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A literatura, os jovens e a escola: caminhos para a leitura literária e a formação de leitores

A literatura, os jovens e a escola: caminhos para a leitura literária e a formação de leitores

texto - Esdras Soares e Lara Rocha; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Saberes e práticas em tempos de mudança

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Há algum tempo, discute-se a noção de que estamos vivendo uma espécie de crise no ensino de literatura, potencializada pelo avanço tecnológico e por rápidas mudanças no mundo contemporâneo. No Brasil, a situação se agrava devido ao baixo letramento da população e a um projeto educacional tecnicista, implementado nas últimas décadas pelas classes dominantes, que visava formar mão de obra para prosseguir com a industrialização acelerada que o país necessitava, levando essa crise a patamares mais altos.

Embora nos últimos anos tenha se avançado bastante na questão da presença da literatura na escola, ela ainda é um grande desafio para os professores e, é claro, para os estudantes. Talvez as primeiras perguntas sejam o que significa ensinar literatura e como se pode ensinar literatura.

Responder a essas questões não é tarefa fácil, uma vez que as adversidades são muitas e de toda ordem: concepções retrógradas sobre a literatura, desinteresse por parte dos estudantes, falta de tempo dos próprios professores para dedicar-se à leitura literária, infraestrutura precária, falta de acesso aos livros, indisciplina e um universo de problemas sociais. Soma-se a isso uma formação inicial frágil, que não nos prepara para as especificidades que são próprias do texto literário e da realidade escolar.

Este artigo busca colocar essas questões em perspectiva – que de maneira mais abrangente também podem ser entendidas como elementos da crise mencionada acima –, traçar um percurso histórico da interface entre literatura e educação, problematizar a maneira que a literatura aparece nas aulas – quando aparece! – e compartilhar possíveis caminhos.

A literatura como ferramenta, ontem e hoje

Em seu texto “Literatura, escola e leitura”, Regina Zilberman (2008) propõe uma visita ao percurso histórico da interface entre literatura e educação. A autora retorna à Antiguidade e reflete sobre a Educação Moral e Social promovida pelas tragédias gregas e epopeias; à Idade Média, período no qual a literatura era entendida como parte da Gramática, Retórica e Lógica; e ao Renascimento, em que a literatura era utilizada para o ensino do Grego e do Latim.

Entre os séculos XVII e XVIII, surge o modelo moderno de escola e a educação se torna obrigatória e responsabilidade dessa instituição. Nesse momento, a literatura segue com propensão educativa, mas de outra natureza, deixando de ter finalidade ética para privilegiar um caráter linguístico. Em um contexto de consolidação dos Estados Nacionais – isto é, a centralização do poder político e econômico –, o estudo da literatura nacional passa a compor as propostas pedagógicas da escola, como maneira de dar força à língua estabelecida como nacional e às ideologias dominantes.

Desde então, o ensino da literatura move-se entre dois objetivos: ajuda a conhecer a norma linguística nacional, de que é simultaneamente a expressão mais credenciada; e, arranjada segundo um eixo cronológico, responde por uma história que coincide com a história da região de quem toma o nome e cuja existência acaba por comprovar. (Zilberman, 2008, p. 49.)

Contemporaneamente, parece-nos que a escola não passou incólume por esse processo. No contexto brasileiro, até a década de 1970, a literatura era entendida como um meio de transmitir a norma culta e incutir valores morais. A partir dessa década, com a entrada da literatura no então 2º- grau, é adotada uma abordagem cronológica e historiográfica, com foco em características de uma época, e a literatura também passa a ser utilizada para o ensino da língua.

Dessa forma, não é exagero dizer que, em contextos escolares, tradicionalmente, a literatura tem funcionado como uma espécie de ferramenta ou apoio (Todorov, 2010), que auxilia no ensino da língua e difunde a história do país e do mundo¹. Além disso, observa-se uma abordagem calcada na historiografia literária, que busca estabelecer uma série de autores e escolas literárias, com suas características próprias e engessadas.

Tudo isso nos leva à constatação de que as aulas hoje abordam diversas coisas, mas literatura não é uma delas. Por mais que essa maneira de ensinar pareça um porto seguro – e é frequentemente apregoada por algumas universidades e livros didáticos – acreditamos que se trata, na verdade, de uma armadilha, que pode afastar cada vez mais crianças e jovens de um direito fundamental: o direito à literatura (Candido, 2011).

Rumos da literatura em sala de aula

Quem de nós, em nossas aulas, nunca se pegou usando um trecho de um conto para ensinar um pronome? Ou um poema para ensinar rima aos pequenos? Ou nas aulas com o Ensino Médio, repassando exaustivamente as características das tais escolas literárias (“– O Barroco é rebuscado, exagerado, mostra o dualismo e as contradições dos seres humanos…”, “– O Realismo valoriza a objetividade, faz uma crítica à hipocrisia da sociedade…”)? Ou repetindo categorias, constantemente esvaziadas, como narrador, tempo e espaço?

