Que loucura essa: a supremacia branca à brasileira
A triste morte do menino Miguel mostra como a herança escravista da sinhá contemporânea continua a caracterizar o racismo no Brasil
Em 2017 um grupo de supremacistas brancos nos Estados Unidos, oriundos de diversas organizações dessa natureza, marchou para a cidade de Charlottesville no estado de Virginia, para protestar contra a destruição de uma estátua de um general confederado. Naquela ocasião, a cidade tornou se palco de um dos confrontos mais violentos da história recente dos Estados Unidos. Um supremacista foi sentenciado por homicídio após dirigir um carro em alta velocidade contra uma multidão que protestava pelo fim do racismo, antissemitismo e homofobia. Nesse ataque motorizado, uma pessoa morreu e diversas ficaram feridas.
Uma das cenas mais assustadoras da atividade dos supremacistas, grupo composto por homens brancos de idades variadas, são as imagens nas quais esses aparecem marchando à noite carregando tochas acesas, lembrando as antigas marchas de Ku Klux Klan.
Mas antes que alguém respire aliviada acreditando que não temos esse tipo de manifestação aqui no Brasil e que vivemos uma espécie de “racismo leve”, cuidado. Primeiro porque “racismo leve” não existe, e segundo porque o racismo brasileiro passa por um processo de mudança. Ao mesmo tempo em que temos elementos novos, ainda por muito tempo vamos ter que lidar com as sutilezas do racismo à brasileira. O fato é que, tanto de uma forma como de outra, o racismo brasileiro e o estadunidense têm o mesmo princípio: são sociedades nas quais alguns setores defendem que umas pessoas são mais humanas que outras, a depender da cor da pele.
No último dia 31 de maio de 2020, uma cena assustadora aconteceu em solo brasileiro. Um grupo de pessoas brancas marchou na frente do Supremo Tribunal Federal, muitas delas mascaradas, carregando tochas acesas, tal qual no protesto supremacista branco de agosto de 2017 em Charlottesville. A pauta supremacista estava no lugar racial das pessoas envolvidas, na simbologia que estavam apropriando e no discurso de recriação de uma determinada identidade nacional.
Isso é possível porque, num país em que pessoas negras são maioria da população líderes de manifestações são maioria da população, líderes de manifestações como essa e outros grupos incorporam cada vez mais o pior da cultura e da política estadunidense. Mas essas pessoas sabem que devem ser mais cautelosas ao anunciar abertamente suas pautas raciais num país onde são minoria, embora estejam cada dia mais ousadas.
O tipo de prática de supremacia branca que conhecemos muito bem é outra, e aí vou me permitir falar de regionalidade também ao expressar minha familiaridade com o modelo de racismo que vivenciamos aqui de forma particular, na região Nordeste.
Todo mundo sabe o quão arraigados estamos a valores ainda escravistas: o prazer da subjugação do outro, da humilhação, das relações de trabalho informais e sustentadas em relações desiguais, as práticas racistas cotidianas justificadas pela intimidade. Na grande família patriarcal contemporânea, elites se orgulham de que suas famílias sejam servidas por décadas por membros de uma mesma família negra, que é presa em relações de trabalho aviltantes, que não lhes permitem ascender socialmente.
O sadismo é tão grande que a existência do outro só é prazerosa se ela consiste em servir e, claro, com doses de humilhação e sacrifício daquele que serve, se possível, agradecendo e sorrindo. Concluo, cada vez mais, que o racismo brasileiro (e estadunidense também) vive o desafio de aliar-se ao capitalismo inventando tecnologias novas de exploração do trabalho, mas figurando cenários bem antigos e pouco sofisticados, de inspiração escravista.
Naquele mesmo domingo à noite, 31 de maio, assistindo a um programa de grande circulação nacional, vejo uma imagem de vídeo na qual a senhora Mirtes Renata Souza entra num hospital de Recife empurrando uma maca, na qual está o filho Miguel Otávio, que vive seus últimos instantes de vida após cair do nono andar de um prédio de luxo da cidade. Chama-me atenção o fato de Dona Mirtes trajar o típico uniforme branco das trabalhadoras domésticas das elites, e foi assim, aprisionada na simbologia do que mais nos aproxima da escravidão, que ela viu seu único filho partir para o Orum aos cinco anos de idade.
O CHORO DE MIGUEL E SUA INSISTÊNCIA
FAZ COM QUE AQUILO QUE CHAMAMOS DE
‘PATROA’ SEJA OBRIGADA A SAIR DA SUA
FANTASIA DE ‘SINHÁ CONTEMPOR NEA’
Miguel Otávio era uma belíssima criança naquele dia em que saiu de casa no meio de uma pandemia para acompanhar a mãe no seu local de trabalho, a casa da patroa, na orla marítima de Recife, num condomínio que leva o nome do conquistador holandês Maurício de Nassau, num edifício chamado “Torres Gêmeas”, fazendo direta referência às Twin Towers estadunidenses, embora se tratasse de dois arranha-céus localizados no Nordeste brasileiro. No caminho, enfrentaram o risco de recontaminação, uma vez que o pequeno, a mãe e a avó, as três gerações, já haviam sido contaminadas após o contato com a família empregadora durante as atividades de trabalho contínuas na residência daquela família. Embora lhe foi dada a opção de continuar a trabalhar “se quisesse”, sabemos bem que não tem opção quem precisa de salário e está incerta se irá recebê-lo caso respeite as recomendações de isolamento.
Três gerações de uma família negra, D. Mirtes, sua mãe e seu filho, estavam devotadas, com a força de trabalho, a saúde e a vida a satisfazer, por necessidade, as fantasias escravistas coloniais da referida família tradicional pernambucana, cujo patriarca é um agente público. O ambiente de ormalidade forjado durante a pandemia custou a vida do filho de Dona Mirtes, que cuidava de três crianças, os filhos da tal patroa e a sua própria, que estava sem aulas uma vez que as escolas estão fechadas. Além, certamente, da comida, Dona Mirtes cuidava da limpeza e do cachorro, enquanto sua patroa fazia as unhas.
Sobre esse caso, que não vou detalhar uma vez que já conta com grande cobertura da imprensa, vou me ater às sutilezas que demonstram como a ideia de supremacia branca, tão arraigada no cotidiano brasileiro, não precisa de teorias científicas e nem de marchas com pessoas brancas segurando tochas. A supremacia branca brasileira, da forma como conhecemos até hoje, tem suas próprias simbologias.
Além de tudo de absurdo que envolve esse episódio — que só confirma a precariedade do trabalho da categoria que mais tem sido sacrificada pelo narcisismo brasileiro durante a pandemia, que são as trabalhadoras domésticas — quero falar da interação do pequeno Miguel com a empregadora da mãe, naquela terrível cena do elevador. Miguel, valente e teimoso, reivindicou o desejo de ver a mãe e corre para o elevador reafirmando sua vontade de ir de volta para a presença daquela que era sua referência de afeto naquele espaço, e na sua vida. Nesse momento, enquanto sua mãe passeia com o cão, o desejo de Miguel interrompe a fantasia da busca da naturalidade do cotidiano, expressa no autocuidado da patroa: ela faz as unhas. Miguel é tratado como um adulto inconveniente, e como se pudesse ter responsabilidade sobre sua escolha, ele foi deixado no elevador sozinho, sem aquilo que é direito de toda criança: proteção. Quando o último andar é acionado por aquela que, naquele curto espaço de tempo deveria estar zelando pela sua integridade, ele é relegado ao desespero de gritar pela mãe num ambiente pequeno e fechado, que se movimenta para cima e para baixo, como um castigo. O choro de Miguel e sua insistência faz com que aquilo que chamamos de “patroa” seja obrigada a sair da sua fantasia de “sinhá contemporânea”. A despeito do seu corpo e comportamento infantil, Miguel é tratado naquele momento como um adulto, ou como uma coisa “não-criança”, “não-humana”. Miguel era negro, e sabemos que as crianças negras no Brasil não têm direito à inocência, pois tudo nele o afasta dos conceitos de infância que o imaginário racista empurrou para as crianças negras e indígenas brasileiras. Ele, Dona Mirtes e sua mãe têm a existência justificada no servir, são três gerações. Dona Mirtes, mãe de Miguel, é servir, são três gerações. Dona Mirtes, mãe de Miguel, é quem melhor exemplifica o lugar de raça, classe e gênero das trabalhadoras domésticas nesse Brasil da “mistura”: “Se fosse eu, meu rosto estaria estampado”. E estaria mesmo. O que aconteceu com Miguel não foi descuido. Isso tem outro nome: foi racismo mesmo.
À Dona Mirtes e sua família, meu mais sincero sentimento de solidariedade de uma mãe que também tem a vida iluminada todos os dias pelos sorrisos, travessuras e inocência de uma criança negra de cinco anos.
Luciana Brito é historiadora, especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA e é professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. É autora do livro “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista”, além de vários artigos. Luciana mora em Salvador com sua família, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve quinzenalmente às terças-feiras.