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Entrevista: Joaquim Dolz
Entrevista: Joaquim Dolz
De que adianta conhecer o código, se não entende o texto?
De que adianta conhecer o código, se não entende o texto?
Luiz Henrique Gurgel
01 de fevereiro de 2010
Mergulhar é preciso
De que adianta conhecer o código, se não entende o texto?
“Se a maneira de trabalhar a leitura ou a escrita não é coerente, pode-se alfabetizar um aluno sem que ele seja capaz de compreender o que está lendo – isso porque, neste caso, o objeto do ensino da leitura está limitado ao código e não à compreensão do texto.” Esse foi um dos principais alertas que Joaquim Dolz, professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra (Suíça), fez nesta entrevista para Na Ponta do Lápis. Dolz esteve no Brasil em agosto de 2009 para ministrar cursos e palestras em universidades e instituições brasileiras, entre as quais o Cenpec. É, na atualidade, um dos maiores especialistas no ensino de línguas com base em gêneros textuais. Falou de suas pesquisas e do trabalho com gêneros em sequências didáticas. Também relatou as impressões que teve ao vivenciar um típico dia de trabalho de um professor da periferia de São Paulo. Acompanhado do pesquisador Mauricio Érnica, pegou um trem metropolitano no centro de São Paulo e depois de quase uma hora desembarcou na estação de São Miguel Paulista, bairro do extremo leste da cidade. Foi conhecer uma escola pública localizada em região de muitas carências. Ficou impressionado com a dedicação da diretora e dos professores, apesar do barulho das salas de aula, do número de alunos e da carga horária a que os professores se submetem. Uma nova experiência para esse pesquisador que nasceu na pequena cidade de Morella, região da Catalunha, na Espanha.
Quando escolhemos o gênero como unidade de ensino, o que podemos ensinar aos alunos?
Joaquim Dolz – É preciso clarear os currículos. Os gêneros, quando entram na escola, trazem elementos das práticas sociais de referência, mas tornam-se objetos para aprender e escrever. É fundamental definir as capacidades linguísticas discursivas que se pretende desenvolver com os gêneros. Sou partidário de trazer para a sala de aula a diversidade e até trabalhar com gêneros considerados pouco elegantes, mas sempre com olhos postos sobre o desenrolar da linguagem e da língua portuguesa. Antigamente tínhamos um livro com cartas de correspondência e copiávamos as cartas. Era dessa forma que se ensinava. Hoje, se você tem uma visão interacionista, um conhecimento mais consistente do gênero, pode trabalhar melhor a partir da troca de correspondência, por exemplo. Se você escreve uma carta-convite e recebe as respostas dos convidados, ou se você escreve uma carta de opinião em resposta a um editorial de jornal, o uso da escrita é outra coisa. Para trabalhar dessa maneira o professor precisa ter formação, conhecer as convenções e as características dos gêneros e subgêneros da correspondência, todo tipo de variações e formulações em português, desde que fiquem claras quais são as prioridades. Não vou dizer quais sequências didáticas devem ser desenvolvidas, mas já vi atividades que eram animações socioculturais para divertir e animar a classe. É preciso ter cuidado porque uma das possíveis derivações do trabalho de sequências didáticas com os gêneros é fazer uma pedagogia superficial: apresentar situações de comunicação sem focalizar as capacidades linguísticas, linguístico-discursivas e as necessidades dos alunos, que precisam aprender a escrever em português textos importantes para a vida.
Os professores sabem quais os gêneros que a escola deve trabalhar?
Joaquim Dolz – No Brasil o período que os alunos passam na escola é curto, por isso precisa ser bem aproveitado. Não podemos perder tempo com textos que os alunos aprendem sozinhos – oralmente ou na escrita, como o diálogo escrito numa sala de bate-papos na internet, por exemplo. Agora, se vamos fazer um projeto de troca de correspondência entre argentinos, espanhóis, portugueses e brasileiros por e-mail, é outra coisa. Inspira os alunos a escrever: aprender a se apresentar numa carta enviada por e-mail; apresentar o bairro, a cidade, o país em que vive. Escrever primeiro na própria língua – português para os brasileiros; espanhol para os argentinos e espanhóis. E, numa segunda fase, escrever uma parte da carta na língua do outro. Essa é uma forma de introduzir o gênero e-mail na escola a partir de finalidades educativas específicas, e pensando numa progressão. O trabalho deve permitir o desenvolvimento das capacidades discursivas com uma visão geral do desenvolvimento da linguagem, caso contrário você está limitando a teoria dos gêneros textuais.
O senhor visitou uma escola pública brasileira. Qual foi sua impressão?
Joaquim Dolz – Visitei apenas uma escola. É ainda uma representação provavelmente ingênua e incompleta, mas gostei muito. O que mais me impressionou foi a direção, a organização da escola e sua relação com a comunidade. Situada num território muito difícil, do ponto de vista sociológico – havia pais de alunos na prisão, mães que vendiam drogas, diferentes gangues –, a escola estava no meio. Dentro da escola todos os meninos estavam protegidos, eram iguais. Valia a lei da escola, e não a da selva. A comunidade tinha um respeito muito grande pelos professores e particularmente pela diretora. Não conheço suficientemente os estabelecimentos escolares, o professorado, os alunos, a realidade brasileira, mas vejo duas realidades no país: uma, mais desenvolvida, como a Europa, e outra, como próxima dos países pobres em vias de desenvolvimento. Podemos encontrar meninos que aprendem inglês ou francês com professores particulares ou em centros escolares de grande qualidade, tendo um suporte muito grande da família e da sociedade, e ver meninos na rua, que não vão à escola, com problemas de letramento importantes. As duas realidades são encontradas no Brasil.
E o trabalho do professor?
Joaquim Dolz – Para ter boas condições de trabalho, por cada três ou quatro horas de presença com os alunos, você necessita de uma ou duas horas de planejamento. Preocupa-me um pouco o cansaço dos professores porque trabalhar com muitos meninos na classe e muitas horas deve ser duro. E, se você tem 35 alunos, treze ou catorze horas a cada dia, é muito difícil preparar antes, está sempre improvisando. É verdade que um professor com muita experiência não precisa planejar as aulas no mesmo nível, mas se tem 35 alunos com problemas muito diferentes – de expressão e adaptação – precisa de tempo. A avaliação das capacidades e dos obstáculos dos alunos e a preparação de projetos de letramento motivadores são muito importantes e não podem ser improvisados. Ao propor inovações da prática habitual, o professor pode sentir-se inseguro, necessitando de tempo para se apropriar das novidades e para se coordenar com a equipe docente. A formação do professor precisa ser reconhecida como tempo de trabalho. Digo isso por um respeito enorme, uma verdadeira admiração pelo trabalho dos professores.
É verdade que o senhor ficou impressionado com o barulho na escola? Faz parte do papel do professor ensinar o aluno a ouvir e trabalhar em silêncio?
Joaquim Dolz – É verdade. O nível de barulho era bastante elevado e chamou a atenção. Isso não é uma crítica, foi uma constatação ao visitar uma escola. Por um lado, o barulho era movimento, fruto do entusiasmo dos meninos pela aula, pois todos queriam responder as questões ao mesmo tempo. Mas o trabalho escolar exige condições, tranquilidade. Suponho que o controle do volume, a escuta, os rituais de respeito à palavra do outro são aprendizagens de linguagem. Se todo mundo fala ao mesmo tempo é impossível ensinar e aprender.
Como vê a sequência didática de leitura?
Joaquim Dolz – As entradas para o aprendizado podem ser diversas e o conceito de sequência didática pode aplicar-se à leitura, mas não é a única possibilidade de trabalho. No caso da sequência sobre a leitura, é essencial a análise dos obstáculos para a compreensão dos alunos. É obrigação da escola ensinar a ler e escrever, habilidades indispensáveis ao cidadão. A produção de textos convoca sempre à leitura, de uma maneira ou de outra, porque quando você escreve, você lê, mas as finalidades são diferentes, o tipo de trabalho também. A novela policial é um gênero interessantíssimo para a leitura. Você pode desenvolver várias estratégias quando trabalha a leitura continuada de uma novela policial. O escritor, quando escreve a novela policial, situa-se em uma posição enunciativa particular, pois tem que enganar o leitor. É preciso uma leitura atenta de indícios para levantar hipóteses e resolver o enigma. Se você lê as cinco primeiras páginas e descobre quem é o culpado, perde o interesse. Do ponto de vista narrativo, é uma ruptura cultural porque o crime, o resultado, aparece sempre no começo e o leitor, etapa por etapa, tem que reconstruir como aconteceu o crime. Do ponto de vista linguístico, sabemos quais são – para alguns – as dificuldades para compreender a leitura desse gênero: compreender as informações, identificar os indícios, interpretar algumas unidades linguísticas. Podemos desenvolver interpretação, criação de hipóteses, operações de relação, pois essas informações estão evidentes no texto. Já pela perspectiva da escrita o foco do trabalho é a estrutura narrativa, são os personagens e os aspectos associados ao gênero, de maneira geral.
E a sequência didática em outras disciplinas?
Joaquim Dolz – Nem sempre a seqüência didática sobre a língua pode ser utilizada diretamente em outras disciplinas. Você pode organizar uma sequência didática em matemática para trabalhar a resolução de problemas envolvendo leitura e compreensão de texto. Em matemática é importante a compreensão das consignas, da explicação, da demonstração de um problema. São gêneros; a demonstração é um gênero, uma consigna um gênero descritivo. O trabalho com os professores de matemática deveria permitir aprender a formular e compreender as consignas do ponto de vista linguístico, para que os problemas possam ser resolvidos corretamente. Isso é um problema de colaboração entre os professores de matemática e os professores de línguas. A disciplinarização dos saberes foi um progresso, primeiro para a ciência e depois para a escola. Há saberes de biologia, saberes de história, saberes linguísticos, e o currículo deve ter uma visão dos saberes que ensina. A interdisciplinaridade pode ser muito interessante, mas é fundamental ter muito claro os objetivos da história, da biologia, da língua. Quando você desenvolve uma sequência em matemática, biologia ou história, também trabalha a língua e o gênero como ferramentas. É importante que os professores de outras disciplinas saibam que os problemas de compreensão e de produção de textos estejam ligados às habilidades provenientes da língua portuguesa.
A Olimpíada de Língua Portuguesa pode ser um caminho para melhorar a formação dos professores?
Joaquim Dolz – Tenho informação de que a Olimpíada é muito bem recebida pelos professores e pelos alunos e o entusiasmo pelo concurso é grande. Se compreendi bem, a proposta tem fundamentalmente três objetivos. Primeiro, possibilita a divulgação de materiais didáticos – ferramentas fundamentais para professores de todo o país. Em segundo lugar, é voltada para os alunos, permitindo o desenvolvimento da escrita de gêneros textuais (poemas, memórias literárias, crônicas e artigos de opinião). E, em terceiro, forma os professores para melhorar o ensino da escrita. Minha visão do projeto é muito positiva: a maneira de envolver as escolas, a proposta de um trabalho coletivo com os professores e a ideia de levar aos diferentes centros escolares uma cultura comum sobre o ensino da escrita, isso me agrada muito.
Temos o desafio de contribuir para a formação a distância dos quase 200 mil professores engajados na Olimpíada por meio de materiais de apoio. Como aprimorar os materiais de formação?
Joaquim Dolz – Vivo a mesma situação. Cada vez que escrevo para professores, me pergunto qual é a melhor maneira de dizer e como vai ser recebido. É preciso fazer um trabalho para melhorar a escrita, ouvir os especialistas que analisam a linguagem dos professores e dos formadores, verificando qual é a forma mais adequada de escrever. Porque eu, quando sou professor, tenho dificuldade para ver a minha atividade, mas se o pesquisador analisa minha prática, posso tomar distância e enxergá-la de maneira crítica, tomar consciência dos entraves.
Em recentes palestras e cursos, o senhor falou sobre validação didática. Explique-nos o que é e como se dá a validação didática.
Joaquim Dolz – Primeiro, a validação didática pretende analisar o progresso, o aprendizado dos alunos. Depois de uma seqüência didática é necessário verificar o quanto o menino progrediu na escrita. Segundo, é importante verificar a legitimidade e a coerência dos objetos de ensino do ponto de vista da transposição didática. As características do gênero escolhido são pertinentes para o ensino da leitura ou da escrita? A didatização é adequada em função do grupo de alunos? Terceiro, a validação didática examina também as possibilidades de os professores implementarem as atividades propostas nas suas condições de trabalho. A validação das ferramentas de trabalho que elaboramos tem que encontrar um equilíbrio para esses três aspectos. Se a maneira de trabalhar a leitura ou a escrita não é coerente, pode-se alfabetizar um aluno sem que ele seja capaz de compreender o que está lendo – isso porque, neste caso, o objeto do ensino da leitura está limitado ao código e não à compreensão do texto. Se, depois de quatro ou cinco anos de trabalho, 125 alunos dos 700 matriculados numa escola não aprenderam a ler, isso é um indicador problemático da proposta de letramento. A primeira coisa a fazer, então, é o diagnóstico da situação das escolas, a análise das necessidades dos meninos e professores. Podemos identificar as capacidades iniciais dos alunos para, então, adaptar o trabalho às suas reais necessidades. Em seguida, definir os objetos prioritários para desenvolver a escrita, a leitura, a oralidade, a tomada de palavra para defender-se na vida – um projeto para dignificar a cidadania brasileira.
Atualmente, qual o foco de suas pesquisas?
Joaquim Dolz – Sou um pesquisador um pouco disperso, atuando em várias frentes, algumas pouco conhecidas na Suíça. Neste momento estou com um projeto sobre o ensino bilíngue no País Basco, na Espanha, onde há uma língua que se chama euskera, que é muito diferente do espanhol. Vamos estudar o efeito do ensino de sequência didática para alunos bilíngues em espanhol e em euskera, um projeto que ganhou prêmio de pesquisa. O segundo projeto, muito simples, mas que é um prazer para mim, aborda a utilização de seqüências didáticas com alunos que têm dificuldades de aprendizagem. O terceiro projeto é sobre práticas de formação dos professores na escrita, vou analisar as práticas das diferentes instituições da Suíça francesa: como os professores ensinam a escrita e como os estudantes, futuros professores, realizam as práticas da escrita no curso de sua formação. E a quarta pesquisa, que estou terminando com Bernard Schneuwly, é sobre o estudo dos objetos ensinados nas práticas de aula. São quatro frentes e muito trabalho.
Fale de sua pesquisa sobre o gesto cotidiano do professor na sala de aula. Joaquim Dolz – Essa pesquisa, em colaboração com o professor Bernard Schneuwly, foi realizada com professores do secundário para saber como eles ensinam a gramática. Escolhemos unicamente uma estrutura gramatical, a subordinada relativa e o texto de opinião. Uma de nossas preocupações era identificar os gestos profissionais dos professores quando ensinam o discurso com a gramática. Começamos a entrar nas classes para observar o trabalho que realizam cotidianamente. Alguns gestos são de regulação das interações, trocas com os alunos. Outros são para identificar as dificuldades deles. Outros ainda são gestos para conseguir memorizar, colocar o novo em relação ao antigo, ao trabalho que fizeram no passado. Poderíamos falar também de outros gestos para compreender melhor a atividade docente. Este é um tema novo de pesquisa. No Brasil, Anna Rachel Machado e outros autores também analisam a atividade do professor, observando algumas das suas características. Ainda é cedo para avaliar nossas observações sobre a formação. Os estudiosos de ergonomia trabalham muito comparando práticas e atividades de diferentes professores. Existem pesquisas sobre a formação geral, mas sobre a leitura ou a escrita as pesquisas ainda são emergentes.
Qual o seu contato com os pesquisadores brasileiros?
Joaquim Dolz – Há um tempo fui convidado para dar um curso na PUC-SP e assim fiz meu primeiro contato com as duas pioneiras – Roxane Rojo e Anna Rachel Machado – e com a realidade brasileira. Depois comecei a descobrir outros trabalhos muito diversos graças à presença de muitos pós-doutorados e doutorados que trabalhavam conosco em Genebra. Isso permitiu conhecer – parcialmente – a realidade educativa do Brasil. Também criei uma relação com as professoras Elvira Lopes Nascimento e Vera Cristovão, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná. Tenho um interesse muito grande pelo país emergente e de potencialidades.
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