Com relação ao Ensino Médio, sabemos que em muitos casos essa abordagem ocorre em função dos exames vestibulares, que tradicionalmente exigem essa forma de entendimento do fenômeno literário. Além disso, estamos acostumados a trabalhar o texto de maneira técnica, afinal nossa formação como professores foi realizada dessa maneira. Somado a isso, um esquema mais rígido de sala de aula – fileiras, texto na lousa e prova de verificação de leitura – oferece para as aulas de literatura certa “seriedade”, o que se torna uma preocupação pela forma com que elas frequentemente são entendidas por estudantes e colegas. Assim, somos engolidos por tantas questões que às vezes até deixamos de levar o texto literário para a sala, restringindo a aula apenas à análise de dados.

E, então, da maneira como estamos fazendo, deixamos nossa turma com vontade de conhecer mais aquele texto? Ficam interessados? Se estudos, pesquisas, relatos de estudantes e nossa própria experiência mostram que isso não funciona bem, de que outra maneira isso poderia ser feito? Quais são os outros caminhos?

Viabilizar e vivenciar experiências significativas com a literatura

Antes, pontuamos algumas críticas em relação a uma abordagem historiográfica e técnica da literatura. Isso não significa, contudo, que se deve desconsiderar o contexto histórico em que determinado texto foi produzido; também não quer dizer que se deva deixar de estudar os aspectos formais de um texto. Afinal são dados e informações extremamente relevantes para a compreensão dos autores de uma época e do próprio texto literário em si. Mas trata-se de enriquecer o entendimento de um texto com nossas experiências contemporâneas.

A leitura de obras de outras épocas pode encontrar bastante resistência, por parte dos estudantes e até de nós mesmos. É possível que textos de tantos séculos dialoguem com essa geração? E por que não colocar essas temporalidades e temas em diálogo? O que Machado de Assis e Racionais MC’s têm em comum? Como aproximar Maria Firmina e Conceição Evaristo? Essas e várias outras perguntas podem nos auxiliar a dar conta do seguinte desafio: “É fundamental que professores e alunos possam atualizar os sentidos de diferentes produções literárias e responder a seguinte questão: afinal, o que esse(s) texto(s) me diz(em) hoje?” (Martin, 2016, p. 127).

O que se propõe aqui é enxergar o texto literário como obra de arte e viabilizar situações em que os estudantes se envolvam com a literatura. Que eles possam se apaixonar pelo texto, bem como criticar, odiar e questionar, afinal envolver-se é diferente de simplesmente gostar de tudo que lhes é apresentado. Em muitos casos, as práticas de leitura que ocorrem na escola oferecem poucas possibilidades de expressão da subjetividade dos estudantes, que geralmente são obrigados a concordar com uma análise e interpretação que já vêm acompanhadas do oferecimento do texto.

Pesquisas acadêmicas das últimas décadas e documentos educacionais oficiais, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), estabelecem as noções de “leitura literária” e “formação de leitores”, ao invés do conceito de “ensino de literatura”. Isso porque “ensino” pressupõe um professor, uma figura de autoridade que pode transmitir um “saber correto” sobre a literatura, enquanto os outros termos supõem um leitor, um sujeito, que participa ativamente do ato da leitura e da construção de sentidos. Essa mudança evidencia a ironia de que há muito tempo existe uma exclusão do leitor nas práticas educacionais e é necessário transformar essa realidade.

Podemos supor que um foco maior nos aspectos subjetivos impossibilita um estudo mais atento da obra. Entretanto, se o nosso objetivo é a formação de leitores, devemos aproveitar a potência que o texto literário tem de dialogar com cada um. A leitura não é somente uma atividade cognitiva e “o processo de elaboração semântica enraíza-se na experiência do sujeito” (Rouxel, 2012, p. 278). Então, parece-nos que uma abordagem distanciada do texto literário impede que leituras bastante singulares aflorem. E por que não trazer essa singularidade para a sala de aula? Por que não fazer disso o tema das conversas?

Bem, mas é possível concretizar essas propostas? É possível aprender (e ler!) literatura sem uma prova de verificação de leitura? E como fazer os estudantes ficarem à vontade para falar do texto? Muitos nem sequer prestam atenção nas aulas, como estimular a participação sobre temas que podem ser tão subjetivos?

Este artigo não ambiciona ser uma fórmula pronta, mas uma conversa aberta e franca. Assim como vocês, diariamente enfrentamos os desafios da sala de aula e às vezes acertamos, às vezes não. O que propomos aqui é nos permitir criar novos olhares e novas dinâmicas para viabilizar a leitura literária e a formação de leitores.

