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Antes de começar… Vamos conhecer alguns segredos de uma boa crônica!
Um dos prazeres da vida é abrir o jornal num domingo preguiçoso, pular as seções de política e economia e ler, sem compromisso, uma crônica, que pode nos emocionar, fazer rir, pensar… e às vezes até fazer as pazes com certos desastres da vida. Mas o que é uma crônica?
Difícil definir? Não para Ivan Ângelo. Cansado de ver as crônicas que escreve serem confundidas com artigos ou contos, Ivan Ângelo ele resolveu nos fazer pensar sobre elas.
Assim como muitas(os) outras(os) cronistas, a escritora Cidinha da Silva reflete sobre esse gênero no texto “Cronista analógica de um tempo digital”:
A crônica é, assim, um jogo de inversões que atribui valor e sentido a aspectos desprezados, ignorados ou pouco perceptíveis do cotidiano. E a tudo, ou a quase tudo, empresta um pouco de graça, poesia, ironia, amor. Tudo junto e misturado ou em laivos surpreendentes de lirismo, humor e acidez. Via conta-gotas ou em doses cavalares. Tudo a depender do calor do acontecimento, da necessidade homeopática e dos humores ou calundus da cronista.
In: O homem azul do deserto. Rio de Janeiro: Malê, 2018.
Confira no vídeo a seguir a leitura da crônica na íntegra:
A palavra “crônica”, em sua origem, está associada ao vocábulo “khrónos” (grego) ou “chronos” (latim), que significa “tempo”. Para os antigos romanos a palavra “chronica” designava o gênero que fazia o registro de acontecimentos históricos, verídicos, na ordem em que aconteciam, sem pretender se aprofundar neles ou interpretá-los (MOISÉS, 2004). Com esse sentido ela foi usada nos países europeus.
A crônica contemporânea brasileira, também voltada para o registro jornalístico do cotidiano, surgiu por volta do século XIX, com a expansão dos jornais no país, conforme aponta Antonio Candido:
“No Brasil ela tem uma boa história, e até poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi ‘folhetim’, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia, – políticas, sociais, artísticas, literárias.” (CANDIDO, 2003, p. 89).
Nessa época, importantes escritores, como José de Alencar e Machado de Assis, começam a usar as crônicas para registrar de modo ora mais literário, ora mais jornalístico, os fatos corriqueiros de seu tempo. É interessante observar que as primeiras crônicas brasileiras são dirigidas às mulheres e publicadas como folhetins, em geral na parte inferior da página de um jornal.
A crônica é um gênero que ocupa o espaço do entretenimento, da reflexão mais leve. É colocada como uma pausa para o leitor fatigado de textos mais densos. Nas revistas, por exemplo, em geral é estampada na última página.
Ao escrever, as(os) cronistas buscam emocionar e envolver seus leitores, convidando-os a refletir, de modo sutil, sobre situações do cotidiano, vistas por meio de olhares irônicos, sérios ou poéticos, mas sempre agudos e atentos.
A crônica é um gênero que retrata os acontecimentos da vida em tom despretensioso, ora poético, ora filosófico, muitas vezes divertido. Nossas crônicas são bastante diferentes daquelas que circulam em jornais de outros países. Lá são relatos objetivos e sintéticos, comentários sobre pequenos acontecimentos, e não costumam expressar sentimentos pessoais da(o) autora(or). As(Os) cronistas brasileiras(os) exprimem vivências e sentimentos próprios do universo cultural do país. Em relação à linguagem, crônicas costumam se aproximar da oralidade e da coloquialidade, por estarem profundamente ligadas aos acontecimentos do cotidiano.
No Brasil, há vários modos de escrevê-las. Algumas delas adotam o tom da poesia, o autor produzindo uma prosa poética, como é o caso de algumas crônicas escritas por Paulo Mendes Campos e Clarice Lispector. Mas elas podem ser escritas de uma forma mais próxima ao ensaio, como as de Lima Barreto ou Ivan Ângelo. Além disso, podem ser mais narrativas, como algumas de Fernando Sabino e de Cidinha da Silva. As crônicas podem ser engraçadas e provocar, puxando a reflexão por meio do humor do leitor pelo jeito humorístico, como as de Moacyr Scliar, ou adotar um tom sério. Outras podem se aproximar de comentários, como as crônicas esportivas ou políticas. A diversidade de estilos e abordagens é o que torna as crônicas um gênero literário tão fascinante e versátil.
Nem todas as crônicas resistem ao tempo. Publicadas em jornais e revistas, são lidas apenas uma vez e, em geral, esquecidas pelo leitor. A crônica literária, no entanto, tem longa duração e é sempre apreciada pelo estilo de quem a escreve e pelo tema abordado.
A produção de crônicas literárias é muitas vezes tarefa “encomendada” a escritoras(es) já reconhecidas(os) pela publicação de outras obras, como contos e romances. São essas(es) autoras(es) que, usando recursos literários e estilo pessoal, fazem seus textos perdurarem e serem apreciados apesar da passagem do tempo. Para conseguir esse efeito, as(os) escritoras(es) não destacam os fatos em si, mas a interpretação que fazem deles, dando-lhes características de “retrato” de situações humanas atemporais. Os temas geralmente são ligados a questões éticas, de relacionamento humano, de relações entre grupos econômicos, sociais e políticos.
Em geral, na crônica a narração capta um momento, um flagrante do dia a dia; o desfecho, embora possa ser conclusivo, nem sempre representa a resolução do conflito, e a imaginação do leitor é estimulada a tirar suas próprias conclusões. Os fatos cotidianos e as personagens descritas podem ser fictícias ou reais, embora nunca se espere da crônica a objetividade de uma notícia de jornal, de uma reportagem ou de um ensaio.
Retomando a pergunta inicial deste texto: o que é uma crônica? Ela se assemelha a um ensaio? Poderia ser considerada um tipo de conto? Seria literatura? Ou simplesmente jornalismo com toque de poesia? Considerando tudo o que foi discutido anteriormente, quais são os aspectos comuns das crônicas? Abaixo, no box, resumimos essas características:
Suporte: crônicas geralmente são textos breves publicados em livros, jornais, revistas e na internet.
Linguagem: coloquial, espontânea e descontraída, estabelecendo uma conversa direta com o leitor.
Subjetividade: a(o) autora(or) da crônica expressa suas opiniões, sentimentos, visões e experiências pessoais, criando uma conexão íntima com o leitor.
Foco narrativo: primeira pessoa e autor-personagem ou terceira pessoa e autor-observador.
Tom: muitas vezes, a crônica adota um tom humorístico, utilizando ironia e sarcasmo para comentar situações cotidianas, expondo contradições e ridicularizando comportamentos. Também pode apresentar um tom poético ou reflexivo.
Temas: acontecimentos e situações do dia a dia, trivialidades, observações pessoais e reflexões sobre a vida cotidiana ou sobre a sociedade, costumes, valores, políticas e questões relevantes do contexto em que é escrita.
Estrutura: a crônica não possui uma estrutura fixa, podendo variar em extensão e formato. Pode ser curta ou longa, apresentar diálogos, descrições, fragmentos de memórias, entre outros elementos narrativos, proporcionando flexibilidade criativa.
Para saber mais sobre a origem da crônica e suas características, veja também o vídeo “A crônica como produto cultural”, do curso on-line “Nas tramas do texto: caminhos para reescrita”: