As locutoras da quarentena
Vanessa Barbara
Tenho enorme admiração por esses tenores que cantam ópera nas janelas para entreter os vizinhos durante a quarentena. Há ainda aquelas pessoas que tocam instrumentos musicais (“Ode à Alegria”, de Beethoven, é uma opção comum), dão aulas de ginástica, projetam filmes nas fachadas, parabenizam coletivamente os aniversariantes e cantam bingo (aconteceu na Espanha).
Meus vizinhos – coitados – não têm tanta sorte. Só o que eles ouvem a tarde toda é minha voz sem graça narrando, da varanda, acontecimentos absolutamente prosaicos para minha filha, Mabel, de quase 2 anos. (É o que dá ser vizinho de escritora.)
Outro dia, por exemplo, devem ter acompanhado com desânimo minha arrastada descrição de uma moça de blusa azul descendo a escadaria da rua: “Ela vai descer devagarzinho, olha só, segurando no corrimão… Que cuidadosa! Ela está carregando uma sacola? Ou é uma bolsa? Para onde será que está indo?” Observamos em silêncio o percurso da mulher, que agora caminha pela calçada. “Ela vai trazer bolo para a Mabel”, responde a minha filha depois de pensar um pouco. Acho essa hipótese bastante digna.
Desviamos a atenção para um senhor que passeia com os cachorros. “Olha! Acho que é o Francesco!”, eu grito, com excessiva alegria, referindo-me a um golden retriever do nosso prédio. Mabel não dá muita bola e começa a brincar de achatar o nariz no vidro.
Peço sinceras desculpas aos vizinhos, mas estamos fazendo o possível para nos entreter nesta quarentena. Conversar é o que há de mais prático em nosso limitado arsenal de distrações, sobretudo quando as respostas podem ser tão engraçadas. Minha expertise na função de cronista de varandas veio bem a calhar. Quando o tempo está bom, passamos um sem-número de horas nesse espaço exíguo observando o (pouco) movimento e nos alimentando de qualquer migalha de agitação registrada nas redondezas. Um ponto alto da nossa tocaia ocorreu duas semanas atrás, quando uma menina disparou a correr pela rua até alcançar uma amiga, que seguia bem à frente.
“Corre muito!”, reparou minha filha, com verve de comentarista de olimpíada. Foi eletrizante o reencontro. “Será que elas vão pegar o trenzinho juntas?”, especulei, apontando para a estação de metrô. “O coronavírus está na cola dela”, disse Mabel, do nada. Passamos dias rememorando o episódio. Os vizinhos já devem ter ouvido dezenas de elegias ao ocorrido, todas caudalosas feito parágrafos proustianos sem sombra de ponto-final.
O vizinho da frente, aliás, continua acendendo as luzinhas de Natal toda noite. (Já passamos da Páscoa.) Nós fazemos o mesmo, naquilo que eu não sei mais se é uma competição acirrada ou um solidário meneio de cabeça. Outro vizinho acena de vez em quando para nós. Ele fica sentado na varanda por longos períodos e deve observar com curiosidade a nossa dupla sapateando, pulando e fazendo movimentos aleatórios de ioga. Às vezes, Mabel usa a minha barriga como tambor. Ou então ficamos brincando com as sombras, abrindo e fechando as cortinas, catando fios de cabelo no chão, contando quantos carros vermelhos passam na rua. Até os sinos da igreja servem de tópico para as nossas histórias.
Por uma dessas tristes ironias, moramos perto de um estacionamento de ambulâncias do Hospital Sancta Maggiore. Um de nossos passatempos mais recorrentes hoje em dia é acompanhar o movimento das ambulâncias subindo e descendo a ladeira do estacionamento. Ficamos imaginando que os veículos são amigos e trabalham o dia todo levando pessoas ao hospital, mas sempre voltam para descansar e compartilhar as novidades. As sirenes são seus gritos agudos, as luzes vermelhas são um recado de que vão voltar.
Um dia apareceu no chão da varanda um enorme besouro morto, já meio seco. Cantamos uma música para ele e ficamos conversando baixinho sobre a vida de aventuras que ele teria levado. Em outra ocasião, acompanhamos a saga de uma aranha tentando subir pela parede e caindo repetidas vezes. Juro que não fiz nenhuma analogia de autoajuda. O vento é outro fenômeno que serve de assunto para nossas infinitas confabulações: basta soprar uns balões e deixá-los na varanda para que comecem a dançar para lá e para cá.
Quando venta forte, temos assunto. Quando o ar está parado, idem. Comentamos o cheiro de sopa, de bife à milanesa e de pipoca que vem das outras janelas. Compramos ovos imaginários para os vizinhos e saímos distribuindo a todos os interessados. (Para Mabel, não há quem resista a um bom prato de ovos mexidos.)
E temos também a Lua, as estrelas e o planeta Vênus; a estação espacial internacional e os satélites Starlink; as nuvens carregadas e os pedaços de céu azul. Poucos. Mas suficientes.