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Embora com objetivos e características de produção diferentes, alguns gêneros tratam de temas muito semelhantes entre si e podem confundir o leitor. Nesta oficina apresentamos alguns textos que, apesar de pertencerem a gêneros diferentes, podem parecer aos alunos memórias literárias.
20 de julho de 1955, Carolina Maria de Jesus: Quarto de despejo
Gênero: Diário
20 de julho de 1955
Deixei o leito as 4 horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água. Tive sorte! As mulheres não estavam na torneira. Enchi minha lata e zarpei. (…) Fui no Arnaldo buscar o leite e o pão. (…) Preparei a refeição matinal. Cada filho prefere uma coisa. A Vera, mingau de farinha de trigo torrada. O João José, café puro. O José Carlos, leite branco. E eu, mingau de aveia.
Já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna.
Terminaram a refeição. Lavei os utensílios. Depois fui lavar roupas. Eu não tenho homem em casa. É só eu e meus filhos. Mas eu não pretendo relaxar. O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possivel. Eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela. (…)
Fui no rio lavar as roupas e encontrei D. Mariana. Uma mulher agradavel e decente. Tem 9 filhos e um lar modelo. Ela e o espôso tratam-se com iducação. Visam apenas viver em paz. E criar filhos. Ela tambem ia lavar roupas.
Carolina Maria de Jesus (1914-1917) nasceu no interior de Minas Gerais e, ainda jovem, mudou-se para São Paulo, onde viveu na favela do Canindé, trabalhando como catadora de papel e ferro velho. Frequentou a escola por apenas dois anos, mas ficou conhecida por relatar o cotidiano da comunidade e seus sentimentos em diários, publicados pela primeira vez em livro em 1960 e ainda hoje muito conhecidos. No trecho destacado, Carolina combina o lirismo de sua escrita – “contemplei o céu estrelado” – à percepção da marginalização, pois não pode dar aos filhos uma “casa decente para morar”. O texto em primeira pessoa, que narra eventos cotidianos, caracteriza o diário. Para saber mais sobre Carolina Maria de Jesus, acesse: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa253139/carolina-maria-de-jesus
Gênero: Relato histórico
Minha primeira infância
Minha primeira infância foi muito agitada. Ainda no ventre de minha mãe, viajei da Itália para a África, isso porque meu pai havia feito as Guerras de Conquista, conhecidas como Coloniais. A primeira vez foi convocado; a segunda, como voluntário. Apaixonou-se pela África e quis ficar. Pediu transferência das Confederações Industriais para lá.
Primeiro, ficou sediado em Asmara, uma colônia italiana, naquela época Abissínia. Ficamos na cidade, não sei exatamente quanto tempo, porque minha família não costumava registrar essas coisas.
Deve ter sido um ano e meio. Mudamos para Trípoli, na Líbia, também colônia italiana. Ficamos lá até pouco depois de estourar a guerra. A Itália declarou guerra em 1939, nasci em 1937.
Imagino que no final de 1939, início dos anos 1940, tenhamos regressado à Itália, minha mãe e as duas crianças. Meu pai ainda manteve a casa em Trípoli toda montada durante certo tempo, até ficar muito perigoso. Quando voltou para a Itália, perdeu tudo o que havia na casa, naturalmente.
Na Itália, moramos um tempo em Roma, onde nasceu meu terceiro irmão, depois viajamos durante os cinco anos da guerra, em parte porque meu pai era transferido e, eventualmente, tínhamos que mudar de cidade porque a guerra vinha avançando na Sicília, chegando chegando pelo sul, com a presença dos aliados. Íamos nos mudando para o norte. (…) Em 1948, viemos para o Brasil.
A casa de guerra
A guerra, quando se está nela, não é nada parecida com o que se pensa. Tem até uma conferência que fiz sobre isso que se chama “Lendo na casa da guerra”. Quando se está nela, envolvido nela, é uma normalidade, sobretudo se a pessoa nasceu no período de guerra. Nasci praticamente na guerra, a partir do momento que tenho memória do final de Trípoli, antes dos quatro anos. Lembro-me do avião no qual a gente saiu de Trípoli. Viemos de avião, sempre modernos… Mas a minha memória verdadeira começa quando já é guerra. Ela não é caótica, simplesmente muda, altera os códigos, estabelecem-se outros. Na guerra, as janelas devem ter cortinas, algumas pintadas de azul-marinho; depois das oito horas tem que fechar todas as janelas porque não pode passar luz; tem comida, não tem, comida falta, enfim… Mas a guerra cria os seus próprios códigos e estruturas.
ACERVO MUSEU DA PESSOA/ Disponível em: https://acervo.museudapessoa.org/pt/conteudo/historia/49445/0/0/1 acessado em 15/11/2020
A perspectiva das pessoas comuns diante de um marco histórico é o que se observa no relato da escritora Marina Colasanti, conhecida por títulos como A moça tecelã, Uma ideia toda azul e Contos de amor rasgados. A autora, cuja família se fixou no Rio de Janeiro em razão da crise por que passou a Itália após a Segunda Guerra Mundial, trabalhou como jornalista em grandes veículos de comunicação do país enquanto publicava seus livros. No trecho, em primeira pessoa, ela oferece seu olhar a respeito da guerra na Europa, sem os recursos linguísticos que se associam ao exercício da literatura. Aqui, o que temos, portanto, é um relato histórico, que oferece alternativa à visão das fontes oficiais. Marina Colasanti tem um site dedicado à sua trajetória e obra.
Gênero: Memórias Literárias
Memória de livros
Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia, a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na verdade, se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia nelas o que inventara. Segundo a crônica familiar, meu pai interpretava aquilo como uma grande sede de saber cruelmente insatisfeita e queria que eu aprendesse a ler já aos quatro anos, sendo demovido a muito custo, por uma pedagoga amiga nossa. Mas, depois que completei seis anos, ele não aguentou, fez um discurso dizendo que eu já conhecia todas as letras e agora era só uma questão de juntá-las e, além de tudo, ele não suportava mais ter um filho analfabeto. Em seguida, mandou que eu vestisse uma roupa de sair, foi comigo a uma livraria, comprou uma cartilha, uma tabuada e um caderno e me levou à casa de D. Gilete.
João Ubaldo Ribeiro. Um brasileiro em Berlim
Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, pp. 106-107.
João Ubaldo Ribeiro, em “Memória de livros”, faz o registro literário de suas recordações de menino: o casarão onde morava em Aracaju (SE), os avós, os pais, a primeira professora, os livros e as revistas que lia, os cheiros dos impressos antigos, os gestos de leitura mesmo antes de ser alfabetizado. Trata-se, portanto, de um texto de memórias literárias. Ao se colocar como narrador-personagem – recurso muito utilizado em textos desse gênero – o autor recria o passado e procura transportar o leitor para o tempo e o espaço onde ocorreram os acontecimentos narrados.