Saltar para o conteúdo Saltar para o menu Saltar para o rodapé

Catadores de tralhas e sonhos

Catadores de tralhas e sonhos

texto - Milton Hatoum; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Práticas de escrita: da cultura local à sala de aula

Explore a edição / Baixar PDF
In: O Estado de S. Paulo. Caderno 2, 27/3/2015.
Disponível em cultura.estadao.com.br/noticias/geral,catadores-de-tralhas-e-sonhos-imp-,1658853.

 

São centenas, talvez milhares os catadores de papel nessa megalópole. Puxam ou empurram carroças e catam objetos no lixo ou nas calçadas. É um museu de tralhas variadas: restos de materiais para  construção, papel, caixas de papelão, embalagens de inúmeros produtos, e até mesmo objetos decorativos, alguns belos e antigos, desprezados por algum herdeiro.

Há carroças exóticas, pintadas com desenhos de figuras pop, seres mitológicos, nuvens, pássaros e vampiros. Em Santana, vi uma carroça que lembrava um jinriquixá, só que maior do que o veículo asiático.

Era puxada por um velho e transportava uma avó e seu netinho, sentados em pilhas de papel. Perguntei ao carroceiro quanto ele cobrava pelo transporte de passageiros.

“Depende... Pra perto daqui, cinco reais. Pra fora do bairro, cobro 15 ou 12, depende do passageiro e do dia. Não gasto gasolina, nem nada, é só força mesmo, amigo.”

E haja força, leitor. Mas esse meio de transporte é raro na metrópole. Quase todas as carroças só carregam quinquilharias, uma e outra exibem aforismos, poemas, ditados. Vi carroças líricas, políticas, filosóficas, cômicas, moralistas, anarquistas. Numa delas se lia: “A verdade é uma desordem... Alguém tem dúvida?”.

Noutra, pintada de verde e amarelo: “Aqui só carrego bagunça, mas sou homem de paz”. A que mais me chamou atenção foi uma carroça linda, com uma pintura geométrica que lembra um quadro de Mondrian. Na lateral, estava escrito: “Carrego todo tipo de tralha, e carrego um sonho dentro de mim”.

Era uma carroça mineira, pois ostentava uma bandeira de Minas. Conversei um pouco com esse carroceiro de São João del-Rei. Acho que perdeu a desconfiança nas ruas paulistanas, pois não se esquivou de mim, e ainda me mostrou uma luminária de aço, fabricada em Manchester (1946). Esse objeto havia sido abandonado numa caixa de papelão e recolhido pelo caprichoso carroceiro de Minas.

Especulei a origem da luminária e me indaguei: quantas páginas esse belo objeto tinha iluminado em noites do pós-guerra?

Depois o carroceiro abriu uma caixa e me mostrou livros velhos, em língua alemã. Disse que tinha encontrado tudo numa mesma calçada do Jardim Europa, e agora ia vender os livros para um sebo. Ele me olhou e acrescentou:

“Ando solto, não gosto de ser botado preso dentro de curral. A gente encontra cada coisa por aí... Só não encontra o que a gente sonha”.

Comprei a luminária desse filósofo ambulante, mas não me interessei pelos livros, que talvez sejam relidos por algum germanófilo de São Paulo.

Sei que não é fácil encontrar um sonho nas ruas; mas encontrei carroceiros simpáticos e um assunto para escrever esta crônica.

 


Milton Hatoum (Manaus, AM, 1952). Romancista, contista, professor e tradutor. Viveu a infância e parte da juventude em Manaus. Mudou-se para Brasília e lá permaneceu até 1970, quando veio morar em São Paulo, onde cursou arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Foi professor universitário de história da arquitetura e de literatura francesa. Ministrou aulas de literatura brasileira, como professor visitante, na Universidade da Califórnia (Berkeley), onde também foi escritor residente.  Estreou na ficção com Relato de um certo Oriente, publicado em 1989 e vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance do ano. O segundo romance, Dois irmãos, de 2000, foi traduzido para oito idiomas e ganhou outro Jabuti. Com Cinzas do Norte, de 2005, Hatoum recebeu os prêmios Jabuti, Bravo, APCA e Portugal Telecom. Em 2008, publicou sua primeira novela, Órfãos do Eldorado, e em 2013 suas crônicas foram reunidas em Um solitário à espreita. Escreveu artigos e ensaios acerca de autores brasileiros e latino-americanos, em periódicos do Brasil e da Europa. Atualmente é colunista do jornal O Estado de S. Paulo e do site Terra Magazine.

Fonte: www.miltonhatoum.com.br/biografia/a-historia-do-autor.

 

Explore edições recentes

Edição nº41, Setembro 2024

"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"

Explore
Edição nº40, Agosto 2023

"Centenas de povos indígenas e suas línguas habitam, cultivam e preservam o território multicultural do nosso país."

Explore
Edição nº39, Novembro 2022

"Como repensar as questões étnico-raciais na educação"

Explore
Edição nº38, Abril 2022

"Palavra de educador(a): viver para contar e contar para viver. Experiências da 7ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa"

Explore

Comentários


Ninguém comentou ainda, seja o primeiro!

Ver mais comentários

Deixe uma resposta

Olá, visitante. Para fazer comentários e respondê-los você precisa estar autenticado.

Clique aqui para se identificar
inicio do rodapé
Fale conosco Acompanhe nas redes

Acompanhe nas redes

Parceiros

Coordenação técnica

Iniciativa

Parceiros

Coordenação técnica

Iniciativa


Objeto Rodapé

Programa Escrevendo o Futuro
Cenpec - Rua Artur de Azevedo, 289, Cerqueira César, São Paulo/SP, CEP 05.404-010.
Telefone: (11) 2132-9000

Termos de uso e política de privacidade
Objeto Rodapé

Programa Escrevendo o Futuro
Cenpec - Rua Artur de Azevedo, 289, Cerqueira César, São Paulo/SP, CEP 05.404-010.
Telefone: (11) 2132-9000