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Com base no roteiro técnico de edição, o editor começa a montar o filme. Diz-se frequentemente que é só nesse momento que, de fato, se “encontra” o filme.
Cabe à edição juntar o material filmado num todo coerente, o filme. Não se trata simplesmente de conectar uma imagem à outra mecanicamente, mas de sequenciá-las de forma que adquiram um significado que isoladamente não possuem.
A montagem consiste na criação de relações entre os planos, seja de semelhança, seja de oposição, implicação, continuidade etc. Para tanto, o montador faz uso de vários recursos da linguagem cinematográfica (corte, fusão, fade-in, fade-out, congelamento da imagem, elipses etc.). Com esses recursos, ele vai dando ritmo ao filme.
Mas editar não é simplesmente imprimir um timing à narrativa. Cabe à montagem organizar discursivamente os acontecimentos fílmicos tendo em vista determinados propósitos, sejam eles retóricos, dramáticos, éticos ou estéticos.
Para conferir esses usos da montagem na configuração tanto estética quanto estrutural do filme, assista ao documentário Além das secas (2019).
Além das secas. Lethícia Alencar, Sabrina Soares, Yasmin Rocha. Brasil, 2019, 5 min.
Se quiser se aprofundar no filme, leia uma breve descrição e análise.
Além das secas é um documentário que aborda a escassez de água no sertão nordestino e a memória da seca segundo o olhar de quatro agricultores. O filme situa como espaço privilegiado a região do Canindé, tido como "o sertão mais ruim que tinha pra chover", e traz o depoimento desses personagens para localizar o passado de falta d'água mais acentuada, como aconteceu em 1958, e a situação atual mais remediada, com chuvas e açudes cheios.
Apesar desse recorte específico, o documentário aposta, em determinados momentos, num discurso universalizante, possivelmente como estratégia retórica para capturar e seduzir o espectador. Logo no início, parte da premissa de que a água é um elemento essencial à vida, e que sua escassez é fator de sofrimento. Já no fim, enuncia que o excesso de sol dá oportunidade à manifestação da fé e da perseverança, elementos que caracterizariam o sertanejo. Os dois momentos funcionam então como uma moldura retórico-universal que contém, no seu intervalo, as experiências particulares que lhe servem de objeto. E essa diferença de posturas traz implicações diferentes para a montagem.
Logo no início, o prólogo introduz, através de narração em voz over, o elemento que atravessa a vida (em geral) e as vidas (em específico). A partir da palavra-chave "água", a narração explica sua importância para a manutenção da vida no planeta, constata que ela está sujeita à escassez por causa do clima ou da ação do homem, e que no Ceará as secas ficaram gravadas na dor e na memória do sertanejo.
Essa contextualização pode ser associada à vertente do documentário expositivo, que preza pela ênfase didática através de uma voz que possui prerrogativa e precedência sobre as imagens. No entanto, ao invés de reforçar o caráter explicativo da narração, a montagem procede de modo diverso, atenuando-o. Com bastante eficiência, ela propõe imagens que possuem um encadeamento próprio, e que não estão diretamente subordinadas ao discurso verbal.
Um erro bastante frequente ao editar imagens que precisam se relacionar com um texto narrado é buscar planos que dupliquem o conteúdo textual, como ilustrações do que se fala: dizer "céu" e mostrar um plano do céu, e assim sucessivamente. Outro erro seria marcar o início e fim das imagens com base na voz over – prevalência do texto sobre as imagens –, ou encadear planos distintos sempre com a mesma duração, tornando o ritmo algo mecânico.
Pois o filme se encarrega de escapar dessas armadilhas. Já a primeira palavra, "água", que teria tudo para ser repetida na imagem, não coincide com qualquer figura, é antes enunciada sobre a tela preta. A partir daí, a voz over permanece em silêncio, enquanto assistimos a uma sequência de planos distintos com o elemento água em comum. Cabe destacar que essa reiteração de imagens é rica em variações: vemos queda d'água, fio que sai da torneira, pingos sobre uma planta, baldes cheios e mangueira. E cada plano possui uma duração própria, que não coincide com a do anterior, o que imprime ao filme um ritmo mais rico, mais diversificado. Isso fica reforçado pelo uso do corte seco, uma opção consistente ao longo de todo o filme, que delimita com precisão as durações – as fusões tenderiam a torná-las mais diluídas, mais difusas.
