Bloco 1

Oficina 1

Etapa 2

Fronteiras entre documentário e cinema de ficção

A definição do que é documentário não é simples. Em geral, para se conceituar esse gênero, invoca-se outro tipo de fazer cinematográfico: o cinema de ficção.

Documentário e ficção foram, por muito tempo, pensados um em oposição ao outro. Do lado do documentário, a exigência da presença do real, da verdade, da objetividade; do da ficção, a ideia de encenação, do irreal, da subjetividade.

 

Do espelho que reflete o real para a reflexão sobre a representação

Se em seu nascedouro o documentário tinha a pretensão de reproduzir a realidade, com o passar do tempo cineastas e pesquisadores constataram que o documentário não é capaz de espelhar a realidade - o máximo que consegue é representá-la. Hoje, muitos documentaristas têm se esforçado para fazer que o espectador desconfie, duvide do que vê na tela, abandonando a ilusão de que o documentário é mera janela para a realidade, problematizando assim a noção de representação.

A maneira mais eficaz que os realizadores parecem ter encontrado para educar o olhar do público é embaralhando, no próprio filme, aquilo que é tido como característico do campo da ficção e aquilo que pertence tipicamente ao campo do documentário. Trata-se de investir na realização de um cinema autorreflexivo, que, distanciando-se de “uma imagem automática do mundo”, busca mostrar-se como construção discursiva, isto é, como a fabricação de um ponto de vista sobre a realidade.

Um dos primeiros exemplos de documentário a chamar a atenção sobre o processo de produção de seu discurso vem de Um Homem com uma câmera de Dziga Vertov. Em determinada altura, depois de um tempo acompanhando o trabalho de filmagem do cinegrafista Mikhail Kaufman, o filme congela as imagens captadas por ele e passa a apresentá-las na sala de montagem. A montadora, Elizaveta Svilova, manipula pedaços de película com os planos que o filme apresentou ou que ainda vai apresentar para o espectador. Ela corta, cataloga e une os registros, evidenciando o processo de construção do próprio filme. Veja o trecho a seguir.

Um Homem com Uma Câmera, Dziga Vertov. União Soviética, 1929, 68 min.

Aqui no Brasil, um excelente exemplo de filme autorreflexivo é Os dias com ele (2013) de Maria Clara Escobar. Nele, os recursos para documentar o real são não apenas evidenciados como até colocados em questão.

O filme consiste no reencontro da diretora com seu pai, o intelectual e dramaturgo Carlos Henrique Escobar, que se exilou há mais de uma década em Portugal depois de ter sido preso e torturado durante a ditadura militar. Tendo sido abandonada pelo pai muito cedo, a diretora tenta construir, com a filmagem, uma memória afetiva que ela não tem, mas o pai se recusa a abordar o passado nos termos da filha. O processo de produção do filme vai sendo disputado em cena, chamando a atenção para o fato de que o documentário é uma forma de representação.

Assista a um trecho:

Os dias com ele, Maria Clara Escobar. Brasil, 2013, 107 min.

Carlos Henrique Escobar está concentrado numa leitura, talvez o texto do que seja o projeto do filme, ou do que se quer dele enquanto personagem. Hesitante, ele pede que a filha defina suas intenções de cineasta, mas logo a seguir envereda por um caminho próprio, sua concepção do que deve ser o filme. Chega até a ensaiar uma sequência, a descrever de improviso um roteiro que seria mais adequado à filha seguir. Só que esse roteiro não diz respeito ao projeto da filha.

A cineasta interrompe o fluxo de fala autocentrada do pai com uma sequência de imagens de arquivo. Cada imagem apresenta um pequeno momento familiar com o relacionamento afetuoso entre pais e filhos. Mas o documentário subverte esse recurso tão comum, lançar mão de imagens de arquivo para ilustrar o que é dito, para colocar em evidência a impossibilidade de usar tal recurso. Como Maria Clara não pôde viver sua infância próxima da figura do pai, já exilado, não foi possível registrar imagens de pai e filha juntos. Os registros são do acervo de outras famílias, e a diretora faz questão de sublinhar: "Esse não é o meu pai".

