Uma festa para os livros e para a leitura
livros, formação leitora, literatura, feiras literárias
Fernanda Sousa é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP), professora de língua portuguesa e revisora de textos. E-mail para contato: fernandasilva.esousa@gmail.com.
A escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) tem, desde o seu centenário, em 2014, ganhado cada vez mais relevância nacional. De homenagens, pesquisas acadêmicas, novas edições de suas obras à inclusão na lista de livros obrigatórios do vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ao título de Doutora Honoris pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2020, Carolina está, enfim, obtendo o reconhecimento como escritora que tanto almejou em vida. Entretanto, apesar de ter várias publicações, como Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961), Pedaços da Fome (1963), Provérbios (1963), Diário de Bitita (1986) e escrito romances, peças, poesias, Carolina ainda é muito conhecida somente pela sua obra de maior sucesso, Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado em 1960.
Disponível em muitas escolas em todo o país, pois é parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) de 2018, Quarto de despejo é, na maioria das vezes, a porta de entrada para muitos professores e alunos no que diz respeito à vida e à obra de Carolina Maria de Jesus. Nesse sentido, proponho neste breve texto algumas reflexões que visam alertar para armadilhas marcadas por simplificações de sua vida e estereótipos racistas e, ao mesmo tempo, apresentar algumas possibilidades pedagógicas que contornem essas emboscadas em relação a Quarto de Despejo.
Primeiramente, em termos biográficos, é importante considerar a trajetória de Carolina Maria de Jesus em seu todo: nascida em Sacramento em 1914 – duas décadas e meia após a abolição da escravidão –, cidade rural do interior de Minas Gerais, onde conseguiu aprender a ler e a escrever, Carolina migrou para São Paulo em 1937 e morou, junto com seus três filhos, João José, José Carlos e Vera Eunice na favela do Canindé, às margens do Rio Tietê, entre 1947 e agosto de 1960, período em que trabalhou como catadora de papel. Após o êxito de Quarto de despejo, Carolina mudou-se para Osasco e, depois, para o bairro de Santana, onde viveu até 1969, quando passou a residir em um sítio em Parelheiros, extremo sul da cidade de São Paulo, local onde faleceu em 1977.
Mais do que esmiuçar dados de sua vida apartados de sua obra, essas informações permitem evitar uma armadilha comum: a favela como dimensão totalizante da experiência de Carolina. Se em seus 64 anos de vida Carolina morou apenas por quase 14 na favela do Canindé, pode ela ser descrita como escritora “favelada”? Será a favela o único espaço que informa sua escrita? E seus trânsitos pela cidade de São Paulo? E sua experiência como menina e jovem negra no interior de Minas Gerais? Como os outros lugares que viveu influenciaram sua escrita após o sucesso de Quarto de Despejo? Será que ela escreveu outros livros? Quais? Essas são perguntas que podem ser feitas aos alunos, orientando-os a imaginarem e, depois, a buscarem respostas para essas questões, possibilitando um conhecimento mais amplo sobre Carolina.
À luz disso, é possível suscitar uma reflexão sobre onde se encontra mais uma armadilha quanto ao primeiro livro de Carolina Maria de Jesus: o título. Editado pelo jornalista Audálio Dantas, seu diário foi publicado sob o título Quarto de despejo: diário de uma favelada. Há, então, a circunscrição de um gênero autobiográfico, como o diário, a um espaço metaforizado pela autora – a favela – como quarto de despejo e, ao mesmo tempo, de sua autoria a um lugar social determinado, o de “favelada”, como se seu discurso fosse representativo da imagem construída do “favelado”. Tanto o título quanto o subtítulo operam, desse modo, um deslocamento simbólico, em que o espaço parece se sobrepor ao sujeito, como se o diário de uma favelada fosse um diário sobre o quarto de despejo, isto é, sobre a favela, confinando a obra a uma referência ao real, especialmente a “problemas sociais”, que obscurece o caráter intimista do gênero, atrelado, no caso, à subjetividade de Carolina.
Por isso, é possível interrogar os alunos: o que move a escrita de um diário? O que eles imaginam encontrar quando leem um diário? Se eles já escreveram ou escrevem diários, sobre o que eles escreviam ou escrevem? A partir das respostas, outro questionamento pode ser lançado: por que diário de uma favelada e não diário de Carolina Maria de Jesus? O diário não está relacionado à produção de uma narrativa de si, escrita por alguém com nome e sobrenome? Nesse sentido, um exercício pode ser feito, fazendo um quadro na lousa para anotar as respostas: que expectativas de leitura temos quando tomamos Quarto de despejo como diário de uma favelada e quando tomamos o livro como diário de Carolina Maria de Jesus? Paralelamente, considerando a força cada vez maior das imagens no mundo de hoje, é interessante exibir para os alunos as três capas das três edições existentes da obra até hoje, estimulando uma reflexão sobre como as capas materializam ou não sentidos suscitados pelo título do livro:
A capa da edição de 2004, em que Carolina aparece, junto aos seus três filhos, com uma roupa velha e suja e uma postura resignada, alimenta uma outra armadilha: a fixação de uma imagem de miserabilidade e resignação em torno das mulheres negras. Apesar de Carolina escrever em diferentes momentos do diário que não gosta de andar suja e que “gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido” (JESUS, 2004, p. 28), além de sobre sua luta diária pela sobrevivência e de sua revolta diante das condições de vida, a capa produz uma imagem que não é coerente com o modo como Carolina se vê e age, mas que é coerente com um imaginário racista, que projeta mulheres negras em posição de precariedade absoluta e passividade.
Assim, juntamente com o título, as capas também podem contribuir para o esvaziamento de outras dimensões da vida de Carolina que aparecem no diário, para além da fome e da pobreza, seja por meio de um desenho que fixa uma condição miserável, seja por meio de desenhos supostamente neutros do espaço da favela. Em razão disso, uma atividade em parceria com o professor ou professora de artes seria bem-vinda após a leitura do livro: a criação em grupo de outras capas e títulos para o Quarto de despejo: diário de uma favelada, que poderia culminar, por exemplo, em uma exposição na escola.
Ao evitar essas armadilhas no início do trabalho com o livro em sala de aula, abre-se espaço para uma Carolina Maria de Jesus que excede adjetivações como “favelada” – importa destacar que, à época, ainda não havia movimentos ancorados em uma afirmação política e cultural de sujeitos que moram nas favelas, de modo que não havia nenhuma carga afirmativa nessa palavra –, “catadora de papel” e/ou “semianalfabeta”. O seu próprio ato de escrita de um diário se configura como uma recusa do lugar de favelada, isto é, o de “projeto de gente humana” (p. 14), do trabalho como definição de sua existência e da baixa instrução formal como interdito à escrita literária.
Promover a leitura de Quarto de despejo em sala de aula como diário de Carolina de Maria de Jesus e não como diário de uma favelada nos permite, então, enxergar muito mais “uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro” (p. 44) e não apenas a mulher que se sente “um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” (p. 33). Afinal, nesse quarto de despejo Carolina também cria um “ambiente de fantasia” e imagina que reside “num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol”, pois “é preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela”.
Nesse sentido, entre tantas adjetivações que a marcam, penso que uma palavra deve sempre guiar qualquer proposta pedagógica que envolva sua obra, sobretudo Quarto de Despejo: a escritora Carolina Maria de Jesus.
Referências das três edições:
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 2004.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2004.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2019.
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