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Nos documentários poéticos, as imagens costumam ser usadas de modo bem expressivo, prevalecendo sobre o discurso verbal. São documentários que buscam enfatizar ao máximo sua dimensão plástica, visual, de maneira que as imagens consigam provocar mais sensações, afetos e impressões do que necessariamente transmitir um argumento ou construir uma narrativa clara sobre o mundo histórico.
No documentário Olhos de ressaca, de Petra Costa, por exemplo, embora o discurso verbal seja importante, são as imagens os elementos narrativos encarregados de transmitir a beleza, a delicadeza, a ternura do relacionamento amoroso registrado. Assista ao filme e veja os comentários.
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Em Olhos de ressaca, a diretora Petra Costa filma seus avós, Vera e Gabriel, à época em que eles comemoravam setenta anos de namoro e sessenta de casamento.
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Predominam no filme os planos próximos. Aqui, com as mãos de um passeando pelo corpo do outro, temos um plano detalhe. Esse registro bem próximo justifica-se pela intenção do filme e pela intimidade que a realizadora nutre com as personagens.
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Avô e avó se alternam na narração em voz off: falam da longa união, relatam como se conheceram, o período de namoro, o casamento, o nascimento dos filhos, o envelhecimento a dois e a perspectiva da morte. Essas vozes off são acompanhadas de imagens de arquivo e de registros filmados pela diretora no tempo presente com Super-8.
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Não há câmera fixa nesse filme, ela está sempre na mão, mostrando as personagens em ação e o movimento das coisas no mundo: o vaivém das ondas do mar, o voo das gaivotas, o pôr do sol.
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Aqui mais um exemplo do predomínio dos primeiros planos: a câmera chega perto das personagens para captar-lhes as expressões, o que chamamos de plano fechado.
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Note que, enquanto as personagens são envolvidas por um círculo humano, a câmera também faz um giro em torno delas. Num travelling circular, uma câmera subjetiva acompanha os passos rente ao chão de um jardim. Tudo é movimento, tudo é vida. Há muitas imagens desfocadas, acentuando a plasticidade do curta.
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Vemos neste momento um big close, ou plano fechado, com a filmagem dos olhos bem de perto.
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A montagem oscila entre as imagens atuais e as do passado, fotografias e filmes de famílias em que se destacam crianças e adultos. Não há interesse por paisagens ou filmes de viagem.
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A imagem de baixa resolução e o efeito granulado do formato Super-8 permitem textura especial ao filme. Tradicionalmente usado para registros de cenas caseiras e filmes experimentais, o Super-8 produz um efeito de amadorismo e intimidade na documentação do real. Além de remontar ao passado, desperta certa nostalgia, já que se trata de formato pouco usado nos dias atuais.
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O olhar se restringe às pessoas. Por vezes, a câmera passeia por imagens do passado mostrando detalhes.
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Em outras cenas, como estas a que assistiremos agora, um efeito de fusão junta ou sobrepõe fotografias a outras imagens.
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A captação dessas imagens íntimas só foi possível em virtude da relação familiar existente entre neta e avós. Ninguém mais poderia registrar esse momento: Vera e Gabriel sob o chuveiro ou na cama simulando estar dormindo um ao lado do outro, como já vimos.
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O tratamento sonoro e a trilha musical também têm papel importante na construção do tom poético do filme. O som de ondas do mar quebrando na praia e o grasnido das gaivotas (no início do filme), os grilos e os ruídos de mata (como acabamos de ver), o piano ao fundo (presente em diversos momentos, bem como nas próximas sequências) são elementos que compõem a cena poética desse documentário de grande sensibilidade e poder estético.
Olhos de ressaca. Petra Costa. Brasil, 2009, 20 min.
Agora, leia uma breve descrição e análise.
Em Olhos de ressaca, a diretora Petra Costa filma seus avós, Vera e Gabriel, que se alternam na narração em voz over. Eles falam da longa união, relatam como se conheceram, o namoro, o casamento, a constituição da família etc.
As vozes over são acompanhadas de imagens de arquivo e também de registros filmados pela diretora no tempo presente. A montagem oscila entre as imagens do passado e as atuais. Há muitas imagens desfocadas, que acentuam a plasticidade do curta.
A postura da câmera em cena é carregada de expressividade. Nos documentários poéticos, não há um registro neutro ou burocrático das situações; as imagens são construídas por uma sensibilidade especialmente motivada no momento da captação, uma subjetividade empenhada em transmitir um olhar muito particular sobre a realidade.
No início, por exemplo, a primeira imagem mostra a sombra de um casal. Em vez de abordar o assunto de forma direta, mostrando de vez os personagens de seu documentário, a cineasta vai apresentando eles de maneira oblíqua, o que se confirma pelas imagens seguintes, vários planos de detalhes das mãos dos avós. A câmera está muito próxima, colada na pele dos personagens – e por vezes fora de foco –, e passeia pela pele envelhecida para chamar a atenção sobre sua fragilidade, ao mesmo tempo em que transmite uma sensação de proximidade e afeto entre quem filma e quem é filmado.
Essas e outras imagens só são possíveis por causa da intimidade existente entre neta e avós. É comum, por exemplo, as personagens principais performarem para a câmera, como nas cenas de beijo, ou quando Vera e Gabriel posam, de olhos fechados, um ao lado do outro, ou simulam estarem na cama, dormindo etc. Nessas performances, a diretora fica livre para capturar todo tipo de aspecto que a situação oferece.
A câmera, sempre na mão, treme e se movimenta pela cena de maneira bem eloquente, circulando ao redor dos personagens ou passeando/divagando por texturas presentes no espaço. É o que acontece aos 14 min e 19 seg, quando a câmera se movimenta entre o avô de Petra, as árvores e o sol no jardim. A câmera se demora na casca de árvore, contorna o rosto do avô, se perde na luz clara e gira entre as copas das árvores. O filme deixa muito claro que há um olhar sensível, perceptível e carregado de subjetividade conduzindo a filmagem.
O tratamento sonoro e a trilha musical também têm papel importante na construção do tom poético do filme. O som de ondas do mar quebrando na praia, o grasnido das gaivotas, o piano ao fundo, combinados a imagens inusitadas, são elementos que compõem a cena poética desse documentário de grande sensibilidade e potência estética.
Bertrand Lira (2015) afirma que o modo poético é o menos explorado como forma dominante na estruturação de uma obra documental de longa-metragem, que aparece com mais frequência em cenas isoladas nesse tipo de filme. É o que ocorre no documentário Janela da alma (2001), de João Jardim e Walter Carvalho, que alterna cenas de entrevistas e imagens de tom poético. Assista ao trailer do filme e leia os comentários:
Janela da alma. João Jardim e Walter Carvalho. Brasil, 2004, 73 min. Trailer.
Agora, leia um breve comentário.
Janela da alma enfrenta o desafio de falar de um tema abstrato: o olhar, a visão. Para tanto, entrevista pessoas com graus de acuidade visual que vão da miopia à cegueira. Os entrevistados são artistas, intelectuais e pessoas comuns que discorrem sobre o que é a visão a partir da perspectiva da biologia, da filosofia e das artes. O filme alterna cenas das entrevistas com imagens que buscam transmitir ao espectador de que forma o olhar percebe o mundo. Para isso, utiliza vários recursos: desfocar imagens para depois voltar a focá-las; enquadrar objetos/pessoas bem de perto; usar pouca iluminação (cena de abertura do filme). Dessa forma, o documentário tenta materializar em imagens a diversidade do ato de olhar.
Bill Nichols afirma que os atores sociais de um documentário poético têm a mesma importância na estrutura geral do filme do que os demais elementos (animais, paisagens, objetos etc.). Frequentemente, eles carecem de complexidade psicológica e de uma visão definida do mundo. Em geral, não ouvimos suas vozes, não sabemos o que pensam - eles “falam” por suas ações. Suas ações e gestos são pretexto para a exploração de padrões visuais e rítmicos. É o que ocorre em Seis e um: poesia documentada. Assista ao filme e leia os comentários.
Seis e um: poesia documentada. Giovanni Rolim Antonelli. Brasil, 2017, 3 min e 15 seg.
Agora, leia uma breve descrição e análise.
No curta Seis e um, veem-se diversas cenas de paisagem sequenciadas, em algumas das quais aparece o elemento humano. Paisagens e personagens são apresentadas com o mesmo destaque. Prevalece o tratamento poético das imagens, percebido em especial pelo cuidado com a fotografia. A música tocada no piano é suave. Perto do final, a edição acelera o ritmo natural da vida. No encerramento, lê-se: “Na efemeridade da vida, o sentimento prevalece”.
Traço importante do documentário poético é a fragmentação e a ambiguidade, com o intuito de explorar associações vagas, subjetivas, e padrões que envolvem ritmos temporais e justaposições espaciais. Assista ao curta experimental Veja bem, de Jorge Furtado, e leia os comentários.
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Nesta primeira parte, o curta apresenta imagens diversas, seja para ilustrar de maneira literal o poema de Drummond, seja para criar ironia, por exemplo, quanto a narração fala em "máquinas de furar" e surgem na tela revólveres; ou quando fala em "coletores de resíduos" e vemos cemitérios. A montagem nesse trecho é bastante fragmentada, há forte descontinuidade entre os elementos narrativos, assim como sucede no poema. Essa fragmentação é o que caracteriza a montagem descontínua.
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Aqui, na segunda parte, apenas duas sequências de imagens se alternam: trabalhadores da construção civil derrubando uma parede e subindo uma escada carregando baldes e uma empregada limpando o chão. A partir do estranhamento que essas imagens podem causar e de um exercício interpretativo, o espectador percebe a chave central de entrada para leitura do curta, substituindo a ocorrência da palavra “amor”, no poema, pela palavra “trabalho”, atividade a qual as imagens fazem referência direta.
Assim, num jogo de oposição entre texto e imagem, pode haver um deslocamento de interpretação. Por exemplo, em vez de ler “o amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos”, ele lerá “o trabalho comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos”. Jogando com essas possibilidades de complementação entre texto, som e imagem, o curta opera uma interessante releitura dos poemas.
Veja bem. Jorge Furtado. Brasil, 1994, 6 min e 19 seg.
Agora, leia uma breve descrição e análise.
Devemos reconhecer que, mais que um documentário, Veja bem é um curta-metragem experimental que adapta dois poemas, “Jornal de serviço”, de Carlos Drummond de Andrade, e “Os três mal-amados”, de João Cabral de Melo Neto, para o cinema, fazendo uso documental das imagens.
Na primeira parte, intitulada “Do lado de fora”, Furtado se aproveita de várias imagens para ilustrar o poema “Jornal de serviço”. Nesse trecho, a montagem é fragmentada, há forte descontinuidade entre os elementos narrativos, assim como sucede no poema. Essa fragmentação é o que caracteriza a montagem descontínua.
As imagens e a locução se sucedem de forma rápida, as pausas só ocorrem nos momentos em que, no poema, muda-se de uma estrofe para outra. Também há presença marcante da ironia: por exemplo, quando a narração fala em “máquinas de furar”, aparece o desenho de vários revólveres; quando fala em “coletores de resíduos”, surgem imagens de cemitério.
O grande desafio, nessa primeira parte, é encontrar a imagem que vai ilustrar o texto narrado, um desafio que é comum a muitos documentários. Veja bem encara essa questão de modo criativo sem perder de vista, em muitos momentos, que não basta que cada imagem se relacione com o texto, ela precisa criar alguma relação com as imagens que vem imediatamente antes e depois.
Aos 1 min e 39 seg, por exemplo, mostram-se teclas de piano num plano detalhe, porque, de modo bastante inusitado, elas lembram estacas que cercam um terreno – "mourões para cerca" –, mas também porque o verso a seguir menciona "mudanças de piano", quando então as mesmas teclas são apresentadas num plano mais aberto. A primeira imagem das teclas de piano serve a esse duplo propósito, construir uma metáfora e antecipar uma imagem que coincidirá com o poema só a posteriori.
Um pouco mais adiante, aos 2 min e 09 seg, o poema fala em "anéis de carvão" e "anéis de formatura", depois fala em "purpurina" e "cogumelos". As imagens respectivas são anéis de carvão, anéis de formatura, bolas com purpurina e cogumelos. A priori, nada de excepcional, a imagem simplesmente repete o texto. O que é digno de atenção é o tipo de corte utilizado, o match cut ou rima visual. Ele se dá quando a forma das figuras situadas imediatamente antes e depois do corte coincide. Os dois anéis não só se assemelham como estão posicionados no mesmo local do quadro, e a mesma coisa acontece entre a bola de purpurina e o cogumelo.
Já nos versos seguintes, "extinção de pêlos" e "presentes por atacado", bem como "lantejoulas" e "sereias", em vez de mostrar cada item em planos separados por cortes, opta-se por uma única imagem para responder ao par de versos. Mas um zoom out, no primeiro caso, e uma panorâmica para a esquerda, no segundo, acabam revelando uma parte oculta da mesma imagem que resolvem, a contento, o desafio.
Na segunda parte, intitulada “Do lado de dentro”, o poema adaptado é “Os três mal-amados”. Apenas duas sequências de imagens se alternam nesse trecho: trabalhadores da construção civil derrubando uma parede e subindo uma escada carregando baldes, e uma empregada limpando o chão.
Nesse segundo segmento, a princípio, as imagens podem causar estranhamento, pois o poema fala o tempo todo de amor, e as imagens não remetem diretamente a esse sentimento, mas ao trabalho. Mas, se a partir desse estranhamento e de um exercício interpretativo, o espectador toma as imagens como chave central de entrada para a leitura do curta, ele pode substituir a ocorrência da palavra “amor”, no poema, pela palavra “trabalho”, atividade a que as imagens fazem referência direta.
Assim, num jogo de oposição entre texto e imagem pode haver deslocamento de interpretação. Por exemplo, em vez de ler: “O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos”, ele lerá: “O trabalho comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos”. Jogando com essas possibilidades de complementação entre texto, som e imagem, o curta opera uma interessante releitura dos poemas.
1. Exiba o documentário Olhos de ressaca, já analisado, e chame a atenção para a forma como as imagens, a sonoplastia e a montagem contribuem para construção de um tom poético.
2. Peça aos alunos que realizem um curta-metragem de cunho poético de 1 minuto. Lembre a eles a atenção redobrada que devem ter para com as imagens tanto no momento de captação quanto da edição. Reforce o cuidado que devem ter com o design de som, ou seja, os ruídos e a trilha sonora.
3. Exiba e comente em sala alguns dos trabalhos produzidos, prestando atenção na associação e no ritmo das imagens, bem como no efeito da trilha sonora.
O documentário poético tem origem nas experimentações com a linguagem cinematográfica realizadas pelos cineastas ligados às vanguardas artísticas europeias do século XX. Esse movimento, anti-ilusionista por natureza, era contrário à própria ideia de representação e propunha a atividade artística como criação de objeto autônomo e dotado de leis próprias (Xavier, 2005, apud Lira, 2015).
Inserido nesse contexto, o cinema de vanguarda também sustentava fortes preocupações formais e estéticas. Era comum o fotograma receber todo tipo de intervenção (riscos e pinturas feitas diretamente na película, colagem e sobreposição de materiais, exposição de luz etc.). Variações na montagem garantiam o ritmo visual que os cineastas almejavam. Para tanto, entre outros recursos, faziam uso intercalado de diferentes velocidades de filmagem (lento, acelerado), produziam ângulos inusitados e imagens distorcidas (Martins, 2008).
Realizados ao longo dos anos 1920, os exemplos de documentários poéticos abaixo relacionados não deixam dúvidas sobre a pertinência da expressão “sinfonia visual” utilizada para designá-los. A música impõe ritmo às imagens. Os tratamentos visual e sonoro são cuidadosamente trabalhados. Se desejar assistir a eles, clique sobre o título dos filmes.
Berlim, sinfonia da metrópole. Walter Ruttmann. Alemanha, 1927, 65 min.
Em Berlim, sinfonia da metrópole, Walter Ruttmann documentou um dia em Berlim no final da década de 1920. Vários elementos do mundo real constituem a matéria-prima para o olhar abstrato do cineasta. O diretor usa a imagem em movimento para captar os elementos do mundo real, descobrindo nele grafismos e formas geométricas. Os fios dos postes se tornam linhas finas em meio ao branco, tal como os trilhos do trem, os vagões, as árvores (Martins e Santos, 2012).
Chuva. Joris Ivens e Manus Franken. Holanda, 1929, 14 min.
O curta-metragem é composto pela sucessão de tomadas de diversos lugares da cidade, que tem início em uma manhã ensolarada e término em uma tarde chuvosa e escura.