê-lo assim, em menos de um mês. Se for para ser óbvio é melhor nem começar.
Lembrei-me daquele espelho no teto do motel, mas deixei de lado. O tema não era erotismo.
Fui até a internet para ver se achava algo e encontrei o seguinte sobre o processo de produção de um espelho:
“Os fabricantes usam três camadas. A principal é uma superfície de metal superpolida, que fica no meio do espelho. Por trás dela, existe uma camada escura. Na frente do metal fica uma camada de vidro, que dá solidez ao espelho e protege a película metálica contra riscos. O passo inicial é a limpeza e o polimento do vidro. Feito isso, é hora de aplicar uma camada de prata junto com um produto químico que a faz aderir completamente ao vidro. A terceira etapa é pulverizar uma camada de tinta preta atrás da superfície de prata. Depois, o artefato passa por uma estufa para secar a tinta. E o espelho já está pronto para você admirar sua beleza”.
É. Interessante! Mas e a porra da ideia, meu santo?
Um dia antes do encontro resolvi encarar o tema. Fui até o espelho do quarto, coloquei uma cadeira, me acomodei e encarei o safado com olhos de desafio.
Foram uns quinze minutos de provocações, perguntas e suplícios. Nada consegui arrancar.
Desisti!
De repente vi duas pequenas manchas no meu nariz, criadas ao longo dos anos de uso dos óculos. Fiquei surpreso com aquilo. Aí percebi que há tempos não me via decentemente no espelho. Então aproveitei o momento e cheguei bem perto para namorar meu rosto e contemplar as mudanças que o tempo causou.
Voltei à posição inicial. E fiquei ali, a me olhar no misterioso espelho, à procura de uma ideia.
In: Brechó, Meia-Noite e Fantasia. Editora Patuá, 1ª edição; 2016, pp. 21-24.
Sacolinha nasceu em 9 de agosto de 1983 na cidade de São Paulo e é formado em Letras pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC). É escritor, autor de romances, livros de contos e crônicas. Em sua trajetória já esteve em programas de televisão como “Programa do Jô” (TV Globo), “Provocações”, “Metrópolis” e “Manos e Minas” (TV Cultura). Ganhou vários prêmios por seus livros e seus projetos. Desenvolve ainda uma palestra por semana nas escolas públicas do estado de São Paulo. Atualmente realiza o projeto “Literatura e Paisagismo – Revitalizando a Quebrada” que tem por objetivo a intervenção em espaços públicos com literatura, grafite e o plantio de árvores.Site: https://escritorsacolinha.com/Instagram: @escritor.sacolinha
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ensino e aprendizagem de língua portuguesa, letramentos, BNCC, práticas de linguagem contemporâneas, multissemiose, multimodalidade