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biblioteca / relatos de leitura

Eu, a leitura e a escrita – relatos de Luciane Recieire e Alex Marcelo da Silva Araújo

Luciane Recieire e Alex Marcelo

07 de agosto de 2023

O curso on-line Caminhos da Escrita propõe aos professores que escrevam um relato contando um pouco sobre suas primeiras lembranças com a leitura e escrita, recuperando momentos, livros e experiências marcantes. Confira abaixo relatos de dois participantes do curso.

Em azul e branco

Luciane Recieire

Nasci na velha casa da única avenida da cidade, pequena e recém-debutada cidade. O nome, Poá. Pequena, nem 20 km² de cidade, Poá de pinta no mapa... um tecido pintalgado ao longo da RFFSA. Digo da casa, digo da cidade, digo da arquitetura sem estilo e de todas as coisas em volta, porque esses cacarecos foram livros imagéticos num tempo em que livros eram artigos de luxo e, adianto, o primeiro que caiu em minhas mãos já corria o tempo dos 10 anos.

Pois bem, a casa era velha. Não trazia na fronte nada que dissesse desde quando era casa. Dos seus olhos verdes, espiava a linha tronco que cortava todo arrabalde desde Mogi até São Paulo. Embaixo dos olhos da casa, a boca metálica da sapataria; em cima, o único quarto em que nasci pelas mãos da avó italiana, parteira curiosa que nunca perdera uma criança naquelas paradas. Digo da avó, boa, mas racista. A que me ensinou que em italiano não existe nh. De resto, as anotações a lápis do sapateiro espanhol que antes habitara o sobrado que o outro espanhol, Francisco Arias, o melhor adulto que conheci, alugava para as famílias dos operários. Do espanhol sapateiro digo dos falsos cognatos que me trouxeram as maiores dúvidas da infância. Do espanhol dono das casinhas, a generosidade de embrulhar sabões, sisal, pregos e percevejos nos melhores pedaços de jornal do armazém. Foi num pedaço de jornal que conheci Quintana, por exemplo, e também o Vinícius, o de Moraes e tantas outras gentes que me fizeram pensar além da tevê e tocar as palavras, às vezes pela metade.

Digo da padaria, o mesmo lugar em que minha avó me levou a pesar no dia em que nasci, como não sabia medir Apgar, a avó queria que fosse verídico o peso e a hora. Quando maiorzinha, era minha tarefa buscar o pão na padaria que cedeu sua Filizola para precisar meus parcos 2 quilos, foi ela que me deu o tino da leitura. Havia no teto o nome do dono - Pedro Zvidzaudstrat -, o belga ou Pedro “Careca”. O quê haveria ali escrito? O nome dele, mas aquela profusão de letras não me parecia um nome e foi na palma esquerda que escrevi todo aquele mundo em vermelho e o destrinchei pelos anos que me separavam da escola. Outras foram aparecendo pelas prateleiras da padaria e do armazém do Chicão, o espanhol Arias: groselha Milani, pinga Cavalinho, sabão Minerva, café Seleto, papel higiênico Guri…

O último lugar foi a escola: era branca, quadrada, moderna. Dobrando o isósceles do Jardim Dr. Vicente Guida, erguia o maior prédio da cidade depois do posto de saúde. Ambos assustadores!

Era 1975. O primeiro dia de aula, o primeiro ano da idade da razão. A diretora ajeitava a fila e gritava que ficássemos em posição de sentido no alçapão até que o professor viesse nos buscar. AL ÇA PÃO! A terrível engenhoca de prender para sempre os passarinhos. Foi nas dependências daquele prédio que chorei por três anos, porque a escola, diferente das palavras a lápis pelas paredes da casa alugada, da padaria com suas vogais vermelhas, dos tecos de jornal que Francisco Arias nos dava, era um lugar triste e comprido. Aprendia fácil as palavras, mas pouco ou nada falava, na hora de ler, ficava engrolada, sempre que podia, me sentava na fileira da janela para ver o lá fora e me esconder atrás da cortina. A senhora diretora tão imponente com seus cabelos de laquê, os vestidos de lamê e os óculos de tartaruga... que medo quando nos cobrava a leitura! Levava-nos à sua sala por um longo corredor da morte, das paredes, pendiam os generais protegidos por grossas molduras que pareciam bolachas de maisena... que medo, que fome. Errava os dígrafos, os acentos e ela olhava por cima dos óculos. A cartilha era “O Jardim Zoológico” e naquele tempo ainda tinha vontade de conhecer um jardim zoológico sem saber de toda maldade que há num lugar desse. O que salvava era a professora, minha doce professora Maria Cristina Lopes que, à época contava seus 18 anos (vim a saber desse detalhe faz pouco tempo). Era linda e tinha um namorado que ia buscá-la de Fusca. Eu lia Vol ks wa gen no capô sem saber que lia, mas a primeira palavra que li de verdade sabendo que lia foi táxi. Os adultos, boquiabertos, disseram que seria coisa grande na vida.

Que nada.

Ainda leio as placas e coleciono pedaços de palavras para - quem sabe? - fazer virar poesia.

 

Meu mundo “entrelinhas”

Alex Marcelo da Silva Araujo

Minha relação com a leitura – e quando falo em leitura, falo principalmente da leitura literária – sempre foi uma relação de troca. Isto é, a literatura sempre me emprestou experiências que eu ainda não tinha vivenciado ou que jamais poderia vivenciar. Consoante a isso, eu sempre me doei às páginas dos livros, às linhas de cada conto, cada crônica, e aos versos de cada poema, cada cordel.

Acredito que a leitura seja, inicialmente, um ato solitário, pois ela se constitui no encontro entre o “eu leitor” e o outro, ao passo que esse “outro” nada mais é que uma outra face de mim mesmo, a face imaginária, criativa, que transborda em palavras, linhas e versos para vivenciar histórias que não me pertencem no mundo fora dos livros, no mundo real. Desse modo, a leitura é, para mim, uma maneira de encarnar um personagem (ou diversos deles!) e viver suas histórias, seus dramas, suas aventuras; enfim, realizar imaginariamente coisas que na realidade social eu não poderia realizar. Depois, a leitura se torna um ato compartilhado. Tal ato se materializa na importância de compartilhar as leituras e experiências literárias para outros leitores, formando, assim, uma comunidade de leitores.

Lembro-me como se fosse hoje do primeiro livro que li: O monstro do seringal, de Rubem Rocha Filho. Ganhei este livro da minha professora quando eu tinha oito anos de idade. O que eu não imaginava é que a partir daquele momento minha história com a leitura se iniciaria de maneira tão profunda e arrebatadora. Logo embarquei no universo fantástico de Rubem Rocha Filho, com suas tramas envolventes de tirar o fôlego. Em seguida, vieram muitas outras histórias de muitos outros autores. Se eu fosse falar de todas elas, passaria meses escrevendo esse relato e não seria capaz de imaginar quantas páginas ele teria ao final.

Contudo, não posso deixar de lembrar aqui a narrativa sufocante e misteriosa de O desenho mudo, de Gustavo Bernardo; as aventuras de Miguel, Crânio, Calú, Chumbinho e Magri na série “Os Karas”, de Pedro Bandeira; a franqueza brutal e o humor cáustico de Rubem Fonseca em Bufo e Spallanzani; a busca da liberdade e do amor verdadeiro por Isaura em A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; as narrativas contadas aos olhos dos moradores do Vale do Paraíba em Cidades mortas, de Monteiro Lobato; o amor ingênuo e idealizado em A moreninha, de Macedo; a redenção pelo amor em Senhora, de Alencar; a perdição total em vista do amor supremo levado ao extremo em Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco; e tantas outras histórias que me encantaram e fazem parte do meu imaginário.

Em adição, minha relação com a escrita é ainda mais íntima. Desde criança escrevo histórias que pudessem me fazer viver justamente aquilo que apenas era possível por meio da leitura. A escrita, para mim, assim como a leitura, é um ato solitário e ao mesmo tempo compartilhado, coletivo, pois meus textos, histórias, contos, romances, constituem-se a partir do encontro dos diversos “eus” que existem em mim. Escrever é viver vidas diferentes da minha, é preencher páginas de histórias ainda não vividas, é banhar-me de prosa e poesia no oceano da imaginação.

Assim, escrevo não apenas pelo prazer de criar histórias, mas pela necessidade substancial de vivenciá-las em um mundo paralelo, num universo imaginário e todo meu. Já escrevi contos, poemas, crônicas, peças de teatro e até roteiro de filmes! Atualmente, tenho em minha companhia um romance em prosa moderna, o qual escrevo há algum tempo e cujas páginas são preenchidas pelas palavras sonhadas em minhas madrugadas de sonhos acordados. Desse modo, seja por meio da leitura, seja por meio da escrita, vou saboreando o poder de viver infinitas vidas, em infinitos lugares, nesse meu mundo “entrelinhas”. 

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