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O documentário participativo está relacionado ao chamado “cinema-verdade francês”, o qual defende a ideia de que os filmes se mostrem como “realidades fílmicas”, e não retratos objetivos da realidade.
A realidade fílmica é resultante do encontro entre o cineasta e os atores sociais que ele filma, especialmente na forma de entrevistas e/ou possíveis intervenções que o documentarista venha a fazer/propor aos participantes do filme. Assim, o documentário participativo, por vezes, embaralha as fronteiras entre ficção e realidade.
O cinema-verdade chama a atenção para o fato de que até mesmo nas entrevistas as pessoas podem ficcionalizar a si mesmas. Portanto, não se deve deixar de olhar a entrevista como cena, performance, teatro que se faz em função do olhar coletivo encarnado na câmera.
O documentário participativo busca mostrar que a verdade de uma entrevista é a verdade do encontro entre quem filma e quem é filmado. Essa verdade não existiria se não fosse a câmera. Assim, o método participativo é o oposto da premissa do modo observacional, segundo a qual o que vemos é o que teríamos visto se estivéssemos presentes no momento da filmagem.
O modo participativo propõe uma série de considerações que envolvem a ética e a política do encontro entre alguém que comanda a câmera e a filmagem e outro que não a controla. Como o diretor e o entrevistado reagem um ao outro? Como negociam o controle e dividem responsabilidades? Até que ponto um diretor pode insistir num depoimento, quando este se mostra doloroso para o outro? Que responsabilidade tem o diretor pelas consequências, no outro, do ato da filmagem e sua posterior exibição?
Abaixo, destacamos um exemplo de documentário participativo. O diretor, Sérgio Roizenblit, entrevista uma senhora abordada ao acaso enquanto caminha por uma estrada de terra no município Exu em Pernambuco.
Roupa pra tirar retrato. Sérgio Roizenblit. Brasil, 2004, 3 min.
Agora, leia uma breve descrição e análise.
O curta-metragem Roupa pra tirar retrato (2004) se constrói a partir de um encontro breve e fortuito entre o diretor, que aparentemente é também quem segura a câmera e, portanto, filma a cena; e a personagem, uma senhora moradora da região. A situação é ao mesmo tempo prosaica e inusitada e a força do filme está justamente na sensibilidade de captar o instante e permitir que o diálogo que se desenrola entre diretor e personagem seja registrado tal qual ocorreu, sem cortes. A alternância entre quem entrevista e quem é entrevistado é outra graça do filme: primeiro é o diretor quem aborda a personagem criando o pretexto para a aproximação, e a personagem logo sente-se à vontade o suficiente para também fazer perguntas ao seu interlocutor. É possível ouvir a voz do entrevistador, que, portanto, inclui-se ativamente no registro, mas não vemos sua imagem em cena. O foco de atenção é a imagem e o discurso da senhora filmada, que cresce como personagem à medida que o filme lhe dá tempo para ser e se expressar diante da câmera, ganhando a simpatia e interesse também do espectador. As possíveis imperfeições do registro, como a câmera instável e mesmo a entrevista não programada são incorporadas à proposta e estética do filme. Esses “desvios” ou “ruídos” da filmagem reforçam o quanto o documentário está sujeito ao acaso e ao poder do encontro, que é a chamada “realidade fílmica”.
Eduardo Coutinho foi um grande documentarista brasileiro conhecido por seu estilo de entrevistar pessoas. Assista à entrevista que ele fez com a personagem Alessandra, uma jovem que à época das gravações do documentário Edifício Master vivia como garota de programa.
Edifício Master. Eduardo Coutinho. Brasil, 2002, 110 min.
Observe o interesse real de Coutinho pela vida da personagem e pelo que ela pensa. É a abertura para o encontro e para a escuta que permite ao longo da entrevista o surgimento de momentos reveladores, autênticos e muitas vezes surpreendentes. Por exemplo, quando ela diz que não teve infância, ele não toma essa afirmação como óbvia, mas pergunta: “Como é isso?”. Na sequência, quando Alessandra afirma que “foi legal” a primeira vez que saiu como garota de programa, ele a interrompe: “Como é que é a primeira vez?”. Seu tom não carrega um juízo moral, mas uma curiosidade pela história de vida do outro. Ao ouvir Alessandra dizer que quando morrer não quer que ninguém chore, Coutinho logo indaga por que ela quer isso, e quando ela afirma que se pudesse “ficava na mordomia” mais uma vez Coutinho não toma essa afirmação como óbvia ou trivial e pergunta: “O que é mordomia?”. No final, ele quer saber como ela teve coragem de falar para o filme (assumida como garota de programa), sabedora de que seria exibido para o público. Outra parte da entrevista a ser ressaltada é quando Alessandra diz ser mentirosa e Coutinho questiona quais mentiras ela contou na entrevista. Ela responde que não mentiu, mas que no dia anterior havia mentido para a equipe e se considera como “mentirosa verdadeira”.
1. Sugira aos alunos que, de surpresa, convidem desconhecidos ou amigos para participar de uma entrevista gravada no celular. Peça a eles que prestem atenção na atitude dessas pessoas, especialmente se elas “se ajeitam” para a câmera, se ficam incomodadas com o olhar da câmera ou conseguem permanecer naturais.
2. Divida a turma em equipes e peça-lhes que realizem uma entrevista com algum morador do bairro onde residem, perguntando, por exemplo: “Há quanto tempo você mora aqui?”, “O que mudou no bairro durante esse tempo?”, “Você avalia essas mudanças positiva ou negativamente?” etc. Oriente os alunos para que busquem extrair respostas individuais e subjetivas dos entrevistados, e não explicações e respostas genéricas. Por exemplo, se alguém disser que se sente feliz morando onde mora, instrua os alunos para que procurem saber o que é felicidade naquele contexto; o que de fato faz a pessoa ser feliz morando naquele local. Tome como modelo a postura do documentarista Eduardo Coutinho, observada anteriormente, de não se satisfazer com respostas óbvias, mas buscar quais sentidos os entrevistados conferem às palavras que usam para classificar sentimentos, situações, lembranças etc.
3. Na aula seguinte, escolha uma das entrevistas para analisar junto com os alunos. Observe como eles conduziram as perguntas, o nível de envolvimento e intervenção deles nas respostas dos entrevistados, os momentos de silêncio e de tensão etc.
Algumas afirmações do famoso documentarista brasileiro Eduardo Coutinho nos fazem entender melhor a concepção de “realidade fílmica”, bem como a possibilidade de as pessoas inventarem a si mesmas como personagens numa situação de filmagem em que elas interagem não apenas com o diretor, mas também com o público que eventualmente verá a obra.
“Há discursos que só nascem porque eu estou lá filmando. Todo documentário é extraordinário por causa disso.” (Entrevista concedida a Neusa Barbosa, publicada na revista Cineweb, em 2004).
“Como as pessoas em muitos filmes meus falam da vida privada, não há mentira e verdade. Como é que eu vou saber se a pessoa foi feliz ou infeliz? São dados que não são dados históricos. [...] Se perguntarem sobre a minha vida, vou fazer ficção e verdade, é uma memória que eu tenho, eu vou autocensurar ou não, é uma memória que eu tenho hoje, daqui a dez anos, quando eu falar do meu passado vai ser diferente. Ninguém pode ser fiel a um passado, porque você muda a cada dia, e você é falsa? Não! Você é isso: a memória que você tem hoje do seu passado. Diante de uma pessoa você vai dizer coisas que você não vai dizer daqui a um ano porque tua memória vai reelaborando o passado. Então, essa noção de verdade e mentira passa a ser secundária.” (Entrevista a Alcimere Piana e Daniele Nantes, publicada originalmente na revista Intermídias, em 2005)
“Você só chega à verdade pelo imaginário, e nem é um problema de se chegar à verdade, são versões da verdade. Uma pessoa pode dar um relato extraordinário da vida dela, um relato da história do Brasil que seja, que tem alguma coisa de verdade, e tem mil coisas que são inventadas; a pessoa se projeta no papel que não teve, e que a memória construiu. Mas não é completamente fictício, tem que ter uma base no real, para você subir ao imaginário e voltar.” (Entrevista a Valéria Macedo, publicada na revista Sexta-Feira, em abril de 1998).
Em Eu, um negro (1958), o cineasta Jean Rouch filma jovens nigerianos que chegam à Costa do Marfim em busca de trabalho. Como na época da realização do filme não havia recursos técnicos para captar o som direto, depois das filmagens Rouch convidou os participantes para dublarem a si mesmos, sugerindo que eles recriassem as situações em que se deixaram filmar interpretando figuras que gostariam de ser. Um dos protagonistas se autodenomina Edward G. Robinson, em homenagem ao ator americano. Seus amigos também escolhem pseudônimos. Com essa proposta, Rouch subverte o paradigma de que a voz over, típica do modo expositivo de representação, não se prestava à subjetividade dos criadores.
Conheça o documentário:
Eu, um negro. Jean Rouch. França, 1958, 70 min.