Quando a voz retoma o fio da meada, de modo geral não será para elencar o que vemos. Só eventualmente, como quando lista planta, animais e seres humanos, o que é acompanhado pela imagem. Esse tipo de paralelismo é pontual, o que também contribui para enriquecer a montagem do filme: texto e imagem seguem discursos próprios, caminhos autônomos, mas se reencontram de tempos em tempos para afirmar a pertinência de um ao outro.
Se, no modo expositivo, o discurso textual forma uma base sólida – aqui, melhor seria dizer base líquida, como um açude que sustenta a vida de uma região –, o percurso desenhado pela imagem seria como o de uma pedra lançada longe, que toca a superfície das águas apenas para ricochetear e saltar em seguida. A imagem segue um outro fluxo, e a lógica mais expositiva do texto passa a ser acompanhada por uma camada de imagem que tem a ambição de se descolar (ou decolar), numa inclinação mais poética. Essa inclinação fica mais evidente no fim do filme, quando ela assume a direção.
Antes, porém, fiquemos nessa primeira trajetória que a imagem descreve. No prólogo, portanto, ela sobrevoa o texto, tocando-o ligeiramente. Já na conclusão do prólogo, a imagem aterrissa de vez sobre a superfície expositiva.
Depois que a voz over anuncia que a seca está marcada na memória de algumas pessoas, o filme sai do registro universal para encontrar um tempo, um lugar e personagens particulares. O deslocamento da equipe, acompanhado nos planos de estrada e de placas, anuncia a aproximação a Canindé (a 10 km dali) e a paisagem indica que estamos no sertão.
A partir daí, a estrutura do documentário comportará três blocos de entrevistas. No primeiro, cita-se a seca de 1958, a ameaça de sede e fome, as filas enormes para receber água que seria usada pra tudo, menos pra beber. No segundo bloco, somos apresentados a alguém cuja profissão é a de carregar água na carroça pra trazer pra comunidade, e ficamos sabendo que os poços e açudes andam melhores no último ano, há mais chuva e viver no sertão ficou mais fácil com cisternas e poços artesianos nas casas. Já o terceiro é dedicado à figura de São José como protetor das águas, e que os personagens chegaram a rezar pra que viesse chuva.
Nos três blocos, o modo privilegiado é o expositivo. A imagem recolhe-se num vôo tímido, rasante e colado à superfície, obedecendo ao encadeamento textual. O entrevistado fala, mostra-se a imagem dele falando. O interesse sobre o conteúdo do que o personagem fala dita o passo, como se dar margem para outra coisa fosse recurso desperdiçado. Acumulando jump cuts, a montagem não chega a oferecer espaço para hesitações, para construções mais frouxas – mais fluidas. Vacilou, corta fora.
Nessa outra lógica, onde a exposição da informação ganha protagonismo, impressiona a articulação da montagem, sempre precisa na decisão dos pontos de corte, sempre articulando pontes para que o próximo trecho de fala se relacione com o anterior, sobretudo quando essa ligação é frágil. Se repararmos bem, veremos que os intervalos entre os blocos 1 e 2, e entre o 2 e 3, não apresentam ligações textuais lógicas. Quem realiza a costura é a montagem, mantendo a mesma trilha musical de fundo como elemento unificador; criando relações através da imagem, como quando Maria Lucineide diz "a gente sofria a falta d'água", e a imagem a seguir é de um açude, que antecede a figura de Alberto da Rocha, personagem que busca água nesses locais; e criando respiros, com pausas no encadeamento de falas entre os blocos. Se essas falas não ligam lé com cré, juntá-las soaria estranho e arbitrário, por isso a montagem acerta ao separá-las.
Perto do fim, o filme vai dos depoimentos sobre a importância de São José como protetor das chuvas para a conclusão com narração em voz over; esta versa sobre a fé, esperança e força do sertanejo, que crê em Deus e nas águas. O filme retoma a estratégia retórica do prólogo, mas não serão apenas as imagens que assumem o registro poético. O texto torna-se o mais lírico até então, como quando diz: "As lástimas, ao serem cantadas, viram cultura. As lágrimas, quando plantadas, crescem em preces e mais preces".
