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A definição do que é documentário não é simples. Em geral, para se conceituar esse gênero, invoca-se outro tipo de fazer cinematográfico: o cinema de ficção.
Documentário e ficção foram, por muito tempo, pensados um em oposição ao outro. Do lado do documentário, a exigência da presença do real, da verdade, da objetividade; do da ficção, a ideia de encenação, do irreal, da subjetividade.
Se em seu nascedouro o documentário tinha a pretensão de reproduzir a realidade, com o passar do tempo cineastas e pesquisadores constataram que o documentário não é capaz de espelhar a realidade - o máximo que consegue é representá-la. Hoje, muitos documentaristas têm se esforçado para fazer que o espectador desconfie, duvide do que vê na tela, abandonando a ilusão de que o documentário é mera janela para a realidade, problematizando assim a noção de representação.
A maneira mais eficaz que os realizadores parecem ter encontrado para educar o olhar do público é embaralhando, no próprio filme, aquilo que é tido como característico do campo da ficção e aquilo que pertence tipicamente ao campo do documentário. Trata-se de investir na realização de um cinema autorreflexivo, que, distanciando-se de “uma imagem automática do mundo”, busca mostrar-se como construção discursiva, isto é, como a fabricação de um ponto de vista sobre a realidade.
Um dos primeiros exemplos de documentário a chamar a atenção sobre o processo de produção de seu discurso vem de Um Homem com uma câmera de Dziga Vertov. Em determinada altura, depois de um tempo acompanhando o trabalho de filmagem do cinegrafista Mikhail Kaufman, o filme congela as imagens captadas por ele e passa a apresentá-las na sala de montagem. A montadora, Elizaveta Svilova, manipula pedaços de película com os planos que o filme apresentou ou que ainda vai apresentar para o espectador. Ela corta, cataloga e une os registros, evidenciando o processo de construção do próprio filme. Veja o trecho a seguir.
Um Homem com Uma Câmera, Dziga Vertov. União Soviética, 1929, 68 min.
Aqui no Brasil, um excelente exemplo de filme autorreflexivo é Os dias com ele (2013) de Maria Clara Escobar. Nele, os recursos para documentar o real são não apenas evidenciados como até colocados em questão.
O filme consiste no reencontro da diretora com seu pai, o intelectual e dramaturgo Carlos Henrique Escobar, que se exilou há mais de uma década em Portugal depois de ter sido preso e torturado durante a ditadura militar. Tendo sido abandonada pelo pai muito cedo, a diretora tenta construir, com a filmagem, uma memória afetiva que ela não tem, mas o pai se recusa a abordar o passado nos termos da filha. O processo de produção do filme vai sendo disputado em cena, chamando a atenção para o fato de que o documentário é uma forma de representação.
Assista a um trecho:
Os dias com ele, Maria Clara Escobar. Brasil, 2013, 107 min.
Carlos Henrique Escobar está concentrado numa leitura, talvez o texto do que seja o projeto do filme, ou do que se quer dele enquanto personagem. Hesitante, ele pede que a filha defina suas intenções de cineasta, mas logo a seguir envereda por um caminho próprio, sua concepção do que deve ser o filme. Chega até a ensaiar uma sequência, a descrever de improviso um roteiro que seria mais adequado à filha seguir. Só que esse roteiro não diz respeito ao projeto da filha.
A cineasta interrompe o fluxo de fala autocentrada do pai com uma sequência de imagens de arquivo. Cada imagem apresenta um pequeno momento familiar com o relacionamento afetuoso entre pais e filhos. Mas o documentário subverte esse recurso tão comum, lançar mão de imagens de arquivo para ilustrar o que é dito, para colocar em evidência a impossibilidade de usar tal recurso. Como Maria Clara não pôde viver sua infância próxima da figura do pai, já exilado, não foi possível registrar imagens de pai e filha juntos. Os registros são do acervo de outras famílias, e a diretora faz questão de sublinhar: "Esse não é o meu pai".
O que as imagens apontam é para um vazio. Além disso, o corte anterior na fala do pai para essa sequência marcam, de certa forma, o gesto da cineasta diante do esboço de um outro filme que o pai vinha construindo e que não lhe interessava. O corte, as imagens de arquivo de outras famílias e a frase "Esse não é o meu pai", em alguma medida sinalizam para o espectador que a proposta de filme sugerida por seu pai, durante a negociação pré-entrevista, não é o filme que a diretora quer fazer: ao dizer "Esse não é o meu pai", é como se dissesse também "o filme dele não é o meu filme".
Quando termina a sequência, estamos de volta ao ambiente da entrevista. Carlos Henrique continua reivindicando para si o rumo do filme, e a negociação segue desencontrada. As palmas na frente da câmera servem como claquete para facilitar, na edição, a sincronização de imagem e som. Carlos Henrique apruma-se na cadeira para dar suas respostas, e só então é que começa a entrevista.
Fica claro aqui que o que vimos antes, toda a discussão sobre o projeto do filme, faz parte do que viria antes do "ação". Normalmente, seriam trechos descartados na montagem. A imagem do pai inclusive fica, em grande parte, mal enquadrada – a câmera corta sua cabeça –, só se corrigindo perto do começo da entrevista, quando estaria "valendo". Num documentário reflexivo, esses trechos são reveladores, eles registram a dinâmica complicada entre pai e filha, entre personagem e cineasta. O processo de filmagem da entrevista, aquilo que vem antes ou depois do "ação", tem o mesmo peso que a própria entrevista.
Para assistir ao filme na íntegra, clique aqui.
Veja um exemplo:
BARBOSA, Leonardo. Imagens camera HD 720P CFTV Qualitel. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z_Sg-3ejwXs
2. O curta Até o céu leva mais ou menos 15 minutos, de Camila Battistetti, está classificado no Canal Porta Curtas como “ficção”, mas ganhou prêmios em festivais de documentário. Então, como classificar esse filme? Ficção ou documentário? Vamos assistir a ele?
Até o céu leva mais ou menos 15 minutos. Camila Battistetti. Brasil, 2013, 13 min.
Leia o breve comentário e reflita com seus alunos sobre as questões levantadas.
O filme retrata algo bastante comum na relação entre mães e filhos pequenos: a paciência de que elas precisam para conviver com a variação de humor da criança. Num curto tempo, as crianças choram, se alegram, brigam com um irmão ou colega, fazem as pazes... E cabe às mães, em geral, lidar com essas situações.
Um evento específico é escolhido para mostrar essas circunstâncias: após o término de uma suposta festa infantil, mães e filhos – Lino, Dinorah e Ian – saem de carro para dar uma volta pela cidade. Infere-se que eles estavam numa festa porque entram no veículo com bexigas, olho de sogra, pirulitos e outros objetos típicos de festa infantil. Mas o que nos garante que eles realmente estavam numa festa? O que impediria a diretora de forjar essa situação? Afinal, confinar crianças no banco traseiro de um carro para provocar a interação entre elas facilita o registro das disputas e alianças para ficar com os objetos ganhados na suposta festa. Sabemos que isso ocorre na vida real.
Mas, então, será que é tudo mentira? É tudo encenação? Provavelmente, não. Em virtude da idade e do próprio comportamento das crianças dificilmente elas estariam ali encenando a si mesmas. O que se passa na tela, ao que tudo indica, apesar de poder ter sido provocado, é real.
O filme se define por essa mistura entre registro e artifício. Ele é o que se convencionou chamar de "documentário de dispositivo": um filme que estipula regras e limites precisos para que ele aconteça, e o registro da realidade é produto dessas condições de filmagem.
Em virtude dessas regras autoimpostas, os documentários de dispositivo se caracterizam normalmente pelo rigor. Aqui, no caso, isso fica evidente pela postura da câmera. Ela está o tempo todo no mesmo lugar, num enquadramento fixo, dirigido para o banco de trás, onde ficam acomodadas as três crianças. E qual seria a regra estabelecida pelo filme? Neste caso, ela não fica explícita, mas podemos arriscar uma hipótese: o registro da situação começa a valer a partir do momento em que as crianças entram no carro e só termina depois que elas tiverem dormido, quando então o carro pode estacionar. Nesse meio tempo, enquanto as crianças não dormirem, o carro precisa continuar circulando pela cidade. E as mães não podem permitir que as crianças se agridam, evidentemente.
Por que o filme opta pelo uso de um único enquadramento, sempre fixo? Porque isso enfatiza a ideia de que o que se vê é resultado da interação entre as crianças, e não de alguma manipulação externa. A câmera não mexer equivale a dizer que ninguém interferiu na filmagem. Isso ressalta a sensação de realidade presente no registro, passa a impressão de que as imagens estão mais próximas de um registro bruto.
Outro aspecto que nos faz crer na realidade dos fatos é o tempo mais longo de alguns planos. A duração estendida deles lembra o tempo real da vida. Além disso, podemos supor que esses planos, de diferentes durações e com o mesmo enquadramento, fazem parte de um registro mais longo ainda. Diferentemente do que indica o título, as crianças provavelmente levaram muito mais do que 15 minutos para dormir. De qualquer forma, como a narrativa dura aproximadamente 15 minutos, o título soa bem adequado.
O filme valeu-se desse registro longo e eliminou determinadas passagens para chegar perto dos 15 minutos mencionados. Esse trabalho de seleção e eliminação de trechos é evidenciado pelo tipo de corte utilizado, o jump cut, que suprime partes de um registro contínuo que possuem enquadramentos iguais ou muito semelhantes entre si, provocando a sensação de "saltos" na imagem – daí seu nome. O uso do jump cut reforça a sensação de registro puro ao mesmo tempo em que oferece os momentos mais cômicos do filme: num dos exemplos, aos 6 min e 34 seg, Dinorah chora porque quer mais um pirulito, mas a mãe não cede. Mas, aos 7 min e 31 seg, o novo jump cut nos mostra que Dinorah chupa mais um pirulito; o filme pula toda a negociação na qual a mãe dá o braço a torcer, surpreendendo-nos com o resultado: Dinorah ganhou essa.
Por fim, vale chamar a atenção para o fato de que não são apenas as mães que estão obrigadas a presenciar a confusão das crianças. Nós, que aceitamos ocupar a posição de espectadores, de alguma forma também estamos presos às situações que se desenrolam naquele carro. É o enquadramento fixo e imutável que determina para o espectador esse lugar inescapável, sem outra escolha. É como diz aquela frase, família a gente não escolhe.
Se o filme confunde o espectador a respeito do seu status, mais importante do que tentar definir se ele é documentário ou ficção é perceber quais as estratégias de linguagem que possibilitam associá-lo a um campo e ao outro. Aí reside a riqueza dessa obra.
O caráter ficcional do primeiro documentário
Nanook, o esquimó (1922), do antropólogo norte-americano Robert Flaherty, considerado o primeiro documentário da história do cinema, fez uso de encenações. Nanook é um filme etnográfico que narra o cotidiano de uma família esquimó e retrata costumes que na época da filmagem já não existiam. Com a intenção de resgatar culturas passadas, Flaherty pedia aos atores, não profissionais, que encenassem esses costumes antigos diante da câmera.
Em seu artigo “A dificuldade do documentário”, João Moreira Salles se pergunta por que Nanook é considerado o primeiro documentário da história se em A saída dos operários da Fábrica Lumière (1895), marco inaugural do cinema, é uma cena claramente não ficcional. O próprio Salles responde dizendo que o valor de Nanook está no fato de ele ultrapassar o mero registro, de não ser uma simples descrição da realidade, mas uma construção. Segundo Salles, Flaherty utilizou todo o arsenal da cinematografia clássica (encenação, cuidados com fotografia, enquadramento, movimento de câmera, montagem etc.) para criar uma história.