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Os documentários performativos caracterizam-se por uma abordagem essencialmente subjetiva, trazendo o próprio documentarista para o centro do filme. O diretor torna-se personagem, narrador e protagonista da história.
Nesses filmes, é comum o discurso em primeira pessoa, a narração em voz over pessoalizada, a autorreflexão, a utilização de imagens de arquivo, a ironia e o humor e a encenação como forma de reinventar a si mesmo.
Bill Nichols observa que os documentários performativos correm o risco de se tornarem narcisistas e também de estarem ameaçados pela possível dificuldade do realizador de se encarar como personagem, resgatar sua memória, lidar com suas instabilidades emocionais, suas dúvidas, suas perdas etc.
Abaixo, um exemplo de documentário performativo. Assista a ele e leia a análise:
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Em Babás, a diretora Consuelo Lins discute a situação das babás no Brasil ontem e hoje. Ela busca mostrar que a relação entre as babás e as famílias para as quais trabalham comporta violência e afeto. Para isso, ela constrói uma narrativa pessoal sobre o tema, que se evidencia logo no início da narração em voz off feita pela própria Consuelo.
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O curta-metragem faz uso de materiais de arquivo: fotografias, anúncios antigos de jornais e outros documentos históricos. O uso desse material não apenas amplia como apoia a reflexão pessoal da diretora-narradora.
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Em muitos momentos, a diretora se volta para suas vivências pessoais e memória para contar a vida das babás, trazendo para o filme as profissionais que já trabalharam para ela e sua família, bem como resgatando filmes e fotos de seu clã para mostrar.
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Além de ouvir as babás, a diretora faz uma autocrítica de sua posição como patroa e mãe. Dessa forma, Consuelo Lins realiza, a partir de uma narrativa pessoal, também uma crítica aos costumes da sociedade brasileira.
Babás. Consuelo Lins. Brasil, 2010, 20 min.
Agora, leia uma breve análise do curta-metragem.
Em Babás, Consuelo Lins discute a situação das babás no Brasil ontem e hoje. Ela busca mostrar que a relação entre as babás e as famílias para as quais trabalham comporta violência e afeto. Para isso, constrói uma narrativa pessoal sobre o tema.
Esse caráter subjetivo de narrativa se evidencia logo na narração em voz over feita pela própria Consuelo. É também a diretora quem realiza as entrevistas. O resgate de fotografias, anúncios antigos de jornais e outros documentos históricos não diminui o caráter pessoal do documentário.
Em muitos momentos, a diretora se volta para suas vivências pessoais e memória a fim de contar a vida das babás. É o que ocorre quando ela convida para participar do filme as profissionais desse ramo que já trabalharam para ela e sua família, bem como quando recupera filmes e fotos de seu clã.
Vejamos com destaque a narração em voz over, um dos recursos de linguagem importantes para o filme enquanto documentário performativo. Logo no início, o discurso de Consuelo se detém sobre uma fotografia tirada em 1860, na qual aparecem uma mulher negra (ama de leite) e um menino branco. É uma imagem significativa, onde "quase todo o Brasil cabe nessa foto", segundo um historiador.
De imediato, apresenta-se a narração em voz over, feita em primeira pessoa. Já na primeira frase, a diretora conta que quando viu a fotografia pela primeira vez, pensou que se fizesse um filme sobre babás, ele começaria com essa imagem. De fato, é assim que se passa. O filme concretiza essa promessa pessoal, e nos garante, pra começo de conversa, que o documentário respeita as vivências e intenções da diretora, e sua estrutura obedece a uma lógica determinada pela cineasta.
É a subjetividade da diretora que norteará o filme. Ela assume o papel de narradora, decidindo a ordem das imagens e das sequências. Sua voz over nos conduz nessas decisões. Ela articula saltos no tempo entre o presente e o passado, avanços e recuos, inclusive criando relações inesperadas, como aos 7 min e 28 seg, quando aproxima as imagens de seu filho aprendendo os passos de uma axé music com as de um filme da década de 1920, no qual uma babá assiste uma menininha numa dança da época. É sua voz over que costura essas ligações, e direciona a interpretação sobre as imagens.
Reflexiva, a fala de Consuelo chama a atenção do filme sobre si mesma, tematizando suas decisões sobre o que vem a seguir na montagem e sobre o que ela, enquanto diretora, deliberadamente deixou de filmar. É o que acontece aos 9 min e 54 seg, quando ela explica que não se sentiu à vontade para entrevistar quem ainda trabalha com ela, receio das entrevistas serem comprometidas pela relação patroa-empregada. Ao dizer isso, ela faz referência à sequência iniciada aos 4 min 04 seg, que apresenta as cinco babás que cuidaram de sua família. Naquela apresentação, as cinco mulheres não falam, permanecem caladas olhando para a câmera.
É o discurso subjetivo de Consuelo, representado por sua narração, que organiza e empresta sentido ao conteúdo do filme. É ele que traz à tona uma autocrítica da diretora a sua posição como patroa e mãe. Dessa forma, Consuelo Lins realiza, a partir de uma narrativa pessoal, também uma crítica aos costumes da sociedade brasileira.
1. Exiba o trailer de Diário de uma busca (2011), de Flávia Castro:
Diário de uma busca. Flávia Castro. Brasil, 2010, 108 min. Trailer.
Faça com que os alunos(as) a percebam que logo nos minutos iniciais importantes características do documentário performativo estão presentes.
A fim de auxiliá-lo(a) a identificar as estratégias de performatividade, situamos brevemente o contexto do documentário e indicamos algumas linhas de abordagem.
Em 1984, quando Flávia tinha 19 anos, seu pai, Celso Afonso Gay de Castro, morreu em circunstâncias misteriosas. O filme traz entrevistas da diretora com familiares, policiais, jornalistas, legistas e amigos que falam não apenas da morte de seu pai, mas da vida dele em família e de sua militância política durante a ditadura militar da década de 1960. No documentário, mais do que elucidar o crime que vitimou o pai, Flávia busca resgatar a memória dele.
É Flávia quem narra o documentário. É dela a voz que ouvimos durante a exibição de imagens e entrevistas. Ela faz questionamentos sobre o passado e vai em busca de algumas informações sobre o pai.
Chame a atenção dos alunos(as) para o fato de o discurso em primeira pessoa, a narração voz em off pessoalizada, as estratégias de autorreflexão e a utilização de imagens de arquivo são recursos que conferem forte carga subjetiva ao documentário. Aí estão as estratégias de performatividade.
Conheça outros exemplos de documentário performativo que você pode usar em sala de aula clicando no título dos seguintes filmes:
33. Kiko Goifman. Brasil, 2002, 74 min.
Um passaporte húngaro. Sandra Kogut. Brasil, 2001, 72 min.
Os dias com ele. Maria Clara Escobar. Brasil, 2012, 105 min.
2. Peça aos alunos(as) que procurem uma foto antiga de família para filmá-la e ao mesmo tempo gravar um comentário pessoal sobre a imagem.
3. Analise em sala os trabalhos produzidos, prestando atenção à forma como, nos comentários dos alunos(as), o passado evocado pela imagem fotográfica retorna ao presente.
A pesquisadora Stella Bruzzi (Bruzzi, 2006, apud Valles, 2016) classifica como performativos os documentários em que o realizador intervém em espaços públicos, mesmo com a negativa de autoridades ou instituições concederem permissão para o registro audiovisual, e se coloca nesses ambientes de maneira intrusiva. Bruzzi afirma que, em geral, os diretores desse tipo de documentário praticam ativismo político ou abordagem de cunho investigativo. Ainda segundo a autora, com base no uso midiático de seus atos performáticos e numa abordagem narrativa que transita entre o irônico e o sarcástico, esses filmes buscam mostrar o real por uma perspectiva assumidamente parcial, na mesma medida em que também se reconhecem como entretenimento.
Os filmes do diretor americano Michael Moore são um exemplo desse tipo de documentário. Moore é conhecido pela sua postura crítica à sociedade americana, sobretudo em relação à violência armada nos Estados Unidos, às grandes corporações, às desigualdades econômicas e sociais e à hipocrisia dos políticos, tendo sido particularmente crítico ao ex-presidente George W. Bush e à invasão do Iraque.
Para conhecer alguns documentários de Michael Moore, clique nos títulos abaixo:
Tiros em Columbine. Estados Unidos, 2002, 120 min.