Comunidade de leitores como estratégia

Se estamos nos propondo a encarar de outra maneira as aulas, precisamos entender a participação dos estudantes de outro modo também. A professora e escritora norte-americana bell hooks² (2013) nomeia de “Comunidade de aprendizado” o espaço seguro e acolhedor, em que a presença de estudantes e educadores é valorizada. Isso quer dizer que precisamos compreender que cada sujeito influencia a dinâmica da sala de aula, e, à sua maneira, contribui para a aprendizagem. Nesse espaço, todas as falas devem ser escutadas, acolhidas e coletivamente pensadas: novamente, discordar não é um problema, mas é fundamental que se sintam confortáveis para falar.

Compreendemos que a construção de uma “Comunidade de leitores” é uma importante estratégia para envolver estudantes e fazer que se sintam seguros para dividir suas percepções e ideias. Dessa maneira, torna-se possível a leitura compartilhada de textos literários, de modo que tenham vontade e sintam-se convidados a dividir seus olhares acerca do texto.

Pode parecer óbvio para algumas pessoas, mas é importante ressaltar que é fundamental que o texto literário seja lido durante as aulas. Mesmo que a turma tenha os exemplares e leia em casa, esse momento de leitura compartilhada é extremamente rico. Dele podem surgir novos olhares e discussões interessantes. Muitas vezes, trechos que nos passam despercebidos, numa segunda leitura, ou na voz de outra pessoa, ganham força.

Nesse momento, o papel do professor é crucial. Sabemos que existem detalhes, caminhos, que estão presentes no texto, mas nem sempre são percebidos, então é nossa função provocar, alertar e apresentar elementos que possibilitem essa leitura mais completa da obra, além de viabilizar o diálogo entre diferentes interpretações. O escritor Marcelino Freire, debruçando-se sobre experiências de leitura literária na escola, afirma que “se o aluno vivencia essa leitura em sala de aula, ele sente que o professor é um companheiro e não alguém que exige respostas para perguntas” (Freire, 2018, n.p.).

Mais leitores, mais oportunidades

É comum ouvir que os jovens de hoje leem pouco, que não gostam de ler, que preferem o celular e as redes sociais, sobretudo no Brasil – mas será que isso é verdade? Primeiro, não é o que o número de alfabetizados que mantém alguma prática de leitura, em relação a décadas passadas, nos mostram. Ademais, não é a realidade que o interesse e a mobilização da juventude por ações de cunho literário descortinam. Movimentos, espaços e ferramentas, como saraus, slams, batalhas de rimas, bibliotecas comunitárias, canais de vídeo e podcasts sobre livros apontam que os jovens estão dispostos não só a ler literatura, mas a conversar sobre as leituras, produzir e compartilhar textos próprios, além de buscar formar outros leitores.

Essas manifestações, cada vez mais comuns, principalmente nas periferias desse Brasil afora, tiram a literatura da estante e colaboram para a sua popularização. O que esses espaços têm em comum são a presença de textos e uma mediação que abordam temas do cotidiano e falam de experiências muito semelhantes às das pessoas que frequentam e acessam esses lugares. Também se pode observar uma diversidade de autores e obras. Com isso, muitos jovens têm encontrado na literatura um verdadeiro lugar de existência, de ser e de se colocar no mundo.

Está aí uma grande oportunidade para nós professores. Os jovens leem, sim. Então, por que não transformar nossas aulas de literatura – agora Comunidade de leitores – em lugares como esses? Fica o convite!

 


Esdras Soares é técnico de programas e projetos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC Educação), onde integra a equipe do Programa Escrevendo o Futuro / Olimpíada de Língua Portuguesa. Mestrando em Letras – Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade de São Paulo (USP).

Lara Rocha é professora de Língua Portuguesa da rede municipal de São Paulo. Mestranda em Letras – Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade de São Paulo (USP).


1. É necessário atentarmos para o fato de que “a história do país e do mundo” tradicionalmente diz respeito a apenas uma história: a dos europeus, relegando a segundo plano, ou mesmo à invisibilidade, a história dos indígenas e dos africanos e seus descendentes no Brasil.

2. O pseudônimo da autora é grafado assim mesmo, em letras minúsculas. Segundo ela, a ideia é dar enfoque ao conteúdo da sua escrita e não à pessoa.


Referências

CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”, in: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011, pp. 171-193.

FREIRE, Marcelino. “Tirar a literatura do pedestal”. [Entrevista concedida a Mônica Cardoso.] Portal Escrevendo o Futuro, 2018. Disponível em <https://www.escrevendoofuturo. org.br/blog/literatura-em-movimento/marcelino-freire>.

hooks, bell. Ensinando a transgredir: educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

MARTIN, Vima Lia de Rossi. “Algumas propostas para o ensino das literaturas africanas e afro- -brasileira no Ensino Médio”. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, v. 8, nº 17, dez., 2016, pp. 125-132.

ROUXEL, Annie. “Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor?” Cadernos de Pesquisa, v. 42, nº 145, jan./abr., 2012, pp. 272-283.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 2010.

ZILBERMAN, Regina. “Literatura, escola e leitura”, in: Literatura & Ensino. Maceió: Edufal, 2008, pp. 45-60.

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