O que as imagens apontam é para um vazio. Além disso, o corte anterior na fala do pai para essa sequência marcam, de certa forma, o gesto da cineasta diante do esboço de um outro filme que o pai vinha construindo e que não lhe interessava. O corte, as imagens de arquivo de outras famílias e a frase "Esse não é o meu pai", em alguma medida sinalizam para o espectador que a proposta de filme sugerida por seu pai, durante a negociação pré-entrevista, não é o filme que a diretora quer fazer: ao dizer "Esse não é o meu pai", é como se dissesse também "o filme dele não é o meu filme".

Quando termina a sequência, estamos de volta ao ambiente da entrevista. Carlos Henrique continua reivindicando para si o rumo do filme, e a negociação segue desencontrada. As palmas na frente da câmera servem como claquete para facilitar, na edição, a sincronização de imagem e som. Carlos Henrique apruma-se na cadeira para dar suas respostas, e só então é que começa a entrevista.

Fica claro aqui que o que vimos antes, toda a discussão sobre o projeto do filme, faz parte do que viria antes do "ação". Normalmente, seriam trechos descartados na montagem. A imagem do pai inclusive fica, em grande parte, mal enquadrada – a câmera corta sua cabeça –, só se corrigindo perto do começo da entrevista, quando estaria "valendo". Num documentário reflexivo, esses trechos são reveladores, eles registram a dinâmica complicada entre pai e filha, entre personagem e cineasta. O processo de filmagem da entrevista, aquilo que vem antes ou depois do "ação", tem o mesmo peso que a própria entrevista.

Para assistir ao filme na íntegra, clique aqui.

 

Atividades

  1. Exiba imagens de câmeras de segurança (abaixo indicamos um vídeo como exemplo, mas você pode escolher outros) e discuta com os alunos se o fato de se tratar de um registro do real faz de tais imagens um documentário. Mostre que a falta de intencionalidade na captação das imagens, a ausência de argumento, de tese, é o que distancia as imagens do documentário.

Veja um exemplo:

BARBOSA, Leonardo. Imagens camera HD 720P CFTV Qualitel. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z_Sg-3ejwXs

2. O curta Até o céu leva mais ou menos 15 minutos, de Camila Battistetti, está classificado no Canal Porta Curtas como “ficção”, mas ganhou prêmios em festivais de documentário. Então, como classificar esse filme? Ficção ou documentário? Vamos assistir a ele?

Até o céu leva mais ou menos 15 minutos. Camila Battistetti. Brasil, 2013, 13 min.

Leia o breve comentário e reflita com seus alunos sobre as questões levantadas.

PARA SABER MAIS

O caráter ficcional do primeiro documentário

Nanook, o esquimó (1922), do antropólogo norte-americano Robert Flaherty, considerado o primeiro documentário da história do cinema, fez uso de encenações. Nanook é um filme etnográfico que narra o cotidiano de uma família esquimó e retrata costumes que na época da filmagem já não existiam. Com a intenção de resgatar culturas passadas, Flaherty pedia aos atores, não profissionais, que encenassem esses costumes antigos diante da câmera.

Em seu artigo “A dificuldade do documentário”, João Moreira Salles se pergunta por que Nanook é considerado o primeiro documentário da história se em A saída dos operários da Fábrica Lumière (1895), marco inaugural do cinema, é uma cena claramente não ficcional. O próprio Salles responde dizendo que o valor de Nanook está no fato de ele ultrapassar o mero registro, de não ser uma simples descrição da realidade, mas uma construção. Segundo Salles, Flaherty utilizou todo o arsenal da cinematografia clássica (encenação, cuidados com fotografia, enquadramento, movimento de câmera, montagem etc.) para criar uma história.