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Slam do Corpo une poetas surdos e ouvintes, ampliando os conceitos de criação poética
Quando dois mundos se encontram, o resultado pode ser incompreensão. Ou poesia. No palco, um poeta declama; ao seu lado, outro poeta interpreta em língua de sinais. Um utiliza rimas e versos métricos, o outro desenha seus gestos pelo espaço à sua volta – poesia que transborda pelo corpo. Este é o formato do Slam do Corpo, uma batalha poética que une surdos e ouvintes numa mesma performance, aproximando esses dois universos pela arte.
Ao declamar uma poesia em português e Língua Brasileira de Sinais (Libras) simultaneamente, os poetas ampliam os sentidos da performance poética tanto para surdos quanto para ouvintes e transformam a tradução entre essas línguas em um novo espaço de criação. “Para os ouvintes, a audição é muito forte, já nós, surdos, somos muito focados na comunicação visual e na percepção do corpo. São dois mundos diferentes, por isso essa troca é difícil, mas também muito potente”, explica o poeta Leonardo Castilho, que é educador e membro do grupo Corposinalizante, que organiza o Slam do Corpo.
Tradução criativa
“A tradução de uma poesia entre duas línguas orais já pode trazer muitas lacunas, porque são culturas diferentes, imagine então quantas impossibilidades não existem no encontro entre dois modos de línguas, uma língua oral e uma gestual e corporal, com estruturas tão diferentes”, aponta Cibele Lucena, artista e educadora que atua no grupo Contrafilé e no Corposinalizante. Por isso, mais que uma tradução dos poemas de uma língua para a outra, o Slam do Corpo propõe que as diferenças sejam transformadas em criatividade e liberdade poética. Em duplas, um surdo e um ouvinte, os poetas vão criando suas versões para a poesia, de forma mais autoral e utilizando os recursos estéticos próprios de sua língua. Assim acontece o que eles gostam de chamar de “beijo de línguas”: esse encontro entre mundos e entrelaçar de poéticas. “Nós nos apropriamos também do conceito de transcriação, de Haroldo de Campos, que propõe lidar com as diferenças na tradução como uma potência criativa, não como algo que impossibilite o encontro”, diz.
Cibele explica que o trabalho entre as duplas pode acontecer durante uma oficina ou na preparação de uma apresentação, mas que algumas podem se tornar parceiras por mais tempo. “Depende da conexão que houver entre as pessoas, e também da disponibilidade de cada uma. Não tem um formato fixo”.
“Tenho uma dupla com quem sempre ensaio e nós discutimos sobre a poesia e como fazer a performance, sobre como alcançar, com a voz, a mesma potência do que estou dizendo em sinais, por exemplo”, conta o poeta surdo Edinho Santos. “Às vezes também contamos com uma intérprete para dar um retorno sobre o que construímos e ajudar a entender esses dois lugares – do surdo e do ouvinte. Assim a mensagem fica bonita e compreensiva para todo mundo.” Edinho ainda faz questão de ressaltar a necessidade desse trabalho conjunto: “é importante estarmos na mesma sintonia, para que uma energia não se sobressaia à outra na apresentação, isso é parte da construção poética”.
Corpo poético
“Nosso corpo já é poético, temos poucas palavras, mas somos ricos em imagens visuais. O espaço da poesia trouxe a voz para o surdo. É uma forma de se comunicar com a sociedade e sensibilizá-la”, acredita Leonardo.
Em Libras, a poesia se desenha de diversas formas: na escolha dos sinais, nas imagens criadas, no ritmo da performance apresentada... A poeta surda Catharine Moreira explica que a poesia na língua de sinais se aproxima do teatro, já que usa o corpo para transmitir seus sentimentos. “Até o olhar e as expressões são parte dessa construção poética. Às vezes chego a gritar para mostrar minha voz”, diz. Graças a essa expressividade tão forte, ela conta que muitos ouvintes conseguem entender sua poesia mesmo não conhecendo muito bem Libras. Catharine diz que o que mais a motiva a criar são questões políticas e relacionadas à vida dos surdos e ao feminismo. “Poesia para mim é uma forma de inspiração, e também de desafiar a sociedade de ouvintes.”
Catharine costuma escrever seus poemas primeiro, depois sinaliza-os em Libras. O terceiro passo é trabalhar a expressão em todo o corpo, já que a Libras é apenas uma parte desse processo. Já Edinho conta que muitas vezes compõe diretamente em língua de sinais. Ele grava ou escreve seus poemas para manter o registro e vai trabalhando em sua composição, construindo-as a partir de diversas ideias.
Edinho lembra que brincava com poesia mesmo sem ter ainda consciência disso. “Eu fazia naturalmente, mas não sabia organizar aquilo dentro de mim. Fui conhecendo outros poetas e essa poesia começou a transbordar no meu corpo.” Entre as referências para seu trabalho, ele cita a poeta Maria da Conceição Evaristo e a escritora Carolina Maria de Jesus, além de músicos de rap, como Racionais e Sabotage. “Vejo como eles falam e como vão construindo suas estratégias narrativas. Aprendo com eles e vou descobrindo a minha forma de me manifestar. Falo principalmente sobre racismo, sobre valorização da minha identidade e da minha língua, que é a de sinais”. Ele acredita que a arte pode ser uma forma de comunicação mais efetiva para combater a desigualdade entre as pessoas. “Às vezes não adianta discutir, porque as pessoas são fechadas, mas a poesia tem uma forma que pode tocá-las para causar uma reflexão e uma mudança”, defende.
Encontro de culturas
Edinho lembra que frequentava o slam ZAP! e via as pessoas falando sobre seus problemas em forma de poesia, mas percebeu que faltavam os surdos. “O surdo também tem suas questões e sua luta. Foi quando comecei a criar poesia, e a participação dos surdos a crescer.” Nessa época, 2013, ainda não havia o Slam do Corpo nem o formato de uma apresentação em dupla, mas alguns slams e saraus passaram a ter intérpretes de Libras e esse diálogo entre surdos e ouvintes por meio da poesia começou a acontecer.
As oficinas sobre o Slam do Corpo, realizadas pelo grupo Corposinalizante, são outro espaço que permite esse encontro entre poetas surdos e ouvintes. “Trabalhamos corpo, voz, texto, tradução e transcriação”, diz Cibele. Na oficina realizada em setembro no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, os participantes ouvintes que estavam acostumados a apenas ouvir ou ler literatura contaram que descobriram uma poesia que pode ir além da palavra e muitas novas possibilidades para o corpo. A percepção de como priorizam o texto, esquecendo tudo o que seu corpo diz mesmo quando estão em silêncio foi um dos pontos levantados, além do quanto podem aprender com os surdos sobre performance. Entre os participantes havia professores, artistas e familiares de surdos, além de poetas e estudantes surdos.
O grupo também já realizou oficinas em escolas de surdos. “Um dos poetas que está na final do Slam do Corpo, um jovem de 16 ou 17 anos, conheceu nosso trabalho nessas oficinas. É uma resposta sobre a potência do nosso trabalho”, acredita Leonardo.
Já Edinho conta que participou, como convidado, de uma atividade organizada numa escola municipal de São Paulo, com maioria dos alunos ouvintes, de 11 a 14 anos. “Falei sobre minha experiência, sobre como funciona a batalha poética, a pontuação, mostrei vídeos e percebi um desejo muito grande das crianças por participar.” Ele lembra que no final da atividade foi realizada uma batalha com surdos e ouvintes, com participação de cerca de 80 alunos. “Eles ficaram tentando escrever mais poesias para participar, foi muito legal ver esse esforço deles”, diz. Para ele, outro ponto importante é trazer exemplos para o aluno: “o surdo também pode ter um surdo como referência de poeta. Eu aprendi com surdos e ouvintes, e as crianças também podem aprender com ambos”.
Início
O grupo teve origem no curso Aprender para Ensinar – oferecido pelo MAM em parceria com outras instituições, que preparava jovens surdos para serem mediadores e educadores do museu, com formação sobre arte e as exposições. “Com o tempo, esses jovens sentiram necessidade de ter um espaço não só para estudar a produção de outros artistas, mas para criar, fazer arte”, explica Cibele, que trabalhou como educadora do curso junto com a artista Joana Zatz Mussi. Ela conta que o Corposinalizante, que ainda conta com o MAM como parceiro, funciona como um espaço para discutir as demandas da comunidade surda e para transformá-las em ações poético-políticas, performances e manifestos.
“Nós queríamos fazer arte, fazer intervenções urbanas, manifestos nas ruas. Por isso sentimos a necessidade desse espaço para experimentar e criar. E esse processo foi crescendo até chegar no Slam do Corpo. Mostramos que não existem limites entre ouvintes e surdos, porque nesse espaço existe uma troca real”, diz Leonardo, que começou como aluno do curso do MAM e hoje trabalha no local como educador.
Cibele conta que a criação poética em Libras era um dos temas que mais interessava aos jovens, por isso o Corposinalizante começou a participar de alguns saraus e slams e a fazer apresentações. E assim surgiu a ideia de criar o próprio espaço. “Não queríamos um slam de ouvintes que tivesse tradução para Libras, nem um slam só de surdos. Queríamos um espaço onde as duas línguas pudessem se encontrar, onde pudesse existir essa conexão simultânea, foi aí que criamos o Slam do Corpo”.
Érika Mota, que é intérprete de Libras, conta que começou fazendo a tradução em outros slams, geralmente sentada, no canto do palco, mas o Slam do Corpo mudou essa configuração. Ela, que também participa dos Slams como poeta ouvinte, dupla de Mariana Ayelen, ressalta a conquista de espaços nos últimos anos. “Participamos da Festa Literária das Periferias (Flup), uma feira literária que acontece nas favelas do Rio de Janeiro (RJ), onde a maioria é ouvinte, e estamos indo para a quarta edição com a participação de surdos. Também vejo os surdos batalhando em muitos slams de ouvintes e chegando às finais. É lindo participar dessa evolução e acompanhar esse processo tão rico”.
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