Para fazer par a esse lirismo, a montagem destaca a dimensão plástica das imagens, explorando contraluzes e texturas, além de concatenar imagens com base na reiteração de um mesmo movimento, seja da câmera ou de um gesto em cena. Chama a atenção a fluidez da montagem, e como ela modula o status das imagens, como no plano que sai do céu azul e revela, aos poucos, uma estátua religiosa – provavelmente de São José: um mesmo plano começa com uma ênfase nas relações de cor e luz para adquirir uma concretude referencial.
Nessa altura do documentário, o título ganha um sentido mais completo. Afinal, "além das secas" refere-se não apenas a um momento histórico onde o sofrimento encontra-se remediado; refere-se também à manifestação de um desejo, por parte do filme, que é de transcendência para além da superfície da realidade. Um desejo que já se prefigurava lá atrás, desde antes da primeira imagem surgir, quando o filme ganha vida depois que se menciona – que se ordena – "água". Se no princípio era o Verbo, como ensina o Evangelho de João, Além das secas estipula que no princípio de tudo vem a água.
Recapitulando, o filme abre com a coexistência de dois modos distintos, o expositivo e o poético; no desenvolvimento, permite que o primeiro predomine, e na conclusão dá margem para que o segundo sobressaia. Ainda que a montagem tenha realizado, ao longo de todo o documentário, um trabalho bastante competente, fica a sensação de que, na última passagem, algo ficou a desejar. Pontualmente, ela funciona: Alberto da Rocha apresenta os temas da água, da vida e da esperança, de forma sintética, numa única frase: "E a esperança da gente é aparecer água, que água é a nossa vida, né?". É esse o impulso que o filme pega para construir a sequência final. O problema é que ele, por si só, não basta.
Para o salto ser completo, seria necessário que as entrevistas estivessem atravessadas pela espiritualidade que o filme almeja no final. Ninguém narra os episódios de seca com esse olhar, não há um sinal de intervenção divina nos relatos. Pelo contrário, fala-se bem da intervenção mundana do DNOCS, CSU, da Defesa Civil e do governo alemão, para ir um pouco além. O bloco sobre a presença de São José também não é suficiente, porque São José não parece estar presente nas falas.
A despeito da intenção dos realizadores, fica a impressão de que aquela pedra lançada lá no começo não encontra força suficiente para escapar das águas e levitar.
Em geral, o processo de edição é marcado por um enxugamento gradual das partes menos essenciais ao filme. Raras são as vezes em que se verifica o percurso inverso, de acréscimo em vez de supressão de cenas e planos, bem como de tempo, em cada um desses planos que registram as ações do filme.
Na etapa de edição, além de juntar e ordenar as sequências selecionadas para o documentário (entrevistas, cenas de ação, material de arquivo, animação gráfica etc.), os alunos deverão limpar o material bruto até chegar a uma versão de 5 minutos que corresponda à ideia inicial do projeto.
É comum, nesta etapa, descobrir que determinados materiais de arquivo são mais adequados ao filme do que os anteriormente previstos. Por isso, recomenda-se checar novamente a necessidade de autorização dos materiais selecionados e se eles encontram-se devidamente autorizados (mais informações no menu Autorizações).
Em geral, não se obtém essa versão de imediato. É preciso paciência, tempo, dedicação e clareza do que se quer para se chegar a um resultado satisfatório. Comumente o trabalho do montador é solitário, mas neste caso é importante que toda a equipe participe da fase de montagem emitindo opiniões.
À medida que a montagem do documentário for avançando, é importante fazer backups das versões ainda não acabadas, o que evita o risco de perder todo o material justo na reta final.
Existem diversos programas que auxiliam a edição de documentários, juntam trechos gravados, adicionam áudios e trilhas sonoras e imprimem os créditos. Você pode utilizar o de sua preferência. Porém, boa parte deles exige pagamento para sua utilização. Escolhemos aqui, então, um editor gratuito que, de forma simplificada, permite montar seu filme com tudo aquilo de que você precisa: o Lightworks. No link a seguir você encontrará um tutorial de instalação e links para vídeos que ensinam a utilizar o programa. Clique aqui para acessar.
Além do Lightworks, há outros softwares de edição de vídeo gratuitos: