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Para o teórico russo Mikail Bakhtin e seu círculo de estudiosos, a língua tem vida porque é um diálogo contínuo entre os sujeitos sociais. Isso quer dizer que ela é tão viva como eu ou você e está sujeita aos processos normais pelos quais passam todos os seres vivos: há palavras que nascem, palavras que se modificam (tanto no que querem dizer como na forma da escrita), palavras que morrem.
Nada mais natural. O estranho é que durante séculos isso não tenha sido considerado no ensino de língua. Até pouco tempo, o que se ensinava na escola eram os aspectos normativos da língua, principalmente. E ensinava-se como se eles nunca tivessem sido mudados e como se nunca fossem mudar novamente. Então, os alunos eram execrados se esquecessem normas para uso do trema, do hífen. Com essa atitude, a escola ensinava apenas a norma culta, ou seja, aquela falada pelas elites (em momentos formais, claro) e abençoada pelos gramáticos. Mas, se a ortografia e a gramática sofrem mudanças, por que não tratar o erro de forma reflexiva e não punitiva?
Este é um primeiro ponto para reflexão neste momento de mudança da ortografia. Pode parecer que a luta imensa para ensinar aos meninos a complexa utilização da acentuação, por exemplo, foi em vão. Os professores mais antigos passaram décadas exigindo que os alunos acentuassem o que não tem mais acento. Carregaram água em cestos?
Outro ponto é o da apropriação, por nós adultos, das mudanças que chegam. Certamente, em nosso processo de aprendizagem, nos esforçamos para aprender coisas que teremos que esquecer! Aprendemos inutilidades?
Um terceiro ponto é oposto aos anteriores. Trata-se daqueles que se recusaram a obedecer às normas. Se eles não aprenderam coisas para desaprender, têm vantagens sobre os que aprenderam?
O assunto dá o que pensar, não só sobre a língua e seu ensino, mas sobre o ensino em geral em época de mudanças velozes. O que é mesmo que temos que ensinar para que os alunos tenham aquela tão falada base que possibilite que consigam prosseguir aprendendo, talvez para sempre, como a vida exige agora?
Muitos já vêm tentando há décadas flexibilizar conteúdos e ensino. O modo como boa parte dos professores encaram o ensino de gramática e ortografia, atualmente, por exemplo, mudou de forma radical. Passou-se, muitas vezes, a considerar a variante da língua falada na região como referência para a reflexão sobre os “erros”. Correto, desse modo a língua é estudada de acordo com sua natureza, ou seja, como nascida dos processos de comunicação social e viva pelo uso contínuo, histórico, do uso desses processos. Adotar esse procedimento de ensino valoriza a pessoa, o cidadão, qualquer que seja seu modo de falar.
O problema, às vezes, é ir do oito para o oitenta. Ao deixar de usar a gramática como camisa de força, pensou-se que a saída era não intervir no que os alunos escrevem. E essa postura ficou consolidada, principalmente, nas séries iniciais. Em vez de acolher as hipóteses dos alunos sobre a grafia das palavras para abrir um diálogo sobre ela, por exemplo, passou-se a aceitá-las como forma definitiva de grafar as palavras. “Escreva do seu jeito”, dizia-se. “Use sua criatividade”.
As mudanças na forma de grafar as palavras não podem ser decididas por professores e alunos na intimidade da sala de aula. Se cada um escrever do seu jeito, a comunicação pela escrita fica difícil. A cada escrita que nos chega sem um referencial padrão, temos que fazer um esforço para entendê-la, o que toma tempo e desgasta. É por essa razão que temos que combinar, num nível amplo, de nação para nação, como vão ser escritas as palavras. Para facilitar a comunicação. Para falarmos a mesma língua, mas não uma língua morta e rígida, uma língua viva que acompanha as mudanças sociais e as reflete.
É dessas mudanças que decorrem as alterações que a língua e seu ensino sofrem. Como quase sempre são mais profundas do que aparentam ser, é sempre bom parar para refletir sobre elas. A presente mudança ortográfica é um bom momento para essa reflexão.
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