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Ainda paira no imaginário social a ideia de que as aulas de Língua Portuguesa compreendem exclusivamente os aprendizados de gramática, a produção de alguns gêneros textuais já incorporados pela escola, como é o caso das dissertações tão cobradas nos vestibulares e, sobretudo no âmbito do Ensino Médio, a leitura dos clássicos da literatura brasileira. Essa percepção se reflete, muitas vezes, na própria visão dos estudantes, que encaram a disciplina como um espaço dedicado somente a práticas mais estritas de leitura e escrita. Entretanto, há muito as práticas contemporâneas de linguagem fazem parte do dia a dia desses estudantes, e mesmo dos professores, como a forte presença cotidiana das redes sociais, bastante visuais e interativas, como Instagram, Facebook, Twitter e, mais recentemente, o Tik Tok, um aplicativo voltado à edição de vídeos que se tornado uma febre mundial. Assim, torna-se fundamental compreender o ensino de Língua Portuguesa como um processo atravessado por múltiplas linguagens e códigos que extrapolam a escrita, mas não prescindem dela, como é o caso do gênero Documentário.
O filme documentário é constituído pela linguagem audiovisual, mas pode se valer da escrita como parte do seu processo de concepção, produção e difusão, havendo uma conexão entre o campo da palavra e o campo da imagem. A escrita da sinopse, por exemplo, gênero cuja principal função é apresentar o filme em linhas gerais, é uma importante estratégia de divulgação da obra e pode ser um dos motivos que leva alguém a escolher assistir a determinado documentário. A sinopse traz uma definição clara e objetiva sobre o filme, mas atrativa o suficiente para despertar o desejo de assistir a ele, e acompanha o filme em catálogos, programações de TV, de cinema, de festivais, etc. O documentário em si, por sua vez, apresenta uma narrativa audiovisual cuja concepção, planejamento e organização se ancoram no argumento, um texto mais extenso que a sinopse, que descreve a concepção e conteúdo do filme, bem como os recursos de linguagem. É a partir dele que se produz, por fim, outro gênero também importante: o roteiro, que indica o que e como serão gravadas as cenas, as entrevistas, os espaços, os personagens, organizando o início, o meio e o fim da obra, sendo responsável por apontar sua estrutura e evidenciar o discurso do documentário.
Diante do grande desafio que parece ser o trabalho com documentário em sala de aula, é, portanto, essencial considerar que esse gênero não está dissociado de um trabalho com a Língua Portuguesa, sobretudo por ser um tipo de produção audiovisual que não é espontânea, mas organizada em várias etapas, em que que a escrita atua ativamente na concepção e organização de ideias, valores e perspectivas sobre um aspecto do real que se deseja concretizar por meio de imagens, sons e palavras. O documentário pode ser planejado previamente à luz dos objetivos e interesses que o movem, o que se dá por meio da escrita do argumento e da produção de um roteiro, importantes para o direcionamento e para a realização do filme, que deverá ser sintetizado posteriormente por meio da sinopse. Para fins didáticos, elegemos esses três gêneros para constituírem o projeto escrito a ser produzido pelos estudantes e entregue junto com o documentário.
É importante pontuar que o documentário não tem o dever de ilustrar o que está escrito no projeto, muito menos o filme deve necessariamente nascer primeiro pela escrita, pois tanto a escrita quanto a realização do documentário se configuram como processos distintos, embora possam se influenciar mutuamente. Um documentário pode ser concebido a partir de uma imagem, de um objeto, de um personagem, bem como aquilo que foi apresentado no projeto pode ser modificado ou repensado à luz do que foi efetivamente produzido e realizado. Em outras palavras, tanto o projeto escrito quanto o documentário têm linguagens, especificidades e, sobretudo, papéis diferentes, de maneira que um não tem obrigação de espelhar o outro. Trata-se, na verdade, de estabelecer uma relação de coerência entre essas duas partes, em que ambas se complementam, e a figura do professor é fundamental no direcionamento desse processo. Nesse material, orientamos que o processo de concepção e organização da produção do documentário comece com a escrita do projeto, pois acreditamos que esse é um bom caminho para a organização e apresentação das ideias, bem como para o planejamento do trabalho a ser executado.
O audiovisual tem uma presença cada vez mais forte no cotidiano dos jovens, inundado de celulares, câmeras, redes sociais, vídeos, e muitos têm saído de uma posição passiva de consumo para uma posição ativa como produtores de conteúdo, ao tirarem suas próprias fotos, gravarem seus próprios vídeos, escreverem inúmeras postagens, mas sem, muitas vezes, um trabalho reflexivo e uma consciência sobre a linguagem. Trabalhar com o documentário em sala de aula pode ser uma forma de canalizar o ímpeto criativo que tem marcado os adolescentes em prol de uma produção audiovisual que lhes possibilite ver o potencial que esse gênero tem de contar uma história sobre uma pessoa, um lugar, um momento histórico, um problema social a partir da palavra, do som e, especialmente, da imagem. Além disso, considerando a facilidade que os jovens têm de manejar a tecnologia – e, mesmo quando não sabem, têm facilidade em aprender –, o trabalho com documentário em sala de aula é uma maneira potente de combinar o conhecimento e o repertório de professores(as), sobre os usos e possibilidades da língua no processo criativo de escrita do projeto, com as habilidades, o senso de descoberta e a criatividade dos(as) alunos(as), para a produção de narrativas que podem contribuir para uma maior variedade de olhares a respeito de uma realidade tão multifacetada como a do Brasil.
Para produzir um documentário é necessário pensar sobretudo em imagens, que devem buscar expressar ideias, intenções e objetivos do documentarista, elementos registrados no projeto escrito. Diferentemente de um artigo de opinião, em que conceitos e argumentos são trabalhados por meio da escrita, no documentário há o uso da imagem no processo de construção de sentido, materializando ideias e conceitos que foram descritos e pensados na parte escrita. Dessa maneira, a escrita serve como uma espécie de bússola do documentário, permitindo não apenas orientar o processo de produção, mas também contrastar se e quanto a elaboração imagética expressa a ideia que se quer transmitir, como apresentada no argumento. Por exemplo, em um documentário sobre o trabalho de professores de um município que tenha em seu argumento o objetivo de denunciar a precariedade da infraestrutura das escolas a partir do ponto de vista dos docentes, seria adequado apresentar cenas que focalizem apenas as péssimas condições estruturais da escola ou os alunos? Responder essa pergunta exige, no caso da produção de um documentário, voltar-se para aquilo que aparece na parte escrita dele, sobretudo seu argumento, para avaliar se há coerência entre aquilo que aparece no projeto e o que será efetivamente realizado.
Ao começar a trabalhar em sala de aula com o gênero documentário, é importante considerar a familiaridade que muitos alunos provavelmente já têm com relação à produção de imagens e gravação de vídeos, de maneira que, antes de entrar propriamente no tema, seria interessante convocá-los inicialmente a uma reflexão sobre a relação entre palavra e imagem e as intenções e sentidos que suas próprias postagens nas redes sociais têm. Considerando a dinâmica de curtidas (likes), comentários e compartilhamentos que marcam essas redes, que intenções eles têm quando postam ou compartilham algum conteúdo? O que eles percebem sobre a relação entre o texto que escrevem e a imagem ou vídeo que acompanha a postagem? É necessário ter alguma coerência? Há muita diferença ao postar uma foto ou gravação sem ser acompanhado por algum texto? A partir disso, é possível começar a falar sobre a importância da escrita para o gênero Documentário.
1) Divida a sala em grupos e entregue para cada um deles a proposta de tema para o texto dissertativo-argumentativo dos últimos quatro exames do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM):
Diga aos alunos que, em vez de escrever um texto dissertativo-argumentativo, eles terão que planejar um documentário sobre o tema que lhes foi designado, podendo estabelecer um recorte temático mais específico a partir deles. Considerando as noções iniciais que eles tiveram sobre o que envolve o projeto escrito de um documentário, peça que eles escrevam no papel sua proposta.
Orientações para a atividade:
2) Na aula seguinte, peça para que cada grupo leia em voz alta a proposta elaborada e proponha uma reflexão para a sala de aula sobre a diferença entre escrever um artigo de opinião e propor um documentário sobre os temas trazidos.
Algumas perguntas que podem nortear a reflexão: