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O primeiro desafio para a realização de um documentário talvez seja a própria concepção da ideia. Sobre o que falar? O que registrar em imagens? Como fazer esse registro? Com quais propósitos?
Nesse momento, é importante lembrar aos alunos que, diferentemente das postagens audiovisuais que inundam a internet, o documentário não é um apontamento audiovisual qualquer feito ao acaso – é um espaço de reflexão.
Assim, antes do início da realização do documentário, é oportuno abrir uma discussão em sala sobre as seguintes questões: o valor das imagens, o poder de ver e fazer ver, a importância do olhar. É crucial sensibilizar os estudantes sobre a possibilidade de os documentários poderem abrir uma janela para diferentes formas de ver, de sentir, de ser.
O tema “O lugar onde vivo” pode inspirar várias ideias. Peça aos estudantes que façam uma relação das pessoas interessantes do bairro onde residem. Podem ser pessoas mais velhas que guardam a memória do local, jovens que desenvolvem atividades culturais importantes, crianças que costumam brincar nas ruas e praças, mulheres ou homens que desempenham trabalho social relevante etc. Também solicite aos alunos que reflitam sobre quais espaços e paisagens merecem ser filmados. Enfim, tudo serve como mote para o documentário.
É relevante assinalar também que contar com uma ideia, achar um bom tema, descobrir uma personagem interessante não significa ter um filme em mãos. Todo mundo pode ter boas ideias, mas é preciso verificar se elas são passíveis de serem concretizadas num filme no tempo que se tem disponível para sua realização, ou seja, é necessário levar em conta as condições de tempo e os recursos humanos e materiais para a realização do documentário.
Professor, em todo o percurso de elaboração dos filmes, seu trabalho de mediação entra em cena, questionando, chamando a atenção para as possibilidades e impossibilidades de realização, instruindo, auxiliando os alunos. Para exercer esse papel é necessário conhecimento, atenção e dedicação. Então, mãos à obra!
Para se inspirar, assista ao documentário Flores do meu bairro (2019).
Flores do meu bairro. Iana Marinho, João Vitor, Kauany Vitória. Brasil, 2019, 5 min.
Se quiser se aprofundar no filme, leia uma breve descrição e análise.
Em Flores do meu bairro, somos apresentados à Rua do Rosário, uma localidade carregada de estigma, tida pelos habitantes de Aliança, em Pernambuco, como "lugar de gente ruim". Ao contrário de reforçar essa visão, o objetivo do documentário é desconstruir o preconceito que recobre o local e afeta seus moradores, e por isso investe no corpo a corpo com esses personagens para revelar que tipo de gente, afinal, mora ali.
A principal estratégia do filme é a entrevista. É ela que oferece a perspectiva dos moradores ou dos profissionais que vêm de fora e que se empenham, através de projetos sociais, em melhorar as condições de vida do bairro carente. Sem poupar esforços, o documentário reúne depoimentos variados, como o de uma professora, uma agente de saúde e uma artesã; há também residentes que, se não chegam a ser identificados, contribuem mesmo assim para que se desenhe um painel diversificado de vozes, comprovado pelo mural que surge perto do fim do filme, no qual aparecem fotografias de todos os personagens abordados e que participaram, de algum modo, do filme.
Mais que todos, um personagem se destaca. Trata-se de Josias Emanuel dos Santos, morador da comunidade. É ele quem abre o documentário, introduzindo logo de cara o tema principal. Mais tarde, ele aponta um dos motivos históricos para o preconceito, o fato de que havia prostíbulos em torno da igreja que deu nome à comunidade, a Igreja do Rosário; e nos oferece o testemunho de um episódio de discriminação que sofreu por ser morador dali.
Sua presença permeia a estrutura. Isto porque, afinal de contas, ele assume o papel exemplar de alguém cuja experiência de vida serve para desconstruir o preconceito contra a comunidade. Josias é um engenheiro civil, é alguém que conseguiu, através do status que o diploma de ensino superior confere, extrapolar o estigma e o determinismo socioeconômico que podem estar associados a seu lugar de origem.
Seu "exemplo vivo", como ele mesmo define, atua como ponta de lança para o argumento do filme. Ele seria uma das flores do seu bairro, nascidas em condições adversas, nascidas no asfalto, como na evocação dos versos de Carlos Drummond de Andrade ao final. Assim como Josias, as flores aludidas no título e no poema se referem às gentes do lugar. Se aos olhos de quem é de fora os moradores figuram como "gente ruim", aos olhos de dentro do documentário, agora incorporados pelo espectador, essas pessoas aparecem surpreendentes, são flores resistentes e extraordinárias.
O filme não se limita a uma descrição da paisagem humana de um lugar, mas transcende, assim como Josias, em direção a elaborações mais sofisticadas, como a metáfora. E esse uso da flor enquanto metáfora é tão ou mais eficaz quanto ancorado em vários elementos que são apresentados ao longo do discurso.
Se a imagem da flor estivesse apenas no título ou no trecho do poema de Drummond, seria pouco, provavelmente forçado demais para engolirmos, uma leitura estrangeira – feita de fora. No entanto, o filme fixa a metáfora, torna ela enraizada a partir do momento em que percebe que as rosas não nasceram por acaso, elas surgem de dentro da realidade representada. A começar pelo nome da rua, do Rosário, mas também pela pintura de uma flor sendo interpelada por um beija-flor na fachada da Sede de Maracatu de Baque Solto, e ainda pelas flores artesanais sendo confeccionadas na Associação dos Moradores. E para não deixar a metáfora passar em branco, para não dizer que o filme não falou das flores, a narração em voz over sublinha: diz que os programas sociais implantados são como flores que brotaram, e qualifica o descaso do poder público como arrancar mudas de flores de jardins tão promissores.
A partir da observação perspicaz e da riqueza imaginativa, os realizadores permitiram que o filme desse esse salto qualitativo. Esse salto se estende ao elenco das estratégias de filmagem utilizadas. Mencionamos, mais detidamente, as entrevistas, e de modo breve a narração em voz over, que costura muito bem a estrutura do documentário. Há, ainda, reencenações e performances, como a pesquisa no computador sobre o significado de "preconceito" e a leitura de um outro poema por Josias; há a observação dos espaços e de situações cotidianas; há os grafismos, como o mapa que localiza a Rua do Rosário e a composição final com fotos dos personagens; há fade-outs e trechos em tela preta que funcionam como pequenas pausas dramáticas; e há o uso da música, que adiciona uma camada sentimental aos depoimentos, talvez excessivamente.
É bom enfatizar que o uso de recursos variados não é garantia, a priori, de um resultado valioso, mas aqui mostram uma ousadia da equipe em experimentar com diversos expedientes na construção de seu discurso.
Essa ousadia está representada sobretudo pelo trabalho da câmera. Poucos são os momentos em que ela está em repouso, em geral é o contrário: ela passeia pela comunidade, realiza travellings, tilts e panorâmicas, como a que contrasta os telhados e paredes atualmente de telhas e alvenaria com a informação de que as casas eram antigamente de palha, daí a Rua do Rosário ser conhecida também como Rua da Palha.
Um dos momentos mais ousados ocorre durante a entrevista com Josias, quando ele fala sobre os cabarés que existiam perto da Igreja do Rosário. Normalmente, o que é que se faria? A equipe guardaria essa informação para filmar, depois do fim da entrevista, a paisagem de casas perto da igreja, e o plano seria encaixado, mais tarde, no meio da fala de Josias sobre o assunto, como ilustração daquilo a que se refere. Mas os realizadores aproveitam o fato de que a entrevista era dada ao lado dessa paisagem e abandonam o enquadramento da entrevista para descrever, em cena, essa paisagem adjacente através de uma panorâmica para a esquerda. A câmera toma uma decisão arriscada e incomum para criar um nexo visual no momento mesmo em que a informação se apresenta, e o faz com destreza.
Mesmo quando a posição da câmera é fixa, ela continua se movimentando, como na entrevista com Ana Maria Albuquerque, professora da escola do bairro. Ao dizer que a maior carência da comunidade é de amor e alimento, a personagem pausa, embarga a voz. Nesse instante delicado, a câmera assume o risco dobrado de alterar seu enquadramento, permitindo um zoom-in que destaca ainda mais a emoção da personagem.
Como normalmente acontece ao se encarar riscos, há momentos também de insucesso. Vide a entrevista com Inalda Maria de Azevedo, agente de saúde, na qual o propósito da movimentação de câmera não é tão claro, parece mais o esforço da equipe de encontrar um enquadramento satisfatório que outra coisa. Nessa entrevista, inclusive, se situam dois outros problemas, a dificuldade com a iluminação da cena e a dificuldade de compreensão da fala da entrevistada em virtude de muitos ruídos – precisaram até legendá-la. São questões que se apresentam em outros momentos do filme, provavelmente contornáveis com um cuidado maior com a posição da câmera em relação à fonte de iluminação e com o uso de microfones de lapela – até os improvisados. Porém mesmo diante desses problemas, o risco que o filme assume traz mais acertos que erros.
Há essa inquietação, essa necessidade de movimentar-se mesmo em situações em que o padrão seria repousar, como nas entrevistas. Se repararmos novamente em Josias, personagem principal do filme, veremos como essa movimentação é característica. Como a câmera, o personagem pouco fica parado. Ele está em vários momentos caminhando, sua entrevista é misto de depoimento com performance. Mesmo quando ele estaciona, a câmera se comporta de modo dinâmico, deixando o rosto do entrevistado para passear pelo espaço ou se multiplicando em mais de um ponto de vista – há mais de uma câmera na cena.
Não à toa, a chave de interpretação dessa movimentação eloquente tem a ver com a figura de Josias. Ele representa o "exemplo vivo" da mobilidade, ao extrapolar o limite dado pelo bairro periférico em direção a outras perspectivas de futuro. Em outras palavras, a câmera se mexe porque Josias não aceitou ficar estagnado. E essa convergência entre câmera e personagem fica mais clara quando ele reafirma sua própria identidade. Diz: "Meu nome é Josias Emanuel dos Santos, tenho 24 anos e sou engenheiro civil". Nesse momento, a câmera vai ao seu encontro, num travelling frontal em direção ao personagem. A autoafirmação de quem Josias é coincide, portanto, com a exaltação do personagem através desse recurso retórico, o travelling frontal em sua direção.
Pouco antes, numa de suas últimas caminhadas, ele lê um poema sobre a Rua do Rosário. O eu lírico, morador da comunidade, relata como o lugar assume, ao olhar de quem é de fora, características de um local cada vez mais apartado: "Para muitos mesmo, outra cidade, outro lugar, a Faixa de Gaza, a Cisjordânia, Berlim Oriental". E resume: "Alguns estabeleceram rótulos. Outros, estabelecem muros".
Para Flores do meu bairro, a necessidade de estar constantemente em movimento revela o compromisso de um olhar sensível, capaz de ultrapassar rótulos e muros e reconhecer o outro, as pessoas da Rua do Rosário, não como um distante, mas como um próximo.