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O documentário reflexivo está mais preocupado com o próprio processo de representação do mundo exterior do que com aquilo que quer dar a conhecer ao público. Os filmes dessa categoria olham para si mesmos, para os seus artifícios de construção. Assim, é comum o realizador, a equipe de filmagem e os equipamentos aparecerem em cena para acentuar para o público que o que aparece na tela é uma construção, fruto de preparação, de trabalho, e não a coisa em si.
O objetivo maior do modo reflexivo é acabar com a crença cega do espectador na verdade da imagem, fazer com que ele duvide daquilo que vê.
Documentários desse tipo mostram-se como representação, são metadiscursivos por excelência, ou seja, falam de si mesmos, de seu processo de realização.
Com esse movimento autorreflexivo, o documentário, que um dia pretendeu refletir o “real”, passa a girar sobre seu próprio eixo a fim de pensar sobre os mecanismos usados na representação do mundo. Para Bill Nichols, no documentário reflexivo “a representação da realidade é contestada com a realidade da representação”.
Abaixo, exemplo de documentário de caráter reflexivo. Assista ao filme e leia o comentário.
Fraternidade. Jorge Furtado. Brasil, 2004, 3 min.
Agora, leia uma breve descrição e análise.
O curta-metragem Fraternidade faz parte da série de sete filmes da campanha "Valores do Brasil" do Banco do Brasil, veiculada entre final de 2004 e início de 2005. Cada filme aborda uma virtude: afeto, alegria, confiança, conhecimento, fraternidade, identidade e originalidade.
Durante os três minutos de duração do filme, o ator Paulo José lê, diante das câmeras, uma carta endereçada a ele pelo cineasta gaúcho Jorge Furtado, convidando-o a participar de um filme sobre o tema “fraternidade”. À medida que Paulo José lê as propostas de Furtado para o filme, algumas das cenas imaginadas pelo cineasta substituem a imagem do ator na tela. Uma das ideias é voltar à Ilha dos Marinheiros, local onde ambos filmaram o curta Ilha das Flores (analisado na Etapa 1 desta Oficina). Na carta ainda, Furtado comenta a impressão de que o curta Ilha da Flores pouco ajudou a população da localidade e especula que o seu próximo projeto de cinema poderia ser realizado no mesmo lugar não apenas para filmar a comunidade, mas para efetivamente ajudar os moradores. Furtado sugere fazer isso empregando parte da verba destinada ao filme sobre fraternidade para a construção de obras no local. Enquanto Paulo José fala sobre isso aparecem imagens das obras sendo construídas. O texto final da carta diz: “Num país como o nosso, tão rico e com tanta pobreza, fraternidade é principalmente dividir melhor a riqueza. O que tu achas? Vamos fazer?”.
Note-se o expediente de Furtado: ao realizar o curta, ele consegue atender à demanda da instituição que lhe encomendou o filme e ao mesmo tempo ajudar a população do local onde vai ser gravado o curta. Além disso, subverte o gênero “publicidade institucional” ao realizar um documentário de forte carga reflexiva, pois o curta aponta o tempo inteiro para sua própria possibilidade de realização. Um aspecto muito interessante do filme é o contraste de temporalidades entre o texto verbal e as imagens. Enquanto o texto joga o filme para um futuro imaginado, ainda não concretizado, as imagens mostram, no presente da exibição fílmica, um passado que já concretizou aquilo que havia sido imaginado como futuro. Trata-se de um material riquíssimo para as aulas de língua portuguesa, pois abre espaço não apenas para se falar de documentário reflexivo, mas também para abordar os jogos enunciativos com a temporalidade.
1. Apresente para os alunos a propaganda abaixo e discuta os mecanismos anti-ilusionistas (preparação da modelo e recursos de edição) usados para mostrar o quanto a beleza veiculada nas publicidades é fabricada.
Dove: campanha pela real beleza - evolução. Tim Piper. Reino Unido, 2006, 1 min e 14 seg.
2. Exiba o curta-metragem O Sanduíche, de Jorge Furtado. Mostre a forma pela qual o filme mescla as fronteiras entre o real e o ficcional, fazendo o público duvidar do que vê. Por exemplo, destaque o modo como a obra inicia com a simulação de ser uma narrativa ficcional. Depois, ela dá a entender que é uma espécie de ensaio da obra ficcional referenciada de início. Um aspecto importante a ser observado é a forma como as frases “Seria ótimo. Seria”, enunciadas em forma de diálogo, aparecem em vários momentos do curta. Ora esse diálogo diz respeito ao contexto da cena corrente, ora constitui discurso citado, mencionado. Isso cria um jogo muito interessante de linguagem que torna ambivalente o funcionamento desse par dialógico. E é justamente esse tipo de funcionamento que cria a dúvida no espectador, especialmente quando esse par dialógico aparece no final do curta, durante as entrevistas com a plateia. Ao reproduzir na boca da plateia filmada os dizeres “Seria ótimo. Seria”, o filme “tira o tapete” do espectador, insinuando que mesmo esse trecho, que a princípio corresponderia a um registro do real, é pura encenação. Enfim, o curta trabalha com várias camadas que vão sendo desveladas à medida que mostra que aquilo que foi visto imediatamente antes era encenação.
O Sanduíche. Jorge Furtado. Brasil, 2000, 13 min.