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As transformações conceituais, procedimentais e de linguagem pelas quais o documentário tem passado revelam que, como qualquer outro gênero textual-discursivo, ele não é estático. Modificações tecnológicas e sócio-históricas geram reconfigurações no próprio gênero. Atualmente, o termo “documentário” reúne diversas formas de representar o real.
Neste Caderno, tomamos como base a classificação proposta por Bill Nichols, importante estudioso do gênero Documentário.
Nichols sugere que esse gênero abarca seis subgêneros: expositivo, poético, participativo, observacional, reflexivo e performativo. Cada um deles opera com base em convenções que lhe são específicas.
No entanto, é preciso enfatizar que a identificação de um documentário com um modo de produção não precisa ser total, ou seja, um documentário participativo pode conter segmentos poéticos, por exemplo. Quando vinculamos um documentário a determinado subgênero, essa classificação se baseia em características dominantes, e não exclusivas.
Nesta Oficina, vamos discorrer sobre cada um desses subgêneros.
A maioria das pessoas reconhece o modo expositivo como “o gênero Documentário”, ou seja, como uma espécie de “forma universal” do gênero. Isso se explica muito provavelmente por ser esse modo uma das primeiras formas de representação documental, surgida ainda na década de 1920 e classificada como “documentário clássico”.
Além disso, o fato de os noticiários de TV, frequentemente presentes no cotidiano das pessoas, também buscarem um modo de representação objetiva, neutra (como vimos na Oficina 1), torna ainda mais familiar o modelo.
No modo expositivo de representação da realidade, o documentarista aspira passar a impressão de objetividade (lembrando sempre que essa objetividade total é uma impossibilidade). Assim, a voz que narra os fatos busca julgar as ações do mundo histórico sem com elas se envolver. Para tanto, o documentarista investe em estratégias de enunciação que causam efeito de distanciamento, neutralidade, indiferença e onisciência, as quais correspondem à maneira como a voz que narra surge na tela:
Esses recursos são muito utilizados em documentários de cunho científico e didático dotados de forte função moral, social e pedagógica.
O trecho abaixo, retirado do documentário Aranhas, exibido pelo Animal Planet, com direção e ano desconhecidos, é um bom exemplo do modo documental expositivo. Nele, uma voz over encarrega-se de dar todas as informações sobre a espécie sem que elas sejam questionadas. A locução tem caráter descritivo. Não há entrevistas ou depoimentos. É importante observar o papel secundário das imagens, que, apesar de bem filmadas, servem apenas para ilustrar o que está sendo dito. Assista:
Aranhas, exibido pelo Animal Planet (direção e ano desconhecidos).
Em geral, no documentário expositivo as imagens servem somente para comprovar aquilo que é narrado, ou seja, o comentário verbal é de ordem superior às imagens. No entanto, é necessário lembrar que dentro de uma perspectiva de construção irônica do argumento, por vezes, as imagens podem mostrar justamente o oposto do que se diz, criando uma contradição entre discurso verbal e visual.
O documentário Ilha das Flores, de Jorge Furtado, muito popular nas escolas, é um exemplo desse tipo. No Canal Porta Curtas, ele está classificado como “documentário experimental”. Tal especificação se justifica porque ele inova a linguagem, especialmente quando se considera a época de sua produção: 1989. Ilha das Flores mistura artifícios típicos da ficção com recursos do documentário. Assista ao filme:
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Ilha das Flores segue, desde sua plantação até seu descarte em um lixão, a trajetória de um tomate. Mas não faz isso como se fosse uma reportagem jornalística, cria uma narrativa ficcional para acentuar a denúncia social que o documentário aspira alcançar: a crítica ao sistema capitalista, que relega parte dos seres humanos, especialmente aqueles que não têm dinheiro, a uma vida indigna.
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Ao apostar no recurso da encenação, o curta evita uma fórmula já conhecida para falar do tema: mostrar imagens de pessoas catando lixo para depois entrevistá-las. A narrativa ficcional surpreende com a forma pela qual a história é apresentada. Muito desse impacto se deve à mistura que o filme faz entre estratégias normalmente reconhecidas como pertencentes ao documentário, como apresentação de dados e informações, a voz over, a gravação de locais e situações reais, e outras típicas da ficção, como a criação de personagens e a encenação. Por sua vez, o realismo típico da dramaturgia televisiva é quebrado quando se investe numa mise-en-scène teatral e no gesto posado dos atores para a câmera.
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Ilha das Flores toma o documentário expositivo clássico para, a partir das características próprias da linguagem desse tipo, mostrar outro funcionamento possível do modelo. Por meio de complexo jogo de montagem, proporcionado especialmente pelo contraste entre imagem e locução e pela alternância entre repetição de informações e quebra de expectativa, o documentário expõe o recurso da ironia. É o que ocorre, por exemplo, quando na narração em voz off ouvimos o narrador dizer que o ser humano tem a capacidade de realizar um sem-número de melhoramentos em seu planeta e a imagem que se segue é a da explosão de uma bomba atômica.
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O caráter irônico é reforçado pelo ritmo e entonação da narração que o narrador confere às frases e palavras. A montagem tem papel fundamental na construção da ironia, pois as imagens sequenciadas evocam determinados sentidos, ora complementares, ora inesperados.
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Ao final, há uma mudança expressiva no ritmo da montagem e no tom da narração. A imagem fica em câmera lenta enquanto observamos mulheres e crianças catando lixo. Esses recursos de linguagem interrompem o fluxo do filme e instauram um ritmo solene e reflexivo. O trecho do poema “Romanceiro da Inconfidência” reforça esse tom e nos faz pensar na condição humana.
Ilha das Flores. Jorge Furtado. Brasil, 1989, 11 min.
Agora, leia uma breve descrição e análise.
Se tiver curiosidade, leia uma versão do roteiro desse filme aqui.
Do ponto de vista narrativo, Ilha das Flores segue, desde sua plantação até seu descarte em um lixão, a trajetória de um tomate. Mas não faz isso como se fosse uma reportagem jornalística. Para contar a história desse fruto, o diretor cria uma narrativa ficcional em que as personagens (inspiradas em pessoas reais) são postas em relação umas com as outras de forma a acentuar a denúncia social que o documentário aspira alcançar: a crítica ao sistema capitalista, que relega parte dos seres humanos, especialmente aqueles que não têm dinheiro, a uma vida indigna.
Ao realizar essa operação de simulação do real, diferenciando-se da denúncia feita em formato jornalístico, o curta evita uma fórmula já conhecida para falar do tema, que seria mostrar imagens de pessoas catando lixo e entrevistá-las. A narrativa ficcional criada em torno de pessoas, situações e cenários reais consegue impactar muito mais o público, que se surpreende com a forma pela qual a história é apresentada. Muito desse impacto se deve à mistura que o filme faz entre estratégias normalmente reconhecidas como pertencentes ao documentário e outras típicas da ficção. No eixo da ficção está a própria fabulação da história do tomate e das personagens que com ele se relacionam. O aspecto ficcional fica bem claro no final, quando, diferentemente do que se costuma fazer, o diretor não apenas elenca os atores que participaram do filme, mas revela de maneira inusitada tudo o que se refere aos bastidores da obra. O inusitado está no uso da expressão “na verdade”, empregada em situações como as seguintes: “Este filme na verdade foi feito por...”; “A última frase do texto na verdade é ...”; “Os temas musicais na verdade foram extraídos de ...”; “D. Anete na verdade é Ciça Reckziegel”; “Seus familiares na verdade são...”; “Na verdade, a maior parte das locações foi rodada na Ilha dos Marinheiros, município de Porto Alegre, a 2 km da Ilha das Flores”; “O resto é verdade”. Tais frases contrastam com os dizeres iniciais do filme, que afirmam: “Este não é um filme de ficção”.
Por sua vez, o realismo típico da dramaturgia televisiva é quebrado quando se investe numa mise-en-scène teatral e no gesto posado dos atores para a câmera.
Ilha das Flores toma o documentário expositivo clássico para, com base nas características próprias de linguagem desse tipo, mostrar outro funcionamento possível do modelo. Por meio de um complexo jogo de montagem, proporcionado especialmente pelo contraste entre imagem e locução e pela alternância entre repetição de informações e quebra de expectativa na condução do argumento, o documentário põe para funcionar o recurso da ironia. É ao utilizar esse recurso para apresentar as definições de caráter didático-científico que o curta desestabiliza o cânone do documentário clássico. Como vimos, nesse tipo de filme, a voz over transmite informações “verdadeiras” e inquestionáveis sobre o tema em foco. Em Ilha das Flores, muitas das definições e explicações científicas apresentadas não condizem com a versão oficial ou esperada daquilo que está sendo definido ou explicado. É o que ocorre, por exemplo, quando se diz que “a dificuldade de se avaliar a quantidade de tomates equivalentes a uma galinha e os problemas de uma troca direta de galinhas por baleias foram os motivadores principais da criação do dinheiro”.
Esse discurso irônico segue uma estrutura em espiral. À medida que se retoma uma referência qualquer também se avança no argumento. É o que ocorre com o seguinte enunciado: “Mulheres e crianças são seres humanos, com telencéfalo altamente desenvolvido, polegar opositor e nenhum dinheiro. Elas não têm dono e, o que é pior, são muitas”. Aqui, há menção à expressão “telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor” e a palavra “dinheiro”, ambas recorrentes ao longo de todo o curta. Mas há também informação nova, a de que mulheres e crianças são muitas e não têm dono. A afirmação causa estranheza e acentua a crítica irônica, já que no mundo atual a condição de um ser humano ter um dono já não é aceita como nos tempos da escravidão. Mais à frente se dirá que, “justo por serem muitas, são organizadas em grupos de 10 para que no intervalo de 5 minutos possam recolher para si, no lixo, aquilo que o dono do corpo achou inadequado para o porco, como tomates e prova de história”. Mais uma vez emprega-se a ironia para denunciar o modo de funcionamento do mundo capitalista, que delega a mulheres e crianças os restos de comida que se encontram no lixo. A repetição exaustiva e a ironia vão, como já dissemos, dando relevo à denúncia.
O caráter irônico é reforçado pelo ritmo da narração de Paulo José e pela entonação que ele empresta às frases e palavras. A montagem dialética também tem papel fundamental na construção da ironia, pois as imagens são sequenciadas de modo a evocar determinados sentidos, ora complementares, ora inesperados.
O ritmo acelerado da montagem e da narração só muda no final, quando aparecem imagens em slow motion de mulheres e crianças catando lixo. Daí, retoma-se um trecho do poema “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles, sobre a liberdade: “... palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Esse final poético se contrapõe a uma frase inserida na abertura do filme: “Deus não existe”.
Percebe-se, portanto, que Ilha das Flores, através de vários recursos da linguagem audiovisual (roteiro, estilo narrativo, atuação teatralizada das personagens, presença de atores sociais representando a si mesmos, trilha sonora e montagem), constrói um rico jogo de linguagem que faz o espectador refletir não apenas sobre o tema em foco, ou seja, a vida de seres humanos pobres que precisam se alimentar do lixo para sobreviver, mas também sobre o documentário como gênero, subvertendo regras e expectativas do modelo.
1. Exiba o documentário Manhã na roça: o carro de bois, do documentarista Humberto Mauro, conhecido por seus filmes de cunho educativo. Diga que se trata de uma obra produzida em 1956, quando alguns recursos audiovisuais hoje disponíveis ainda não existiam ou eram pouco empregados, como a fotografia em cores e a gravação sincrônica de som e imagem. Chame-lhes a atenção para o fato de a locução formal e a voz impostada do locutor destoarem da narração que se faz hoje em dia.
Questione os alunos sobre a pertinência da expressão “voz de Deus” para referenciar a voz de um narrador no documentário de tipo expositivo. Por que a narração em voz over, aquela que é sobreposta à imagem, lembraria algo como a “voz de Deus”?
Reflita com os alunos sobre as razões de vários documentários educativos e pedagógicos investirem nesse modo de produção documental.
Assista ao filme.
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Manhã na roça: o carro de bois. Humberto Mauro. Brasil, 1956, 4min e 10 seg.
Agora, leia um breve comentário para ajudá-lo(a) a refletir sobre o filme.
Manhã na Roça faz parte da série de curtas-metragens conhecida como “Brasilianas”, produzida pelo cineasta para o Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), que tinha o intuito de retratar o mundo folclórico e regionalista da zona rural numa época em que esse universo começava a perder força. Leve os alunos a perceberem que de início ele filma de longe, com a intenção de mostrar as características da vegetação e a movimentação das pessoas e animais no ambiente. Depois, vai aproximando a câmera a fim de focalizar animais e figura humana em ação. Comente a importância da trilha sonora que acompanha as imagens, harmonizando-se com elas. Por fim, ressalte o caráter pedagógico da narração em voz over que fornece informações sobre o carro de boi. Acentue a maneira como o diretor filma o objeto, ora focalizando-o por completo, ora mostrando planos detalhes de suas partes, à medida que nomeia cada uma delas, e explique aos alunos a finalidade desses recursos. Trata-se de um típico documentário de caráter expositivo.
O cineasta escocês John Grierson (1898-1972) é chamado de “pai do documentário”. Isso pode causar estranhamento quando se sabe que ele dirigiu apenas um filme, Drifters (1928), sobre a pesca de arenque no Mar do Norte.
Sua notoriedade deve-se às suas falas e textos. Foi ele quem, num artigo escrito para o jornal New York Sun, em fevereiro de 1926, usou pela primeira vez o termo “documentário” para referir-se ao filme Moana (1926), de Robert Flaherty.
Grierson definia documentário como “o tratamento criativo da atualidade”, ou seja, ele não tinha a ilusão de que poderia empreender uma abordagem objetiva do real. Ele dizia que era “como martelo e não como espelho” que o documentário deveria funcionar, isto é, não era refletindo o real, mas forjando-o, que os documentários entravam em relação com o mundo.
Para Grierson, os documentários deveriam ter função educativa, social e moralizante, e foi com esse pensamento que ele empregou a máquina cinematográfica para contribuir com o governo inglês a enfrentar questões difíceis da época, como inflação, pobreza e a Depressão de 1929. Muitos dos filmes que ajudou a produzir foram financiados pelo governo britânico, o que deu ao documentário uma base institucional.
Segundo ele, “foi na interpretação educacional, e não na interpretação política ou estética, que o filme documentário encontrou uma ‘demanda’, logo, tornou-se financiável. Este ponto é de grande importância na apresentação do filme documentário como uma contribuição fundamental para a informação governamental e também para a teoria educacional. Tornou-se financiável porque, por um lado, foi ao encontro da necessidade do governo de um meio atraente e dramático que pudesse interpretar as informações do Estado. Por outro, foi ao encontro da necessidade dos educadores de um meio atraente e dramático que interpretasse a natureza da comunidade. Um proporcionava o público; o outro, o patrocínio. Assim fechava-se o ciclo econômico”. (Grierson, apud Labaki, 2006, p. 38)