Nas ondas do rádio
Edson Gabriel Garcia
Cheguei a Nova Granada de manhãzinha, quase escuro, quase claro, a noite indo embora sem pressa e o dia, menos apressado ainda, dando as caras. Passei a alça da mochila pelo ombro e comecei a caminhar na direção da casa de meus pais, localizada no centro da cidade, para uma visita de carinho e saudade. O trajeto me obrigava a passar pela Igreja Matriz e pela praça central, uma seguida pela outra, ambas locais que agitavam minhas lembranças dos tempos da juventude que lá vivi. Dessa vez, qual não foi minha surpresa ao ver que a querida praça havia sumido e em seu lugar restava apenas uma quadra inteira de terra vermelha arrasada, alguns montes de pedra, areia e blocos de concreto. Quase morri de susto, depois de raiva. Como puderam fazer aquilo com a minha praça? Bem… assim que me assentei na casa dos velhos, saí para rever amigos, os poucos que sobraram tanto tempo depois. Acabei chegando à barbearia do Chico, o rei da tesoura, mais de cinquenta anos fazendo barba e cabelo de muitas gerações granadenses. O salão do Chico tornara-se uma espécie de registro oral das lembranças locais. E foi lá que eu encontrei o Edinho da dona Judi, velho amigo cinquentão, um dos poucos da minha turma de juventude que, mais corajoso de todos, resolveu ficar e tocar sua vida lá. Desabafei com o Edinho minha insatisfação com a praça.
E ele, calmo, como se pensasse um dia para escolher cada palavra.
– Pois é… coisa de política… logo tem eleição…
– E, quando tem eleição, a história da cidade vai pro espaço!? – comentei irritado.
– Pois é… que falta faz o Padre Miguel Lucas nessas horas…
Padre Miguel Lucas: o Edinho foi buscar essa lembrança lá nos idos finais dos anos sessenta. O jovem padre espanhol, pouco tempo de Brasil, que chegara a Nova Granada com rezas intensas e ideias novas.
– Você se lembra dele? Da casa paroquial, da rádio…
Claro que me lembrei dele. Dele e da emissora de rádio.
Ao falar da emissora de rádio, os olhos castanhos cor de mel do Edinho brilharam. Ele tinha sido personagem central na criação e no funcionamento da primeira emissora de rádio de Nova Granada. De locutor, criador de programas e textos de propaganda, ele tinha feito tudo, ou quase tudo.
“A primeira vez que o padre Miguel falou de instalar uma rádio na cidade, os olhos de todo mundo perguntaram o que, como, quando, por quê… E o padre, em seu portunhol delicado, foi respondendo e explicando: aqui, em uma das salas da casa paroquial; comprando e instalando um aparelho retransmissor de ondas sonoras; transmitir programas de música, esportes, notícias, missas… A gente só estava acostumado a ouvir rádio de cidade grande. Tupi e Bandeirantes de São Paulo, no máximo a Independência de São José do Rio Preto… Uma rádio em Nova Granada? Parecia coisa de outro mundo!”
Fui lembrando e vendo as imagens antigas desfilarem ali no zunzunzum do pequeno auditório improvisado no salão do Chico.
“Em pouco tempo a cidade inteira havia comprado a ideia. O nome, depois de muitas sugestões, acabou ficando Rádio Educadora Granadense, uma mistura de intenções e desejos religiosos, educativos e artísticos. O retransmissor chegou, cara de objeto não identificado, e foi instalado na sala da frente da casa paroquial. Além dos botões de comando, dois toca-discos, conhecidos por pratos, e um microfone, parecido com aquele que vinha estampado na antiga Revista do Rádio, tudo instalado em uma mesa ampla e grande.
Todo mundo doou discos para a Rádio. Ela começou com mais de mil discos. Teve gente que tirou do baú verdadeiras relíquias, gravações de setenta e oito rotações, aqueles bolachões pretos e duros, com seus cantores preferidos: Francisco Alves, Anísio Silva, Trio Irakitan, Cascatinha e Inhana… Era uma época de transição dos discos de quarenta e cinco rotações, sucessores dos antigos bolachões de setenta e oito, para os mais modernos de trinta e três rotações, que começavam a dominar o mercado. Foi nesse primeiro arrastão de doações que eu peguei um compacto duplo de um cantor quase desconhecido por aqui, chamado Roberto Carlos, que depois acabou virando o maior vendedor de disco do país. splish plash, um dos seus primeiros sucessos! Lembrei-me do primeiro sucesso nas ondas da Rádio Educadora Granadense, uma música francesa, Ma vie, cantada por um tal de Alain Barrière. Às vezes, a cidade parecia um único e grande alto-falante: todas as casas com seus rádios ligados na nossa Educadora e a mesma música repetida em alto e bom som invadia o espaço.”
No meio dessas lembranças gostosas, deixei escapar um sorriso maroto e trouxe de volta uma história inesquecível.
“Nunca vou me esquecer desse fato. Eu estava apresentando um programa e de repente fui atacado por uma desinteria daquelas… Daquelas que apertam o intestino, dá um nó nas tripas, faz você suar e, em segundos, você tem que achar um banheiro para atender o chamado urgente da natureza. E foi o que eu fiz. Coloquei um LP no prato, acho que um dos sucessos As 14 mais da gravadora CBS, e falei para alguém que estava na sala comigo: dê uma olhada aí que eu vou procurar um banheiro para fazer cocô… Até aí tudo bem, não fosse o microfone estar ainda ligado e todos os rádios, dos santos lares granadenses, receberem a minha sacrossanta informação. Foi o escândalo do mês: o filho do seu Lico, um bom menino, de família tradicional, tinha usado as ondas da rádio do padre para anunciar que ia fazer cocô…”
Bem… minhas memórias radiofônicas pararam por aí. Depois disso, ficamos apenas lembrando bobagens, artes, farras, enganos, estripulias e sacanagens dos nossos tempos de juventude Jovem Guarda.
Eu acabei esquecendo da praça arrasada e da emissora de rádio do padre. Interessante notar que uma cidade que tem um salão como o do Chico Barbeiro jamais terá suas memórias esquecidas. Ali sempre aparecerá alguém, como eu, sempre pronto para avivá-las e transmiti-las aos mais novos ou mais velhos e esquecidos..
Edson Gabriel Garcia. Nas ondas do rádio, fevereiro de 2004.