Saltar para o conteúdo Saltar para o menu Saltar para o rodapé

biblioteca / textos literários

Coletânea de textos do Caderno A Ocasião faz o Escritor: Do rock

Carlos Heitor Cony

04 de agosto de 2023


O texto abaixo é parte da coletânea de crônicas do caderno do professor
A Ocasião faz o Escritor, também disponível no formato virtual.


Do rock

Carlos Heitor Cony

Tocam a campainha e há um estrondo em meus ouvidos. A empregada estava de folga, o remédio era atender o mau-caráter que me batia à porta àquela hora da manhã. Vejo o camarada do bigodinho com o embrulho largo e enfeitado.

— É aqui que mora a senhorita Regina Celi?

Digo que não e fulmino o importuno com um olhar cheio de ódio e sono, mas antes de fechar a porta sinto alguma coisa de íntimo naquele “senhorita Regina Celi”, sim, há uma Regina Celi em minha casa, minha própria filha, mas apenas de 12 anos, uma guria bochechuda ainda, não merecia o título e a função de senhorita.

Chamo o homem que já estava no elevador. Eram CDs, a garota encomendara um mundão de CDs numa loja próxima, e pedira que mandassem as novidades, pois as novidades estavam ali, embrulhadinhas e com a nota fiscal bem às claras.

Gemo surdamente na hora de assinar o cheque e recebo o embrulho. A garota dormia impune, o mundo podia desabar, e ninguém a despertaria do sono 12 anos. Deixo o embrulho em cima do som e volto para a cama, forçar o sono e a tranquilidade interior, abalada pelo cheque tão matutino e fora de propósito. Quando ordeno os pensamentos e ambições no estreito espaço do meu pensamento e retomo um sono e um sonho sem cor nem gosto, começa o rock.

Anos atrás, seria começa o beguine. Mas o beguine passou de moda, e o swing, o mambo, o baião e outras pragas vindas de alheias e próprias pragas. Pois aí estava o rock, matinal, cor de sangue e metal inundando o dia e o quarto com sua voz rouca, seu compasso monótono e histérico.

Purgo honestamente meus pecados e lembro o pai, que me aturava a mania pelos sambas de Ary Barroso. O velho não dizia nada, mas me olhava fundo e talvez tivesse ganas de me esganar. Mas me aturava e aturava o meu Brasil brasileiro. Hoje, aturo o rock. Vou ao banheiro, lavo o rosto, visto um short e vou para a sala disposto a causar boa impressão à senhorita Regina Celi, que de babydoll, esbaforida, se degringola ao som de U2.

O tapete já fora arrastado e amarfanhado a um canto. Meu castiçal de prata foi profanado com a cara de um tipo até simpático que naquela manhã ganhará alguma coisa à custa do meu labor e cheque. A senhorita Regina Celi tem a cara afogueada, os pés e as pernas avançam e ficam no mesmo lugar, o corpo todo treme e sua, até que ela me estende o braço.

— Vem, papai!

O peso dos meus invernos e minhas banhas causa breve hesitação. Mas ali estamos, eu e a senhorita Regina Celi, uma menina que ainda pego no colo e aqueço com meu amor e o meu carinho, quando ela tem medo do mundo ou de não saber os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas na hora do exame. Ela me chama e me perdoa.

Então, aumento o volume do som, espero o tal do U2 dar um grito histérico e medonho — e esqueço o cheque, a vida e a faina humana rebolando este cansado corpo-pasto de espantos — até que o fôlego e o U2 acabem na manhã e no som.


Crônicas para se ler na escola.

Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

Acompanhe as novidades

Imagem de capa de Uma festa para os livros e para a leitura
educação e cultura

Uma festa para os livros e para a leitura

Feiras literárias valorizam a produção local e a diversidade de autorias, e promovem a leitura e a escrita, especialmente entre jovens.

formação leitora, livros, feiras literárias, literatura

Imagem de capa de Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
especiais

Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola

Confira materiais para auxiliar professoras(es) no planejamento de aulas contemplando os diversos e múltiplos letramentos.

letramentos, ensino e aprendizagem de língua portuguesa, multimodalidade, práticas de linguagem contemporâneas, multissemiose, BNCC

Imagem de capa de A hora e a vez das biografias
sobre o Programa

A hora e a vez das biografias

Conheça o novo Caderno Docente com atividades sobre o gênero biografia

Imagem de capa de O que cabe no poema?
especiais

O que cabe no poema?

Confira o especial que reúne conteúdos diversos como planos de aula, sequências didáticas, artigos e entrevistas sobre o gênero textual poema.

poesia, poema, formação leitora, produção de texto, planejamento docente, gênero textual, literatura

Comentários


Ninguém comentou ainda, seja o primeiro!

Ver mais comentários

Deixe uma resposta

Olá, visitante. Para fazer comentários e respondê-los você precisa estar autenticado.

Clique aqui para se identificar
inicio do rodapé
Fale conosco Acompanhe nas redes

Acompanhe nas redes

Parceiros

Coordenação técnica

Iniciativa

Parceiros

Coordenação técnica

Iniciativa


Objeto Rodapé

Programa Escrevendo o Futuro
Cenpec - Rua Artur de Azevedo, 289, Cerqueira César, São Paulo/SP, CEP 05.404-010.
Telefone: (11) 2132-9000

Termos de uso e política de privacidade
Objeto Rodapé

Programa Escrevendo o Futuro
Cenpec - Rua Artur de Azevedo, 289, Cerqueira César, São Paulo/SP, CEP 05.404-010.
Telefone: (11) 2132-9000